Opinião
- 04 de março de 2013
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Dona Aparecida, 22 anos depois da decisão “Eu vou frequentar esta igreja!”
Foi num domingo de 1990, quando ela veio espontaneamente à nossa 4ª Igreja Presbiteriana. Recebera um impresso das mãos da irmã Izabel, que cultivava o ministério de visitar hospitais e distribuir literatura. Ao ver o endereço no final do pequeno folheto, Dona Aparecida tomou a decisão consigo: “Eu vou frequentar esta Igreja!”
Obtendo licença para passar o final de semana com parentes, não mais retornou a clínica. Veio, sim, à Igreja, com a firme convicção de que seria curada e que, a partir daí, reestruturaria sua vida.
As pessoas ficaram assustadas ao ouvir sua história e logo recorreram a mim, sugerindo uma avaliação do seu estado de saúde. De fato, os relatos eram preocupantes: oito anos de internação ininterrupta, motivada por grave iniciativa contra a própria vida. Durante a longa hospitalização, mais uma autoagressão violenta acontecera; tudo a indicar risco acentuado.
O estado psíquico naquele momento, porém, era estável. Combinamos, então, que teríamos um seguimento criterioso, com a atenção constante de todos, consultas periódicas e uso regular de medicação psiquiátrica. Ela estava disposta, desde que não retornasse ao hospital.
Naquela época eu estava muito envolvido na reformulação do modelo de assistência em saúde mental. Participava da Comissão Interinstitucional de Saúde Mental, representando a Universidade. Pretendia-se promover mudanças no sistema até então vigente, centrado no atendimento hospitalar. A ênfase era que as pessoas podem permanecer integradas a comunidade, desde que tenham uma rede de suporte social, além de acompanhamento e tratamento adequados.
Meu papel em tais iniciativas era técnico e profissional; mas a motivação íntima baseava-se no Evangelho de Jesus Cristo, que aponta para a dignidade da pessoa humana, mesmo estando doente mental. Respeito e igualdade de oportunidades também são premissas cristãs que nos moviam. A crença de que as Igrejas constituem-se, além de tudo que representam, em excelentes comunidades terapêuticas motivou-me ainda mais na atenção a D. Aparecida.
Igualmente desafiadora foi a solicitação que ela nos trouxe logo depois. Como mãe, desejava recuperar a tutela dos três filhos: a mais velha, então com 12, Luciana com 11 e o caçula com 9 anos. Desde sua internação, no curso da grave depressão emocional que lhe acometeu após o último parto, eles ficaram ao léu. Passaram por diversas instituições, pelas casas de diferentes parentes e conhecidos, por vezes juntos e outras não. Sua intenção era reuni-los num lar, sob seus cuidados.
O pai já falecera quatro anos antes. Na verdade, ele nunca pode oferecer a atenção que todos mereciam. Além de estar sempre viajando, como caminhoneiro que era, excedia-se também na bebida, mostrando-se incapaz para as obrigações requeridas.
Pelas mesmas razões, o próprio casamento já fora alvo de reservas. Ainda com seus 17 anos, D. Aparecida encantou-se com o jovem que era disputado no Bairro de São Mateus. A família não teve meios de dissuadi-la. Decidida a deixar os estudos, recebeu palavras de advertência da jovem professora Maria Mathilde, que a acompanhava na Escola Estadual Fernando Lobo. Tudo em vão: o arroubo do coração foi mais forte.
As dificuldades não tardaram, pois o esposo nunca abriu mão da vida boêmia. Sucedendo-se os três filhos, todo o ônus dos cuidados recaiu sobre a jovem mãe. Assim, estando sempre só diante dos embaraços do cotidiano, sem os recursos necessários, não foi difícil que ela adoecesse. Daí para frente, D. Aparecida ficou a mercê da assistência psiquiátrica oferecida na rede pública de saúde: internações prolongadas, sem respaldo de uma rede de ambulatórios organizada e eficiente. Em consequência, a família dissolveu-se, com prejuízos sensíveis para todos.
