Opinião
- 23 de maio de 2024
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Discurso Divino - Resenha
Por Davi Bastos
Resenha: Discurso Divino - Reflexões filosóficas sobre a tese de que Deus fala
Com imensa alegria recebi a incumbência de resenhar os livros da série Filosofia e Fé Cristã, da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²) e da Editora Ultimato. Devo alertá-lo(a), contudo, que, como editor da série, sou em grande parte responsável pela seleção dos títulos, e um tanto imparcial na atribuição de valor a essas obras. Além disso, já estamos disponibilizando vídeo-resenhas, minicursos, podcasts, lives e guias de estudo sobre os livros. O que eu teria a acrescentar? Optei, portanto, por trazer nessas resenhas um pouco da minha visão como editor da série e do que eu acho que há de mais valor nesses livros, mas sem deixar de pontuar os problemas de cada um. Digo isso não por um preciosismo de adicionar uma crítica à resenha porque sim, mas porque tenho opiniões bem informadas sobre o valor de cada livro, assim como sobre o desvalor de certos pontos específicos em cada um.
Como ponto de partida, optei não pelo primeiro livro publicado em português, mas por resenhar o livro da série que mais me impactou até agora: Discurso divino – reflexões filosóficas sobre a tese de que Deus fala, de Nicholas Wolterstorff. Esse livro renovou a minha percepção da fala de Deus, tendo Deus aberto meus ouvidos para a sua voz por meio das reflexões de Wolterstorff. Coincidentemente, é o livro mais antigo da série na edição anglófona, publicado originalmente em 5 de outubro de 1995, dois meses e uma semana antes do meu nascimento.
A longa espera por uma edição brasileira (quase 28 anos!) se deu não por ser um livro de pouco impacto ou equivocado, mas pelo tamanho da obra (o que encarece muito o projeto de tradução e publicação) e pela relativa complexidade do assunto (que afeta a vendabilidade). Mas não é exagero de minha parte afirmar que todo pastor brasileiro deveria ler esse livro (um que leu, inclusive, me relatou ter sido profundamente movido pelo livro). Certamente devemos incluir teólogos e filósofos cristãos nessa lista e, por que não, grande parte dos professores de escola bíblica e missionários. Mesmo o cristão neófito pode se beneficiar muito da leitura. O que Wolterstorff faz nesse livro é impressionante e belíssimo.
A questão principal: como Deus, que não tem boca ou corpo (ou, ao menos, não tinha corpo durante grande parte da história do universo), pode falar? A questão derivada: o que é falar? Para responder à questão principal apropriadamente, Wolterstorff se volta primeiramente para a questão derivada. Afinal, o que é falar? O que são discursos?
A filosofia anglófona foi fortemente marcada no século 20 por uma virada linguística, isto é, pela investigação do que é a linguagem. E, dentre as diversas teorias da fala que surgiram nesse período, Wolterstorff destaca a teoria dos atos de fala, do filósofo de Oxford John Langshaw Austin. Para essa teoria, falar pode ser diversas coisas. A ação de falar é, na verdade, uma multiplicidade de ações humanas. Dentre elas estão: asserir, perguntar, responder, ordenar, prometer, nomear, desculpar-se, pedir, reclamar, alertar, convidar, parabenizar e recusar-se – citando apenas alguns exemplos. Austin se propõe a entender o que são essas ações de fala (ações ilocucionárias) e se elas podem ser organizadas em grupos ou categorias quanto às suas características constitutivas. Ele também criou a nomenclatura de força ilocucionária para designar a intenção do falante ao falar. Por exemplo, posso dizer “vou me casar” com a intenção de prometer algo, ou de informar alguém, ou com a intenção pura e simplesmente de expressar uma expectativa sobre o futuro, ou de reprovar alguém que esteja me provocando dizendo que não irei me casar, de interpretar um personagem em uma peça de teatro etc. Minha intenção (a força ilocucionária do meu proferimento) muitas vezes determina o tipo de ação que realizo: uma promessa, uma asserção etc.
