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- 12 de maio de 2020
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Dúvidas de um ateu e certezas de um pastor
Editora evangélica publica cartas trocadas durante 30 anos entre Sigmund Freud e o teólogo protestante Oskar Pfister
Por Waldo César
Biografias e autobiografias, memórias e romances históricos periodicamente voltam às editoras. Chegou-se a falar, entre nós em boom da história romanceada, .onde realidade e ficção, fonte documental e invenção, se atropelam numa intrincada correlação, não importa quão deliberada ou o quanto possam confundir o leitor – pois, afinal, não depende a “verdade histórica” da posição dos que a escreveram, e dos. que a interpretam? O fenômeno não é apenas nosso. Indianos que pretendiam reaver a história do seu país a partir do ponto vista nativo, tiveram uma dificuldade primordial: eram britânicos os que haviam redigido os documentos, como lembra o historiador inglês Peter Burke (Ideias/Livros, 14/l/95). E aí, certamente, o terreno é fértil para uma construção narrativa onde ficcional e real se interpõem e se cruzam indistintamente.
Estas considerações vêm a propósito de outra fonte documental extraordinária: a troca de cartas em vários campos do conhecimento, como um legado cheio de implicações pessoais, familiares, profissionais, históricas – por certo menos voltadas para a ficção e mais, como nos diários, inseridas no mundo turbulento e fascinante da confissão. E ainda a referência a outros, amigos ou inimigos – revelação ou confirmação daquilo que mal se sabia ou jamais chegado ao conhecimento público. De repente o véu se rasga, a intimidade e a verdade (de cada um) transmuda-se num cenário aberto à curiosidade ou à reprovação.
Ultimameme muita correspondência, completa ou incompleta, está ampliando a pesquisa sobre o pensamento e obra de importantes nomes da literatura ou das ciências. Como as Cartas entre Freud & Pfister, 1909-1939, produção primorosa de uma editora evangélica. A elegante tradução do original alemão nos põe diante de mais uma significativa contribuição no campo da psicanálise – e da religião – complementando outras coleções, como cerca das 1.500 cartas trocadas entre Freud e seu discípulo húngaro Sandor Ferenczi (1908-1933), nas quais se expõem as complicadas relações afetivas entre ambos (no Brasil em edições pela Imago). Ou as 350 cartas trocadas com Jung, como entre “pai” e “filho”, desde 1906 até o conhecido rompimento em 1913. Ou ainda com Einstein, publicadas em alemão, francês e inglês, cuja venda foi oa época proibida na Alemanha. A novidade, de certa forma, da correspondência entre Freud e o suíço Oskar Pfister está no fato de ser este um pastor protestante (e igualmente analista), na qual se destaca interessante (e cordial) debate sobre a "cura secular de almas" no campo “religioso-espiritual” trabalhadas por um ateu e por um teólogo. O subtítulo da obra, talvez mais amplo do que sugere a sua leitura, fala de “Um diálogo entre a psicanálise e a fé cristã”.
Mas os assuntos abordados durante 30 anos, em quase 100 cartas, não ficam por aí. Sem nenhuma ordem precisa, como acontece na espontaneidade de uma correspondência entre amigos, há muitos outros temas, que bem poderiam constituir um rico índice remissivo; teologia e teólogos, milagres, Deus, Cristo, o diabo, glossolalia, ateísmo. sexo, velhice e morte, sofrimento, guerra (1914-1918). E, claro, psicanálise. Nomes conhecidos da época, quando as teorias de Freud despertavam curiosidade e acalorados debates, aparecem com freqüência. Carl Jung, que levou Pfister a Freud, é o mais citado (cerca de 35 vezes), ora com certo carinho, ora com ironia e desprezo. A correspondência, intensa, por vezes tocante, revela amizade profunda e mútuo respeito apesar das marcantes diferenças sobre o .sentido da vida e o destino humano. O intercâmbio de artigos e livros entre um e outro eram comentados com a maior franqueza. Pfister está convicto de que a psicanálise oferecia melhor instrumentação para entender a alma, enquanto Freud