Opinião
- 24 de fevereiro de 2017
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Estrelas Além do Tempo
Por Carlos Caldas
A história oficial versus a história ocultada
Muitos conhecem a afirmação que a história é escrita pelos vencedores, pelos detentores do poder. Esta história oficial serve para legitimar o status quo vigente em uma determinada sociedade. Sendo assim, é um exercício corajoso escrever uma história que contenha uma “memória subversiva”, uma narrativa que rompe, ou que no mínimo, difere da história oficial.
“Estrelas além do tempo” foi o título escolhido no Brasil para o filme do diretor Theodore Melfi que é uma narrativa de uma memória subversiva. O título original em inglês é “Hidden Figures”, que eu traduziria por “Personagens ocultadas”. Acho que a forma do particípio passado do verbo ocultar em português expressa bem a ideia do título. Concordo que minha sugestão é um tanto desajeitada e deselegante, mas penso ser fiel ao espírito do original.
O filme conta a história verídica de três mulheres negras – ou afro-americanas, como exige o politicamente correto – nos Estados Unidos em 1961, no auge da corrida espacial com a então União Soviética. A história oficial da chegada dos norte-americanos no espaço fala sobre John Glenn, Neil Armstrong, BuzzAldrin, e outros que, não por mera coincidência, eram homens e brancos. O filme de Melfi é baseado no livro recente (2016) da escritora também afro-americana Margot Lee Shetterly intitulado “Hidden Figures: The StoryoftheAfrican-American Women Who HelpedWinthe Space Race” – “Figuras ocultadas: A história das mulheres afro-americanas que ajudaram a ganhar a corrida espacial”. Pois bem, esta é a história que até agora foi ocultada. Sem a participação efetiva das brilhantes matemáticas negras, os heróis brancos não teriam chegado ao espaço.
A narrativa do filme é a história de Katharine Johnson (Taraji P. Henson), Dorothy Vaughn (Octavia Spencer) e Mary Jackson (a bela Janelle Monáe). As três são funcionárias da NASA, e são muito capacitadas em suas respectivas áreas: Katharine Johnson tem uma inteligência matemática muito acima da média (consegue fazer cálculos de maneira mais rápida e acertada que um computador IBM), Dorothy Vaughn aprende a lidar com computadores, uma novidade na época, antes dos engenheiros da IBM, e Mary Jackson consegue, à custa de uma batalha judicial, ser a primeira negra dos Estados Unidos a se formar em engenharia na oficialmente segregacionista Universidade da Virginia.
Mulheres negras num mundo dominado por homens brancos
Aqueles inícios dos anos de 1960 eram muito tensos. Além da já mencionada corrida espacial, a guerra acontecia no Vietnã, e a tensão racial entre negros e brancos nos EUA atingia níveis insuportáveis. O filme mostra em uma rápida cena um discurso do Rev. Martin Luther King Junior na televisão. E neste tempo turbulento, Katharine, Dorothy e Mary enfrentam uma luta dupla terrível: são mulheres, em um mundo dominado por homens – o mundo da ciência – e são negras, em um mundo dominado por brancos. Elas sofrem uma humilhação atrás da outra, mas não desistem. O filme retrata a persistência inquebrantável do trio de amigas de maneira não piegas. Chega a ser irritante ver como elas são humilhadas o tempo todo por brancos prepotentes, arrogantes e insensíveis.
A narrativa fica um tanto cansativa e arrastada mais ou menos na metade, mas recupera o fôlego no seu terço final. O filme resvala perigosamente no desequilíbrio no sentido que, em tese, deveria apresentar a luta das três mulheres, mas concentra a atenção na matemática Katharine. Outra coisa curiosa é que é difícil dizer quem é o/a ator/atriz coadjuvante: Al Harrison, o chefe da equipe de cientistas (muito bem interpretado por Kevin Costner), Vivian Michael (Kirsten Dunst), a arrogante secretária da equipe, que é o terror da vida da matemática Dorothy Vaughn, ou Paul Stafford (Jim Parsons, o Sheldon de The Big BangTheory), que até então era o principal matemático do time chefiado por Harrison? Stafford é tão nerd quanto o Sheldon, mas é um nerd mal humorado, invejoso, desonesto, insensível e inescrupuloso. Ele simplesmente não consegue esconder a raiva que sente quando fica evidente para todo mundo que Katharine é muito mais brilhante que ele.