Já se passaram 22 anos desde aquela manhã de domingo. D. Aparecida tornou-se um dos membros mais presentes e dedicados da nossa igreja. Ela participa com entusiasmo das reuniões gerais, dos grupos de oração, da sociedade de mulheres... Sua simpatia e seu sorriso sereno contagiam a todos, fazendo-a bem conhecida e estimada. Mesmo agora que reside mais distante, seu lugar no templo está sempre ocupado.
A família recompôs-se progressivamente, passando pelas dificuldades que seriam de se esperar. A herança do distúrbio do humor foi acrescida dos traumas, pelas vicissitudes que a vida impôs a cada um. Ao se reunirem, enfrentaram o estranhamento mútuo, os estigmas acumulados, as desconfianças dos circunstantes, as limitações dos recursos. Tudo favoreceu a que os filhos passassem por crises e descaminhos peculiares. As dificuldades, porém, têm sido vencidas com a dedicação e as orações da mãe zelosa, contando sempre com o apoio dos irmãos da igreja.
Hoje a filha mais velha é uma senhora madura, esposa dedicada, mãe de dois filhos. O caçula busca seu caminho, lutando consigo mesmo, debatendo-se com as ofertas tentadoras que o rodeiam e desafiando os embaraços para sua estabilidade.
Luciana deu ao filho o sugestivo nome de Isaque, aquele do personagem bíblico destacado como “filho da promessa”; e está sempre ao lado da mãe. Os três são presença constante nas reuniões da nossa comunidade. Agora, para alegria de todos nós, tornou-se também membro da Igreja. Após muitas idas e vindas, cumpriu o período de preparação e fez sua Profissão de Fé. Com seus 33 anos de idade, ela não evita a comparação: “Estou me entregando a Jesus com a idade que Ele tinha quando se entregou na cruz por mim!”
Somos testemunhas dos milagres que Deus vem operando. Nada foi obtido por mágica ou efeito espetacular. Ao contrário, os anos têm sido de desafios e lutas, durante os quais muitas pessoas voluntariamente se envolveram. Em tudo temos a satisfação de perceber a mão de Deus agindo na vida desta família e, através dela, na vida de todos nós. Damos muitas graças ao Senhor, de quem provém todo o bem.
Leia mais sobre transtornos mentais na próxima edição da revista Ultimato.
Obtendo licença para passar o final de semana com parentes, não mais retornou a clínica. Veio, sim, à Igreja, com a firme convicção de que seria curada e que, a partir daí, reestruturaria sua vida.
As pessoas ficaram assustadas ao ouvir sua história e logo recorreram a mim, sugerindo uma avaliação do seu estado de saúde. De fato, os relatos eram preocupantes: oito anos de internação ininterrupta, motivada por grave iniciativa contra a própria vida. Durante a longa hospitalização, mais uma autoagressão violenta acontecera; tudo a indicar risco acentuado.
O estado psíquico naquele momento, porém, era estável. Combinamos, então, que teríamos um seguimento criterioso, com a atenção constante de todos, consultas periódicas e uso regular de medicação psiquiátrica. Ela estava disposta, desde que não retornasse ao hospital.
Naquela época eu estava muito envolvido na reformulação do modelo de assistência em saúde mental. Participava da Comissão Interinstitucional de Saúde Mental, representando a Universidade. Pretendia-se promover mudanças no sistema até então vigente, centrado no atendimento hospitalar. A ênfase era que as pessoas podem permanecer integradas a comunidade, desde que tenham uma rede de suporte social, além de acompanhamento e tratamento adequados.
Meu papel em tais iniciativas era técnico e profissional; mas a motivação íntima baseava-se no Evangelho de Jesus Cristo, que aponta para a dignidade da pessoa humana, mesmo estando doente mental. Respeito e igualdade de oportunidades também são premissas cristãs que nos moviam. A crença de que as Igrejas constituem-se, além de tudo que representam, em excelentes comunidades terapêuticas motivou-me ainda mais na atenção a D. Aparecida.