dizia invejar o pastor “quanto à possibilidade de sublimação em direção à religião”. Porém complementa: “Mas a beleza da religião certamente não pertence à psicanálise. É natural e pode permanecer assim que, na terapia, nossos caminhos se separem. Bem à parte, por que nenhum de todos estes devotos criou a psicanálise, por que foi necessário esperar por um judeu completamente ateu?" Ao que Pfister replica... “o senhor não é ateu, pois quem vive para a verdade vive com Deus, e quem luta pela libertação, segundo 1 João 4, 16. permanece em Deus.” Freud, a cena altura, chega a classificar-se como um "mau ateu". E Pfister, no belo estilo que ambos cultivavam, conclama Freud a experimentar uma inserção em processos mais amplos, o que seria como “a síntese das notas de uma sinfonia bethoveniana para formar a tonalidade musical” e assim poderia dizer que “jamais houve cristão melhor”. E enquanto um lamenta que “os teólogos permaneçam atrasados e fracassem de modo tão lamentável”, envolvendo-se “demais numa tola disputa por princípios”, a resposta insiste na abertura de sua teologia para o mundo, para a qual “um adversário de grande capacidade intelectual é mais útil à religião do que mil adeptos inúteis”. A polêmica toma corpo com o famoso livro de Freud sobre a religião – O Futuro de uma Ilusão –, ao qual Pfister rebate com A ilusão de futuro, e também ao discutirem a contribuição da ciência e da técnica na solução dos problemas da vida; ou sobre a visão pessimista de Freud em confronto com uma interpretação ético-otimista do mundo, quando o pastor cita Nietzsche e seu amigo teólogo e filósofo Albett Schweitzer (também médico e organista notável).
Freud queixa-se, logo nas primeiras curtam, que “os tempos estão muito inquietos”; e mais tarde reclama da velhice e da morte. O pastor tenta reanimá-lo assinalando sua concepção “progressista” da “pulsão da morte”, para ele apenas um declínio da “força vital” (... “mesmo a morte dos indivíduos não pode deter o desenrolar da vontade universal, mas apenas fomentá-la”). A intensidade da época em que viveram, presente incerto e futuro duvidoso, está fortemente dimensionada numa incansável correspondência, fruto de vocações inequívocas voltadas para uma vida mais plena, apesar de divergências tão marcantes. Freud diz a certa altura: “Somente gosto de ler suas cartas; tudo nelas é vida. calor, êxito.” E mais uma vez termina com palavras de afeto e respeito, “na esperança de que o senhor permaneça fiel.”
• Jornal do Brasil, Caderno Ideias, 04/07/1998
>> Conheça a obra Cartas entre Freud e Pfister, da Editora Ultimato.
Por Waldo César
Biografias e autobiografias, memórias e romances históricos periodicamente voltam às editoras. Chegou-se a falar, entre nós em boom da história romanceada, .onde realidade e ficção, fonte documental e invenção, se atropelam numa intrincada correlação, não importa quão deliberada ou o quanto possam confundir o leitor – pois, afinal, não depende a “verdade histórica” da posição dos que a escreveram, e dos. que a interpretam? O fenômeno não é apenas nosso. Indianos que pretendiam reaver a história do seu país a partir do ponto vista nativo, tiveram uma dificuldade primordial: eram britânicos os que haviam redigido os documentos, como lembra o historiador inglês Peter Burke (Ideias/Livros, 14/l/95). E aí, certamente, o terreno é fértil para uma construção narrativa onde ficcional e real se interpõem e se cruzam indistintamente.
Estas considerações vêm a propósito de outra fonte documental extraordinária: a troca de cartas em vários campos do conhecimento, como um legado cheio de implicações pessoais, familiares, profissionais, históricas – por certo menos voltadas para a ficção e mais, como nos diários, inseridas no mundo turbulento e fascinante da confissão. E ainda a referência a outros, amigos ou inimigos – revelação ou confirmação daquilo que mal se sabia ou jamais chegado ao conhecimento público. De repente o véu se rasga, a intimidade e a verdade (de cada um) transmuda-se num cenário aberto à curiosidade ou à reprovação.