A teoria de Austin defende então que há um forte elo entre a intenção do autor e o conteúdo do discurso. Mas isso leva a um problema sobre interpretação. Para saber se alguém está prometendo algo, precisaríamos, portanto, saber qual a intenção daquela pessoa ao falar. Todavia, intenções são inescrutáveis: não temos como ter plena certeza da intenção de alguém. Seria, então, a interpretação de uma sentença impossível de ser feita corretamente? Ou, ainda, deveríamos abrir mão do critério de conhecer a intenção do autor para compreender seu discurso?
Algumas escolas de pensamento pós-modernas defendem que sim, devemos partir de outros critérios para que algo conte como uma interpretação de um discurso, porque as intenções são inacessíveis a nós. Wolterstorff discorda dessa posição e a critica duramente no livro. Para ele, o que devemos abandonar é o requisito de certeza plena da intenção do autor, e não toda busca pela intenção autoral. Ainda que eu não tenha certeza absoluta de que a intenção do meu chefe ao dizer “imprima o relatório” com tal tom de voz e em tal contexto era a de ordenar que eu imprimisse o relatório, tenho um grau de confiabilidade e de certeza altíssimo de que essa era a intenção dele ao proferir aquelas palavras. E isso é mais do que suficiente na maior parte dos casos para que possamos interpretar a intenção autoral de um discurso.
Para Wolterstorff, então, falar é fazer uma ação ilocucionária, dotada de certa força ilocucionária. Mas somente a intenção do autor não determina todo tipo de fala. Existem atos de fala específicos que apenas algumas pessoas estão autorizadas a realizar. Por exemplo, apenas uma autoridade legal pode declarar que duas pessoas, a partir de determinado momento, passam a ser marido e mulher. Apenas uma autoridade pode determinar qual será o nome de um navio (o seu dono) ou de uma pessoa (os pais diante do tabelião). Falar, portanto, é uma ação que se insere em um contexto de direitos e deveres. Somente quem foi lesado pode perdoar, e somente quem está em plenas condições mentais pode prometer. Há, inerente ao discurso, uma normatividade: algo que se deve ou se pode fazer, dada a sua posição normativa no contexto (normalmente contexto social) em que se insere.
Wolterstorff vai além de Austin e afirma que isso é aquilo que define o falar. Falar é assumir uma posição normativa, valendo-se de certos direitos e imputando certos deveres. Quem promete possui o direito de fazê-lo e atribui a si mesmo o dever de cumprir a promessa, assim como imputa direitos de cobrar o comportamento prometido àqueles a quem promete. Quem pergunta imputa o dever àqueles a quem pergunta de que respondam à pergunta. Quem assere imputa aos outros o direito de cobrar dele a verdade do que asseriu. E assim por diante. Essa é a teoria normativa do discurso de Wolterstorff.
Tal compreensão do discurso abre, portanto, possibilidades de que alguém fale em nome de outro. Ao conferir a alguém a autoridade e o direito de falar em meu nome, de ser meu embaixador, representante ou procurador, o que aquela pessoa falar em meu nome pode e deve ser atribuído a mim. O meu discurso pode ser enunciado por outras pessoas.
Podemos falar por meio de proferimentos de outros também por apropriação. Podemos nos apropriar de textos ou palavras de outras pessoas de modo que o discurso de outra pessoa se torna o nosso discurso. Posso, por exemplo, adicionar uma frase de Agostinho em uma carta de minha autoria como se eu estivesse falando aquela frase naquele momento.
Mas o discurso também pode ocorrer sem palavras. Um aceno de mão pode ser um veículo de discurso, assim como um desenho detalhado de uma ave em um manual de ornitologia. Símbolos, gestos, sinais, códigos – existem muitas formas de falar.
E, diante dessa compreensão de discurso, podemos nos deparar com um Deus que fala. Deus pode asserir, perguntar, prometer, e pode fazer isso de diversas maneiras. Por meio de uma sarça ardente, de sonhos, visões e aparições, doenças, guerras, desastres naturais – assim como por meio de mensageiros, anjos e profetas, incumbidos de falar algo que Deus disse ou delegados para falar em nome de Deus. Certamente Deus também pode produzir sons e palavras mesmo sem ter um corpo – mas essa não é a única forma pela qual ele pode falar.