Igualmente desafiadora foi a solicitação que ela nos trouxe logo depois. Como mãe, desejava recuperar a tutela dos três filhos: a mais velha, então com 12, Luciana com 11 e o caçula com 9 anos. Desde sua internação, no curso da grave depressão emocional que lhe acometeu após o último parto, eles ficaram ao léu. Passaram por diversas instituições, pelas casas de diferentes parentes e conhecidos, por vezes juntos e outras não. Sua intenção era reuni-los num lar, sob seus cuidados.
O pai já falecera quatro anos antes. Na verdade, ele nunca pode oferecer a atenção que todos mereciam. Além de estar sempre viajando, como caminhoneiro que era, excedia-se também na bebida, mostrando-se incapaz para as obrigações requeridas.
Pelas mesmas razões, o próprio casamento já fora alvo de reservas. Ainda com seus 17 anos, D. Aparecida encantou-se com o jovem que era disputado no Bairro de São Mateus. A família não teve meios de dissuadi-la. Decidida a deixar os estudos, recebeu palavras de advertência da jovem professora Maria Mathilde, que a acompanhava na Escola Estadual Fernando Lobo. Tudo em vão: o arroubo do coração foi mais forte.
As dificuldades não tardaram, pois o esposo nunca abriu mão da vida boêmia. Sucedendo-se os três filhos, todo o ônus dos cuidados recaiu sobre a jovem mãe. Assim, estando sempre só diante dos embaraços do cotidiano, sem os recursos necessários, não foi difícil que ela adoecesse. Daí para frente, D. Aparecida ficou a mercê da assistência psiquiátrica oferecida na rede pública de saúde: internações prolongadas, sem respaldo de uma rede de ambulatórios organizada e eficiente. Em consequência, a família dissolveu-se, com prejuízos sensíveis para todos.
Já se passaram 22 anos desde aquela manhã de domingo. D. Aparecida tornou-se um dos membros mais presentes e dedicados da nossa igreja. Ela participa com entusiasmo das reuniões gerais, dos grupos de oração, da sociedade de mulheres... Sua simpatia e seu sorriso sereno contagiam a todos, fazendo-a bem conhecida e estimada. Mesmo agora que reside mais distante, seu lugar no templo está sempre ocupado.
A família recompôs-se progressivamente, passando pelas dificuldades que seriam de se esperar. A herança do distúrbio do humor foi acrescida dos traumas, pelas vicissitudes que a vida impôs a cada um. Ao se reunirem, enfrentaram o estranhamento mútuo, os estigmas acumulados, as desconfianças dos circunstantes, as limitações dos recursos. Tudo favoreceu a que os filhos passassem por crises e descaminhos peculiares. As dificuldades, porém, têm sido vencidas com a dedicação e as orações da mãe zelosa, contando sempre com o apoio dos irmãos da igreja.
Hoje a filha mais velha é uma senhora madura, esposa dedicada, mãe de dois filhos. O caçula busca seu caminho, lutando consigo mesmo, debatendo-se com as ofertas tentadoras que o rodeiam e desafiando os embaraços para sua estabilidade.
Luciana deu ao filho o sugestivo nome de Isaque, aquele do personagem bíblico destacado como “filho da promessa”; e está sempre ao lado da mãe. Os três são presença constante nas reuniões da nossa comunidade. Agora, para alegria de todos nós, tornou-se também membro da Igreja. Após muitas idas e vindas, cumpriu o período de preparação e fez sua Profissão de Fé. Com seus 33 anos de idade, ela não evita a comparação: “Estou me entregando a Jesus com a idade que Ele tinha quando se entregou na cruz por mim!”
Somos testemunhas dos milagres que Deus vem operando. Nada foi obtido por mágica ou efeito espetacular. Ao contrário, os anos têm sido de desafios e lutas, durante os quais muitas pessoas voluntariamente se envolveram. Em tudo temos a satisfação de perceber a mão de Deus agindo na vida desta família e, através dela, na vida de todos nós. Damos muitas graças ao Senhor, de quem provém todo o bem.
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Uriel Heckert, doutor em psiquiatria pela Universidade de São Paulo, professor aposentado da Universidade Federal de Juiz de Fora e um dos fundadores do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos.
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