Ultimameme muita correspondência, completa ou incompleta, está ampliando a pesquisa sobre o pensamento e obra de importantes nomes da literatura ou das ciências. Como as Cartas entre Freud & Pfister, 1909-1939, produção primorosa de uma editora evangélica. A elegante tradução do original alemão nos põe diante de mais uma significativa contribuição no campo da psicanálise – e da religião – complementando outras coleções, como cerca das 1.500 cartas trocadas entre Freud e seu discípulo húngaro Sandor Ferenczi (1908-1933), nas quais se expõem as complicadas relações afetivas entre ambos (no Brasil em edições pela Imago). Ou as 350 cartas trocadas com Jung, como entre “pai” e “filho”, desde 1906 até o conhecido rompimento em 1913. Ou ainda com Einstein, publicadas em alemão, francês e inglês, cuja venda foi oa época proibida na Alemanha. A novidade, de certa forma, da correspondência entre Freud e o suíço Oskar Pfister está no fato de ser este um pastor protestante (e igualmente analista), na qual se destaca interessante (e cordial) debate sobre a "cura secular de almas" no campo “religioso-espiritual” trabalhadas por um ateu e por um teólogo. O subtítulo da obra, talvez mais amplo do que sugere a sua leitura, fala de “Um diálogo entre a psicanálise e a fé cristã”.
Mas os assuntos abordados durante 30 anos, em quase 100 cartas, não ficam por aí. Sem nenhuma ordem precisa, como acontece na espontaneidade de uma correspondência entre amigos, há muitos outros temas, que bem poderiam constituir um rico índice remissivo; teologia e teólogos, milagres, Deus, Cristo, o diabo, glossolalia, ateísmo. sexo, velhice e morte, sofrimento, guerra (1914-1918). E, claro, psicanálise. Nomes conhecidos da época, quando as teorias de Freud despertavam curiosidade e acalorados debates, aparecem com freqüência. Carl Jung, que levou Pfister a Freud, é o mais citado (cerca de 35 vezes), ora com certo carinho, ora com ironia e desprezo. A correspondência, intensa, por vezes tocante, revela amizade profunda e mútuo respeito apesar das marcantes diferenças sobre o .sentido da vida e o destino humano. O intercâmbio de artigos e livros entre um e outro eram comentados com a maior franqueza. Pfister está convicto de que a psicanálise oferecia melhor instrumentação para entender a alma, enquanto Freud dizia invejar o pastor “quanto à possibilidade de sublimação em direção à religião”. Porém complementa: “Mas a beleza da religião certamente não pertence à psicanálise. É natural e pode permanecer assim que, na terapia, nossos caminhos se separem. Bem à parte, por que nenhum de todos estes devotos criou a psicanálise, por que foi necessário esperar por um judeu completamente ateu?" Ao que Pfister replica... “o senhor não é ateu, pois quem vive para a verdade vive com Deus, e quem luta pela libertação, segundo 1 João 4, 16. permanece em Deus.” Freud, a cena altura, chega a classificar-se como um "mau ateu". E Pfister, no belo estilo que ambos cultivavam, conclama Freud a experimentar uma inserção em processos mais amplos, o que seria como “a síntese das notas de uma sinfonia bethoveniana para formar a tonalidade musical” e assim poderia dizer que “jamais houve cristão melhor”. E enquanto um lamenta que “os teólogos permaneçam atrasados e fracassem de modo tão lamentável”, envolvendo-se “demais numa tola disputa por princípios”, a resposta insiste na abertura de sua teologia para o mundo, para a qual “um adversário de grande capacidade intelectual é mais útil à religião do que mil adeptos inúteis”. A polêmica toma corpo com o famoso livro de Freud sobre a religião – O Futuro de uma Ilusão –, ao qual Pfister rebate com A ilusão de futuro, e também ao discutirem a contribuição da ciência e da técnica na solução dos problemas da vida; ou sobre a visão pessimista de Freud em confronto com uma interpretação ético-otimista do mundo, quando o pastor cita Nietzsche e seu amigo teólogo e filósofo Albett Schweitzer (também médico e organista notável).
Freud queixa-se, logo nas primeiras curtam, que “os tempos estão muito inquietos”; e mais tarde reclama da velhice e da morte. O pastor tenta reanimá-lo assinalando sua concepção “progressista” da “pulsão da morte”, para ele apenas um declínio da “força vital” (... “mesmo a morte dos indivíduos não pode deter o desenrolar da vontade universal, mas apenas fomentá-la”). A intensidade da época em que viveram, presente incerto e futuro duvidoso, está fortemente dimensionada numa incansável correspondência, fruto de vocações inequívocas voltadas para uma vida mais plena, apesar de divergências tão marcantes. Freud diz a certa altura: “Somente gosto de ler suas cartas; tudo nelas é vida. calor, êxito.” E mais uma vez termina com palavras de afeto e respeito, “na esperança de que o senhor permaneça fiel.”
• Jornal do Brasil, Caderno Ideias, 04/07/1998
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