Opinião
- 07 de agosto de 2009
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Encontros Públicos de Religião e Ciência
Guilherme de Carvalho
Na moralidade contemporânea os escrúpulos estão se invertendo. Mostrar o sexo em público está se tornando banal, e mostrar a fé em ambientes públicos está se tornando falta de vergonha. Beijos em público são permitidos, desde que não sejam com a religião -- e quando eles acontecem os pudores laicos se eriçam imediatamente, como se diante de um ato pornográfico.
Mas não é que Barack Obama aprovou um beijo desses em público?
Nomeação polêmica
Recentemente o presidente americano indicou o médico geneticista Francis Collins para o cargo de diretor dos “Institutos Nacionais da Saúde” e do “Departamento de Saúde e Serviços Humanos” -- o cargo mais alto do país no campo da saúde. Collins ganhou fama como diretor nacional de pesquisa do Instituto Nacional de Pesquisa do Genoma Humano de 1993 a 2008, completando o trabalho de sequenciamento genômico antes do prazo, economizando parte do financiamento e ainda contribuindo com a identificação dos genes relacionados a várias doenças conhecidas, como os da fibrose cística.
Porém, ele é famoso também por sua militância no campo do diálogo entre ciência e religião, e isso deixou muita gente indignada com a escolha de Obama. Michael Gerson do Washington Post gracejou com esse desconforto público: “Collins é também um teísta. E, mais do que isso, um cristão evangélico. E, mais do que isso, ele canta hinos tocando violão”. Eu confesso que não sabia da parte do violão, mas enfim a militância evangélica de Collins é infalivelmente citada junto com suas inegáveis qualificações científicas como se fora uma espécie de excentricidade, algo como o nariz de Michael Jackson.
Collins escreveu o livro “The Language of God: A Scientist Presents Evidence for Belief” (2006), publicado em português pela editora Gente em 2007 (A Linguagem de Deus: Um Cientista Apresenta Evidências de que Ele Existe), e mais recentemente organizou a Fundação BioLogos, dedicada ao desenvolvimento de suas perspectivas sobre religião e ciência. Collins não perde oportunidades para escrever e dizer em público que não há contradição entre fé e ciência. E, de fato, ele não corresponde àquele típico livre pensador autointitulado cristão, mas que faz questão de praticar o mais completo minimalismo teológico (Deus é a força do bem, Jesus é um cara legal, o Espírito Santo não sei... Bíblia? Aquele livro dos crentes fundamentalistas). Collins é teologicamente ortodoxo.
É claro que ele tem uma visão muito particular disso tudo. Collins argumenta que a teoria da evolução é um fato científico, e que os cristãos não deveriam colocar Gênesis e a ciência moderna em conflito. Também é a favor de pesquisas em células-tronco a partir de embriões, o que o coloca fora das graças de boa parte do universo evangélico. Não seria de todo inadequado reconhecer que sua distinção entre fé e ciência é demasiado nítida (quase do tipo “Fatos” X “Valores”, embora ele negue isso), flertando com a compartimentalização. O resultado disso é que Collis é atacado de ambos os lados -- não apenas pelos neodarwinistas ateístas, mas também pelos criacionistas e defensores do Design Inteligente, para quem ele teria feito um acordo impossível com o naturalismo filosófico.
Reações secularistas
Collins é um assunto interessante, mas meu ponto principal hoje são as reações à sua indicação por Obama. Cerca de 7% da elite científica americana (dados da última década) é formada por religiosos praticantes; “porque, então” -- retrucou a esquerda secular e o movimento ateísta – “o presidente indica justamente um crente evangélico para o cargo mais importante da América no campo da saúde?” Muitos viram o fato como um insulto e até um perigo. O cientista Steve Prinker alegou que Collins não apenas é um pesquisador importante, mas um advogado excessivamente vocal da fé cristã. Como o cargo é um símbolo mundial da pesquisa biomédica, Collins seria uma má escolha.