Deus também pode se apropriar de discursos de outrem. Wolterstorff defende a inspiração do Espírito Santo na escrita da Bíblia Sagrada, mas também defende que Deus pode se apropriar de discursos de outras pessoas para falar. Assim, o discurso do salmista pode ser tanto inspirado por Deus para revelar certas verdades, como apropriado por Deus para expressar outras verdades.
Além disso, Deus pode se apropriar de seu próprio discurso – algo que ocorre no caso paradigmático analisado por Wolterstorff, em que Agostinho lê um trecho das Escrituras e entende que Deus está falando aquelas palavras com ele naquele momento. Não apenas Deus disse aquelas palavras por intermédio do autor bíblico no passado, mas, muito tempo depois, Deus se apropria do mesmo discurso para falar com Agostinho.
E, para mim, essa é a maior riqueza deste livro. Não a apologia da intenção autoral contra o pós-modernismo (que é excelente). Não o mapa conceitual de tipos de revelação e tipos de discurso (fantástico!). Não sua teoria da interpretação em duas hermenêuticas (muito sagaz). A maior riqueza do livro está em defender que Deus fala ainda hoje, de diversas maneiras.¹ Por meio da natureza, da beleza e do prazer, Deus fala. Por meio da dor, Deus fala. Por meio de canções e histórias, Deus fala. Por meio de conselhos e admoestações, Deus fala. Por meio de sonhos e convicções, Deus fala. Por meio de sua Palavra, Deus fala (e não apenas falou, mas continua falando). Deus é um Deus presente hoje, em nosso dia a dia, e que fala conosco hoje. Essa simples convicção parece ser corroída pelo naturalismo contemporâneo, ou pelo medo de confundir a voz de Deus com vozes humanas ou demoníacas, ou mesmo pelo pecado que nubla nossa mente. Mas Wolterstorff nos mostra que podemos e devemos, enquanto cristãos, ter convicção de que Deus fala hoje e de que precisamos estar atentos à sua voz.
Talvez você não tenha essa dificuldade. Talvez, ao ler sua Bíblia em seu momento devocional, você esteja convicto(a) de que Deus está falando com você naquele instante. Mas muitos de nós, especialmente de círculos teológicos mais temerosos de heresias, temos lido a Bíblia buscando apenas entender o que Deus disse no passado por meio dela ou o que os autores humanos estavam pensando quando escreveram tais textos. E, por mais que sejam atividades importantíssimas, Satanás se regozija quando deixamos de procurar ouvir a voz de Deus hoje, em nosso dia a dia.
Mas aqui cabe a crítica. Na verdade, uma observação acompanhada de um leve alerta. É conhecimento comum de que, já idoso, Wolterstorff manifestou-se publicamente em favor da visão heterodoxa de que a prática homoafetiva não é uma desordem da queda, mas é parte da criação original de Deus, uma manifestação pura e legítima de amor que a igreja deve permitir, inclusive realizando casamentos entre pessoas do mesmo sexo biológico. E, ao ler Discurso Divino, não é difícil ver como a sua hermenêutica poderia abrir espaço para isso. Talvez isso seja suficiente, para muitos, para que sua visão sobre a fala divina e a interpretação bíblica sejam desconsideradas e acusadas de hereges ou ao menos de perigosas. Uma reação forte, mas, até certo ponto, natural. Eu (e muitos outros), contudo, continuo recomendando fortemente a sua obra. Por mais que se possa argumentar em favor de interpretações não ortodoxas a partir da hermenêutica de Discurso Divino, isso não é de forma alguma uma implicação ou um pressuposto da hermenêutica ali apresentada. E digo mais: as riquezas expostas nesse livro não podem (do ponto de vista argumentativo) e não devem (do ponto de vista pragmático guiado pela preocupação com a edificação da Igreja) ser desconsideradas simplesmente por uma postura polêmica tardia de seu autor. Ainda assim, cabe ao leitor atenção e cuidado, para que, ao buscar ouvir a voz de Deus, não se deixe confundir por outras vozes. As muitas maneiras do discurso divino não eliminam e não podem contradizer as maneiras convencionais – a interpretação ortodoxa das Escrituras permanece fundamental para ouvir a voz de Deus.