“Estrelas além do tempo” é uma exaltação da importância do reconhecimento da alteridade. O outro, o diferente – no caso do filme, as três mulheres negras, que sofrem por ser o que são, ou seja, por serem mulheres e por serem negras – tem um valor intrínseco que é irredutível, que é parte da constitutividade do ser humano. Logo, o outro merece respeito. Tzvetan Todorov, o filósofo e teórico de literatura búlgaro, radicado na França, que nos deixou semana passada, em “A conquista da América – a questão do outro”, levanta a questão de ver o outro como o outro, algo que muita gente não faz, porque só olha para si mesmo e para suas próprias perspectivas.
A alteridade como princípio bíblico
Reconhecer o valor do outro, dar-lhe vez e voz, permitir-lhe oportunidades, são alguns desafios impostos pela alteridade. Esta é uma lição que a ética bíblica sempre apresenta. O Deuteronômio excluía o outro, representado na figura dos amonitas e moabitas, das assembleias santas, até a décima geração (23.3). Mas a própria Bíblia Hebraica já apresenta o contraditório desta não aceitação da alteridade: neste sentido, o exemplo mais eloquente é a narrativa de Rute, a moabita, que se tornará ancestral do próprio Messias (cf. Mt 1.5). E Jesus exaltará a importância do outro, do diferente, do que não faz parte da comunidade.
A teologia lucana é particularmente rica neste sentido: em Lucas encontramos Jesus exaltando a importância do outro em seu sermão na sinagoga de Nazaré (4.24-27), na negativa de queimar com fogo do céu os samaritanos hereges (9.51-56), naquela que é uma de suas parábolas mais conhecidas (10.25-37), na exaltação do espírito de gratidão de um samaritano que ele curou (17.11-19).
Se os protestantes brancos dos Estados Unidos tivessem prestado atenção a textos como estes, e a tantos outros semelhantes em sentido, as matemáticas brilhantes Katharine, Dorothy e Mary não teriam sido tão humilhadas como foram. E a nós fica o eterno desafio de lembrarmos que, se temos direitos, o outro também tem. “Estrelas além do tempo” não nos deixa esquecer deste ponto tão importante da vida humana.
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Muitos conhecem a afirmação que a história é escrita pelos vencedores, pelos detentores do poder. Esta história oficial serve para legitimar o status quo vigente em uma determinada sociedade. Sendo assim, é um exercício corajoso escrever uma história que contenha uma “memória subversiva”, uma narrativa que rompe, ou que no mínimo, difere da história oficial.
“Estrelas além do tempo” foi o título escolhido no Brasil para o filme do diretor Theodore Melfi que é uma narrativa de uma memória subversiva. O título original em inglês é “Hidden Figures”, que eu traduziria por “Personagens ocultadas”. Acho que a forma do particípio passado do verbo ocultar em português expressa bem a ideia do título. Concordo que minha sugestão é um tanto desajeitada e deselegante, mas penso ser fiel ao espírito do original.
O filme conta a história verídica de três mulheres negras – ou afro-americanas, como exige o politicamente correto – nos Estados Unidos em 1961, no auge da corrida espacial com a então União Soviética. A história oficial da chegada dos norte-americanos no espaço fala sobre John Glenn, Neil Armstrong, BuzzAldrin, e outros que, não por mera coincidência, eram homens e brancos. O filme de Melfi é baseado no livro recente (2016) da escritora também afro-americana Margot Lee Shetterly intitulado “Hidden Figures: The StoryoftheAfrican-American Women Who HelpedWinthe Space Race” – “Figuras ocultadas: A história das mulheres afro-americanas que ajudaram a ganhar a corrida espacial”. Pois bem, esta é a história que até agora foi ocultada. Sem a participação efetiva das brilhantes matemáticas negras, os heróis brancos não teriam chegado ao espaço.
A narrativa do filme é a história de Katharine Johnson (Taraji P. Henson), Dorothy Vaughn (Octavia Spencer) e Mary Jackson (a bela Janelle Monáe). As três são funcionárias da NASA, e são muito capacitadas em suas respectivas áreas: Katharine Johnson tem uma inteligência matemática muito acima da média (consegue fazer cálculos de maneira mais rápida e acertada que um computador IBM), Dorothy Vaughn aprende a lidar com computadores, uma novidade na época, antes dos engenheiros da IBM, e Mary Jackson consegue, à custa de uma batalha judicial, ser a primeira negra dos Estados Unidos a se formar em engenharia na oficialmente segregacionista Universidade da Virginia.