As reações no Brasil não foram muito diferentes. O sites ateístas denunciaram e ridicularizaram o fato, como de costume. O católico Reinaldo José Lopes, do Blog de Ciência da Folha Online -- que já teve rusgas com Enézio de Almeida, do Nomenklatura, disse na última terça-feira que Collins aceita as ideias de C. S. Lewis sobre a existência de uma lei moral universal cientificamente inexplicável, e que isso poderia dificultar as pesquisas sobre a base evolucionária da moral humana a partir do estudo do altruísmo entre mamíferos. Lopes considera isso um possível exemplo de “Deus das Lacunas” -- colocar Deus para tapar os buracos temporários do nosso conhecimento científico (de minha parte, creio que Lewis está certíssimo).
Religião e ciência em público
O que é interessante em toda a discussão é o lugar público da fé. É claro que as preocupações de muitos críticos e de muitos defensores de Collins não se resumem apenas à ciência, estendendo-se antes para a questão da relação entre fé, política e sociedade. Por um lado, como já se observou, Obama simplesmente escolheu o melhor homem para o cargo. Por outro, ele passou uma mensagem clara (como observou Michael Gerson): que o antissobrenaturalismo não será visto como um pré-requisito para o reconhecimento público de um cientista, nem a militância religiosa um obstáculo para a carreira de um cientista. Essa mensagem tem um enorme alcance.
O comentário do brasileiro Reinaldo Lopes, no entanto, é sintomático da digestão local desses acontecimentos. Enquanto seculares moderados, católicos “soft” e alguns evolucionistas teístas celebram sem dificuldade a honestidade e a devoção religiosa pessoal de Collins, mostram-se extremamente sensíveis a quaisquer intromissões da religião em programas de pesquisa -- Reinaldo citou explicitamente um deles, o estudo de padrões altruístas entre animais como base para uma redução biológica da moralidade. E, é claro, boa parte desses temores associa-se a uma noção moderna de sociedade laica, secularizada, na qual a religião permanece trancafiada no interior da casa e da mente de alguns indivíduos. Permite-se que Collins seja cristão, contanto que sua ideologia pessoal não interfira nas pesquisas.
Se Collins será fiel ao seu modelo de relação entre religião e ciência, e à sua fé evangélica, apenas o tempo dirá. No entanto, a indicação de Obama é, sim, um bom exemplo para políticas públicas. Sem envolver a violação de um saudável pluralismo necessário à democracia (reconheço que o status de tal coisa é um problema à parte), Obama permite que um ator importante no campo da ciência atue com a sua cor e o seu rosto -- no caso, um rosto evangélico. Ele não promoveu o cristianismo, mas não deixou de promover a competência pelo fato de ser cristã e militante. É claro que precisamos de mais do que isso nos países ocidentais para vivenciar um pluralismo genuíno e reintegrar religião e ciência, mas com toda a certeza precisamos atingir ao menos um consenso em torno desta postura: não tratar o antissobrenaturalismo ou o secularismo com nenhum tipo de privilégio no universo público.
Isso não é uma realidade no Brasil, seja no campo mais amplo da responsabilidade social civil (o Estado praticamente exige a “secularização institucional” de uma organização cristã antes de apoiá-la), seja no campo da educação (a fé dos alunos e dos pais é oficialmente irrelevante para a sua formação) seja no campo mais específico da pesquisa científica (onde religião não entra, a não ser como objeto de estudo). “Laico”, no Brasil, quase sempre significa “como se não houvesse Deus”. O cristão, no entanto, não tem a permissão de viver em nenhuma área de sua vida “como se não houvesse Deus”.
Antes de pensar em aprovações públicas, no entanto, precisamos ter figuras públicas como Francis Collins; cristãos competentes e corajosos que não temam associar explicitamente a sua fé com a sua imagem pública como cientistas. Não falo apenas de cristãos cientistas sussurrando sua “opção religiosa” ao pé do ouvido de seus colegas,
mas de cristãos cientistas que ergam a voz em favor da Verdade.
Sem esses “beijos” públicos a moralidade laica continuará reinando sozinha no Brasil.
