Opinião
- 24 de agosto de 2010
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Fé evangélica: um cadáver e uma autópsia
Derval Dasilio
Ingmar Bergman deixou filmes inesquecíveis. Em “O Sétimo Selo” ficou a afirmação instigante: “A fé é uma aflição dolorosa... é como amar uma pessoa que está no escuro e não sai quando a chamamos”. No espírito, a intangível e incurável angústia da fé, um cético e incrédulo que crê apenas no vazio e por isso mesmo não sofre, não se aflige, diria outro. A fé ensina a não nos darmos por satisfeitos com os sucessos materiais e nem com satisfações imediatas. Igrejas cheias – mas de gente sem fé, sem esperança, que entra pela porta da frente em multidões e em ondas sai pela porta dos fundos – denunciam as desconfianças sobre um cristianismo sem essência, falsificado na religião com propósito, prosperidade, sucesso numérico (de olho no dinheiro dos fiéis). Afirmam um cristianismo copiado da experiência inicial da igreja mediterrânica contaminada pela prestidigitação, curandeirismo, magia e superstição; por assombrações, almas penadas, espíritos imundos, orações esotéricas e carismas reluzentes, mas sem amor (“ágape”), combatidos pelos apóstolos de Cristo (1Co 12,13,14). Nele não há lugar para Paulo ou Lutero, pregadores da fé incondicional e da graça.
Muitos se servem da fé condicionada, pragmática, como anestésico, droga comercializada, e entregam-se à alienação (“allienus”: ficar fora de si, não exercer o papel de pessoa consciente). Para alguns, a fé não é assim, quando se pedem soluções definitivas para atacar estruturalmente a onda de violência, de corrupção, de injustiça social que grassa no país e no mundo. Trilhamos para um futuro com rastros de sangue e vidas inocentes ceifadas pelo despreparo e pelo descaso ou inconsciência.
O cristianismo simbólico, carismático, dispensa a fé incondicional, desconhecendo a esperança ética de transformações. Para muitos evangélicos, preocupados com a prosperidade e solução para tudo, vale o dito: "Entre Deus e o dinheiro, o segundo é o primeiro" (LeonardoBoff). Não é inclusiva, a fé neoevangélica. Não considera a luta da mulher por direitos iguais; despreza as minorias sexuais oprimidas e as alija da vida de fé; esquece as crianças sob forte risco social, que morrem como moscas nas periferias das metrópoles e são condenadas à marginalização perpétua. Crianças de hoje também levam armas de fogo para as salas de aula.
Esta sociedade (somos 15% evangélicos, 75% católicos, 10% outros credos, segundo o IBGE/2000) ignora as consequências da pobreza e miséria enquanto paga o preço, aliviando-se por meio do consumismo compulsivo. Drogaditos, alcoolistas, no mesmo plano de abandono e desespero, marcam a realidade presente. Jovens evangélicos ou carismáticos servem à alienação nos louvores gospel, na pele tremida pela oração esotérica. Enquanto isso, ocupam altares em busca de espaço e sucesso, olhos estrábicos à violência absurda que não se quer combater. Na fuga religiosa, o púlpito e a mesa da comunhão, alimentadores da fé, são substituídos por palcos, ofertórios compulsórios, promessas jamais cumpridas. Deus é bajulado com louvação insincera; não há lugar para a oração íntima, indignação, denúncia no novo culto pentecostalizado. Todos querem ser ricos e bem-sucedidos sob o favor da grana idolatrada: ter e aparecer! Almejam a prosperidade pessoal e nada mais. Pregadores anunciam igrejas e crentes ricos como sinais da bem-aventurança eterna.
O mundo das desigualdades sociais e regionais em nosso país está aí. A concentração do poder, do saber, da renda e da propriedade, das drogas, da violência, da fome, da cegueira espiritual e das falsas propostas religiosas estão aí e não se vê. “Em tudo isso, é curioso notar que a fé sem ética está morta (cf. Tiago). E uma vez morta, só nos resta fazer sua autópsia e torcer pelo seu breve sepultamento, para então renascer líderes que com integridade cumpram sua missão amando a Deus e a este povo sofrido!”, como disse o pastor Eduardo Pedreira.
A fé bíblica implica em fidelidade (“emunah”, “pistis”, acompanham o sentido: “o justo viverá pela fé”, Hb 2.4, Rm 1.17, Gl 3.11; não se pode traduzir como sentimento de favorecimento subjetivo e íntimo). A fé incondicional constitui o essencial da atitude de Cristo diante da cruz, no sofrimento ético contra o desespero e a angústia diante das injustiças. Cristo reconhece-se como parte do povo bíblico e seu sofrimento quando entregou-se à fé (“emunah”) na esperança do cumprimento das promessas de realização do desígnio divino contra o domínio da morte. Um mundo novo é possível. O reino chega através dos sofrimentos, da indignação, da recusa ética da injustiça. Jesus teve que amargar o fracasso total de seu empreendimento, na morte, para juntar seu povo na missão de Deus na luta pela salvação e libertação da humanidade em todos os tempos. Jesus teve fé no que anunciava!