Mulheres negras num mundo dominado por homens brancos
Aqueles inícios dos anos de 1960 eram muito tensos. Além da já mencionada corrida espacial, a guerra acontecia no Vietnã, e a tensão racial entre negros e brancos nos EUA atingia níveis insuportáveis. O filme mostra em uma rápida cena um discurso do Rev. Martin Luther King Junior na televisão. E neste tempo turbulento, Katharine, Dorothy e Mary enfrentam uma luta dupla terrível: são mulheres, em um mundo dominado por homens – o mundo da ciência – e são negras, em um mundo dominado por brancos. Elas sofrem uma humilhação atrás da outra, mas não desistem. O filme retrata a persistência inquebrantável do trio de amigas de maneira não piegas. Chega a ser irritante ver como elas são humilhadas o tempo todo por brancos prepotentes, arrogantes e insensíveis.
A narrativa fica um tanto cansativa e arrastada mais ou menos na metade, mas recupera o fôlego no seu terço final. O filme resvala perigosamente no desequilíbrio no sentido que, em tese, deveria apresentar a luta das três mulheres, mas concentra a atenção na matemática Katharine. Outra coisa curiosa é que é difícil dizer quem é o/a ator/atriz coadjuvante: Al Harrison, o chefe da equipe de cientistas (muito bem interpretado por Kevin Costner), Vivian Michael (Kirsten Dunst), a arrogante secretária da equipe, que é o terror da vida da matemática Dorothy Vaughn, ou Paul Stafford (Jim Parsons, o Sheldon de The Big BangTheory), que até então era o principal matemático do time chefiado por Harrison? Stafford é tão nerd quanto o Sheldon, mas é um nerd mal humorado, invejoso, desonesto, insensível e inescrupuloso. Ele simplesmente não consegue esconder a raiva que sente quando fica evidente para todo mundo que Katharine é muito mais brilhante que ele.
“Estrelas além do tempo” é uma exaltação da importância do reconhecimento da alteridade. O outro, o diferente – no caso do filme, as três mulheres negras, que sofrem por ser o que são, ou seja, por serem mulheres e por serem negras – tem um valor intrínseco que é irredutível, que é parte da constitutividade do ser humano. Logo, o outro merece respeito. Tzvetan Todorov, o filósofo e teórico de literatura búlgaro, radicado na França, que nos deixou semana passada, em “A conquista da América – a questão do outro”, levanta a questão de ver o outro como o outro, algo que muita gente não faz, porque só olha para si mesmo e para suas próprias perspectivas.
A alteridade como princípio bíblico
Reconhecer o valor do outro, dar-lhe vez e voz, permitir-lhe oportunidades, são alguns desafios impostos pela alteridade. Esta é uma lição que a ética bíblica sempre apresenta. O Deuteronômio excluía o outro, representado na figura dos amonitas e moabitas, das assembleias santas, até a décima geração (23.3). Mas a própria Bíblia Hebraica já apresenta o contraditório desta não aceitação da alteridade: neste sentido, o exemplo mais eloquente é a narrativa de Rute, a moabita, que se tornará ancestral do próprio Messias (cf. Mt 1.5). E Jesus exaltará a importância do outro, do diferente, do que não faz parte da comunidade.
A teologia lucana é particularmente rica neste sentido: em Lucas encontramos Jesus exaltando a importância do outro em seu sermão na sinagoga de Nazaré (4.24-27), na negativa de queimar com fogo do céu os samaritanos hereges (9.51-56), naquela que é uma de suas parábolas mais conhecidas (10.25-37), na exaltação do espírito de gratidão de um samaritano que ele curou (17.11-19).
Se os protestantes brancos dos Estados Unidos tivessem prestado atenção a textos como estes, e a tantos outros semelhantes em sentido, as matemáticas brilhantes Katharine, Dorothy e Mary não teriam sido tão humilhadas como foram. E a nós fica o eterno desafio de lembrarmos que, se temos direitos, o outro também tem. “Estrelas além do tempo” não nos deixa esquecer deste ponto tão importante da vida humana.
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Meu orgulho, meu preconceito
As diferenças que matam
A Religião Mais Negra do Brasil
É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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