Na moralidade contemporânea os escrúpulos estão se invertendo. Mostrar o sexo em público está se tornando banal, e mostrar a fé em ambientes públicos está se tornando falta de vergonha. Beijos em público são permitidos, desde que não sejam com a religião -- e quando eles acontecem os pudores laicos se eriçam imediatamente, como se diante de um ato pornográfico.
Mas não é que Barack Obama aprovou um beijo desses em público?
Nomeação polêmica
Recentemente o presidente americano indicou o médico geneticista Francis Collins para o cargo de diretor dos “Institutos Nacionais da Saúde” e do “Departamento de Saúde e Serviços Humanos” -- o cargo mais alto do país no campo da saúde. Collins ganhou fama como diretor nacional de pesquisa do Instituto Nacional de Pesquisa do Genoma Humano de 1993 a 2008, completando o trabalho de sequenciamento genômico antes do prazo, economizando parte do financiamento e ainda contribuindo com a identificação dos genes relacionados a várias doenças conhecidas, como os da fibrose cística.
Porém, ele é famoso também por sua militância no campo do diálogo entre ciência e religião, e isso deixou muita gente indignada com a escolha de Obama. Michael Gerson do Washington Post gracejou com esse desconforto público: “Collins é também um teísta. E, mais do que isso, um cristão evangélico. E, mais do que isso, ele canta hinos tocando violão”. Eu confesso que não sabia da parte do violão, mas enfim a militância evangélica de Collins é infalivelmente citada junto com suas inegáveis qualificações científicas como se fora uma espécie de excentricidade, algo como o nariz de Michael Jackson.
Collins escreveu o livro “The Language of God: A Scientist Presents Evidence for Belief” (2006), publicado em português pela editora Gente em 2007 (A Linguagem de Deus: Um Cientista Apresenta Evidências de que Ele Existe), e mais recentemente organizou a Fundação BioLogos, dedicada ao desenvolvimento de suas perspectivas sobre religião e ciência. Collins não perde oportunidades para escrever e dizer em público que não há contradição entre fé e ciência. E, de fato, ele não corresponde àquele típico livre pensador autointitulado cristão, mas que faz questão de praticar o mais completo minimalismo teológico (Deus é a força do bem, Jesus é um cara legal, o Espírito Santo não sei... Bíblia? Aquele livro dos crentes fundamentalistas). Collins é teologicamente ortodoxo.
É claro que ele tem uma visão muito particular disso tudo. Collins argumenta que a teoria da evolução é um fato científico, e que os cristãos não deveriam colocar Gênesis e a ciência moderna em conflito. Também é a favor de pesquisas em células-tronco a partir de embriões, o que o coloca fora das graças de boa parte do universo evangélico. Não seria de todo inadequado reconhecer que sua distinção entre fé e ciência é demasiado nítida (quase do tipo “Fatos” X “Valores”, embora ele negue isso), flertando com a compartimentalização. O resultado disso é que Collis é atacado de ambos os lados -- não apenas pelos neodarwinistas ateístas, mas também pelos criacionistas e defensores do Design Inteligente, para quem ele teria feito um acordo impossível com o naturalismo filosófico.
Reações secularistas
Collins é um assunto interessante, mas meu ponto principal hoje são as reações à sua indicação por Obama. Cerca de 7% da elite científica americana (dados da última década) é formada por religiosos praticantes; “porque, então” -- retrucou a esquerda secular e o movimento ateísta – “o presidente indica justamente um crente evangélico para o cargo mais importante da América no campo da saúde?” Muitos viram o fato como um insulto e até um perigo. O cientista Steve Prinker alegou que Collins não apenas é um pesquisador importante, mas um advogado excessivamente vocal da fé cristã. Como o cargo é um símbolo mundial da pesquisa biomédica, Collins seria uma má escolha.