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Ingmar Bergman deixou filmes inesquecíveis. Em “O Sétimo Selo” ficou a afirmação instigante: “A fé é uma aflição dolorosa... é como amar uma pessoa que está no escuro e não sai quando a chamamos”. No espírito, a intangível e incurável angústia da fé, um cético e incrédulo que crê apenas no vazio e por isso mesmo não sofre, não se aflige, diria outro. A fé ensina a não nos darmos por satisfeitos com os sucessos materiais e nem com satisfações imediatas. Igrejas cheias – mas de gente sem fé, sem esperança, que entra pela porta da frente em multidões e em ondas sai pela porta dos fundos – denunciam as desconfianças sobre um cristianismo sem essência, falsificado na religião com propósito, prosperidade, sucesso numérico (de olho no dinheiro dos fiéis). Afirmam um cristianismo copiado da experiência inicial da igreja mediterrânica contaminada pela prestidigitação, curandeirismo, magia e superstição; por assombrações, almas penadas, espíritos imundos, orações esotéricas e carismas reluzentes, mas sem amor (“ágape”), combatidos pelos apóstolos de Cristo (1Co 12,13,14). Nele não há lugar para Paulo ou Lutero, pregadores da fé incondicional e da graça.
Muitos se servem da fé condicionada, pragmática, como anestésico, droga comercializada, e entregam-se à alienação (“allienus”: ficar fora de si, não exercer o papel de pessoa consciente). Para alguns, a fé não é assim, quando se pedem soluções definitivas para atacar estruturalmente a onda de violência, de corrupção, de injustiça social que grassa no país e no mundo. Trilhamos para um futuro com rastros de sangue e vidas inocentes ceifadas pelo despreparo e pelo descaso ou inconsciência.
O cristianismo simbólico, carismático, dispensa a fé incondicional, desconhecendo a esperança ética de transformações. Para muitos evangélicos, preocupados com a prosperidade e solução para tudo, vale o dito: "Entre Deus e o dinheiro, o segundo é o primeiro" (LeonardoBoff). Não é inclusiva, a fé neoevangélica. Não considera a luta da mulher por direitos iguais; despreza as minorias sexuais oprimidas e as alija da vida de fé; esquece as crianças sob forte risco social, que morrem como moscas nas periferias das metrópoles e são condenadas à marginalização perpétua. Crianças de hoje também levam armas de fogo para as salas de aula.
Esta sociedade (somos 15% evangélicos, 75% católicos, 10% outros credos, segundo o IBGE/2000) ignora as consequências da pobreza e miséria enquanto paga o preço, aliviando-se por meio do consumismo compulsivo. Drogaditos, alcoolistas, no mesmo plano de abandono e desespero, marcam a realidade presente. Jovens evangélicos ou carismáticos servem à alienação nos louvores gospel, na pele tremida pela oração esotérica. Enquanto isso, ocupam altares em busca de espaço e sucesso, olhos estrábicos à violência absurda que não se quer combater. Na fuga religiosa, o púlpito e a mesa da comunhão, alimentadores da fé, são substituídos por palcos, ofertórios compulsórios, promessas jamais cumpridas. Deus é bajulado com louvação insincera; não há lugar para a oração íntima, indignação, denúncia no novo culto pentecostalizado. Todos querem ser ricos e bem-sucedidos sob o favor da grana idolatrada: ter e aparecer! Almejam a prosperidade pessoal e nada mais. Pregadores anunciam igrejas e crentes ricos como sinais da bem-aventurança eterna.
O mundo das desigualdades sociais e regionais em nosso país está aí. A concentração do poder, do saber, da renda e da propriedade, das drogas, da violência, da fome, da cegueira espiritual e das falsas propostas religiosas estão aí e não se vê. “Em tudo isso, é curioso notar que a fé sem ética está morta (cf. Tiago). E uma vez morta, só nos resta fazer sua autópsia e torcer pelo seu breve sepultamento, para então renascer líderes que com integridade cumpram sua missão amando a Deus e a este povo sofrido!”, como disse o pastor Eduardo Pedreira.
A fé bíblica implica em fidelidade (“emunah”, “pistis”, acompanham o sentido: “o justo viverá pela fé”, Hb 2.4, Rm 1.17, Gl 3.11; não se pode traduzir como sentimento de favorecimento subjetivo e íntimo). A fé incondicional constitui o essencial da atitude de Cristo diante da cruz, no sofrimento ético contra o desespero e a angústia diante das injustiças. Cristo reconhece-se como parte do povo bíblico e seu sofrimento quando entregou-se à fé (“emunah”) na esperança do cumprimento das promessas de realização do desígnio divino contra o domínio da morte. Um mundo novo é possível. O reino chega através dos sofrimentos, da indignação, da recusa ética da injustiça. Jesus teve que amargar o fracasso total de seu empreendimento, na morte, para juntar seu povo na missão de Deus na luta pela salvação e libertação da humanidade em todos os tempos. Jesus teve fé no que anunciava!
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É pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e autor de livros como “Pedagogia da Ganância" (2013) e "O Dragão que Habita em Nós” (2010).
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