As reações no Brasil não foram muito diferentes. O sites ateístas denunciaram e ridicularizaram o fato, como de costume. O católico Reinaldo José Lopes, do Blog de Ciência da Folha Online -- que já teve rusgas com Enézio de Almeida, do Nomenklatura, disse na última terça-feira que Collins aceita as ideias de C. S. Lewis sobre a existência de uma lei moral universal cientificamente inexplicável, e que isso poderia dificultar as pesquisas sobre a base evolucionária da moral humana a partir do estudo do altruísmo entre mamíferos. Lopes considera isso um possível exemplo de “Deus das Lacunas” -- colocar Deus para tapar os buracos temporários do nosso conhecimento científico (de minha parte, creio que Lewis está certíssimo).
Religião e ciência em público
O que é interessante em toda a discussão é o lugar público da fé. É claro que as preocupações de muitos críticos e de muitos defensores de Collins não se resumem apenas à ciência, estendendo-se antes para a questão da relação entre fé, política e sociedade. Por um lado, como já se observou, Obama simplesmente escolheu o melhor homem para o cargo. Por outro, ele passou uma mensagem clara (como observou Michael Gerson): que o antissobrenaturalismo não será visto como um pré-requisito para o reconhecimento público de um cientista, nem a militância religiosa um obstáculo para a carreira de um cientista. Essa mensagem tem um enorme alcance.
O comentário do brasileiro Reinaldo Lopes, no entanto, é sintomático da digestão local desses acontecimentos. Enquanto seculares moderados, católicos “soft” e alguns evolucionistas teístas celebram sem dificuldade a honestidade e a devoção religiosa pessoal de Collins, mostram-se extremamente sensíveis a quaisquer intromissões da religião em programas de pesquisa -- Reinaldo citou explicitamente um deles, o estudo de padrões altruístas entre animais como base para uma redução biológica da moralidade. E, é claro, boa parte desses temores associa-se a uma noção moderna de sociedade laica, secularizada, na qual a religião permanece trancafiada no interior da casa e da mente de alguns indivíduos. Permite-se que Collins seja cristão, contanto que sua ideologia pessoal não interfira nas pesquisas.
Se Collins será fiel ao seu modelo de relação entre religião e ciência, e à sua fé evangélica, apenas o tempo dirá. No entanto, a indicação de Obama é, sim, um bom exemplo para políticas públicas. Sem envolver a violação de um saudável pluralismo necessário à democracia (reconheço que o status de tal coisa é um problema à parte), Obama permite que um ator importante no campo da ciência atue com a sua cor e o seu rosto -- no caso, um rosto evangélico. Ele não promoveu o cristianismo, mas não deixou de promover a competência pelo fato de ser cristã e militante. É claro que precisamos de mais do que isso nos países ocidentais para vivenciar um pluralismo genuíno e reintegrar religião e ciência, mas com toda a certeza precisamos atingir ao menos um consenso em torno desta postura: não tratar o antissobrenaturalismo ou o secularismo com nenhum tipo de privilégio no universo público.
Isso não é uma realidade no Brasil, seja no campo mais amplo da responsabilidade social civil (o Estado praticamente exige a “secularização institucional” de uma organização cristã antes de apoiá-la), seja no campo da educação (a fé dos alunos e dos pais é oficialmente irrelevante para a sua formação) seja no campo mais específico da pesquisa científica (onde religião não entra, a não ser como objeto de estudo). “Laico”, no Brasil, quase sempre significa “como se não houvesse Deus”. O cristão, no entanto, não tem a permissão de viver em nenhuma área de sua vida “como se não houvesse Deus”.
Antes de pensar em aprovações públicas, no entanto, precisamos ter figuras públicas como Francis Collins; cristãos competentes e corajosos que não temam associar explicitamente a sua fé com a sua imagem pública como cientistas. Não falo apenas de cristãos cientistas sussurrando sua “opção religiosa” ao pé do ouvido de seus colegas,
mas de cristãos cientistas que ergam a voz em favor da Verdade.
Sem esses “beijos” públicos a moralidade laica continuará reinando sozinha no Brasil.
É teólogo, mestre em Ciências da Religião e diretor de L’Abri Fellowship Brasil. Pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e presidente da Associação Kuyper para Estudos Transdisciplinares, é também organizador e autor de Cosmovisão Cristã e Transformação e membro fundador da Associação Brasileira Cristãos na Ciência (ABC2).
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