Não tenho espaço para expor todas as riquezas do livro de Wolterstorff – e reitero que todos se beneficiarão de lê-lo –, mas espero ter contribuído para que possamos procurar ativamente o discurso divino em nosso viver. Que o Santo Espírito nos habilite para ouvirmos a Sua voz, e que Seu discurso, mesmo quando sem palavras (Sl 19.3-4), nos transforme à semelhança de Cristo, nosso Senhor.
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Quais são os desafios trazidos por esse avanço? A ética cristã é suficiente para responder aos aspectos relacionados às novas tecnologias? Como a igreja pode atuar nesse cenário tão desafiador?
É disso que trata a matéria de capa da edição 407 da revista Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» O discurso divino e a voz da igreja, por Nicholas Wolterstorff
» Deus realmente fala com o seu povo?, por Aleff Oliveira
Resenha: Discurso Divino - Reflexões filosóficas sobre a tese de que Deus fala
Com imensa alegria recebi a incumbência de resenhar os livros da série Filosofia e Fé Cristã, da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²) e da Editora Ultimato. Devo alertá-lo(a), contudo, que, como editor da série, sou em grande parte responsável pela seleção dos títulos, e um tanto imparcial na atribuição de valor a essas obras. Além disso, já estamos disponibilizando vídeo-resenhas, minicursos, podcasts, lives e guias de estudo sobre os livros. O que eu teria a acrescentar? Optei, portanto, por trazer nessas resenhas um pouco da minha visão como editor da série e do que eu acho que há de mais valor nesses livros, mas sem deixar de pontuar os problemas de cada um. Digo isso não por um preciosismo de adicionar uma crítica à resenha porque sim, mas porque tenho opiniões bem informadas sobre o valor de cada livro, assim como sobre o desvalor de certos pontos específicos em cada um.
Como ponto de partida, optei não pelo primeiro livro publicado em português, mas por resenhar o livro da série que mais me impactou até agora: Discurso divino – reflexões filosóficas sobre a tese de que Deus fala, de Nicholas Wolterstorff. Esse livro renovou a minha percepção da fala de Deus, tendo Deus aberto meus ouvidos para a sua voz por meio das reflexões de Wolterstorff. Coincidentemente, é o livro mais antigo da série na edição anglófona, publicado originalmente em 5 de outubro de 1995, dois meses e uma semana antes do meu nascimento.
A longa espera por uma edição brasileira (quase 28 anos!) se deu não por ser um livro de pouco impacto ou equivocado, mas pelo tamanho da obra (o que encarece muito o projeto de tradução e publicação) e pela relativa complexidade do assunto (que afeta a vendabilidade). Mas não é exagero de minha parte afirmar que todo pastor brasileiro deveria ler esse livro (um que leu, inclusive, me relatou ter sido profundamente movido pelo livro). Certamente devemos incluir teólogos e filósofos cristãos nessa lista e, por que não, grande parte dos professores de escola bíblica e missionários. Mesmo o cristão neófito pode se beneficiar muito da leitura. O que Wolterstorff faz nesse livro é impressionante e belíssimo.
A questão principal: como Deus, que não tem boca ou corpo (ou, ao menos, não tinha corpo durante grande parte da história do universo), pode falar? A questão derivada: o que é falar? Para responder à questão principal apropriadamente, Wolterstorff se volta primeiramente para a questão derivada. Afinal, o que é falar? O que são discursos?
A filosofia anglófona foi fortemente marcada no século 20 por uma virada linguística, isto é, pela investigação do que é a linguagem. E, dentre as diversas teorias da fala que surgiram nesse período, Wolterstorff destaca a teoria dos atos de fala, do filósofo de Oxford John Langshaw Austin. Para essa teoria, falar pode ser diversas coisas. A ação de falar é, na verdade, uma multiplicidade de ações humanas. Dentre elas estão: asserir, perguntar, responder, ordenar, prometer, nomear, desculpar-se, pedir, reclamar, alertar, convidar, parabenizar e recusar-se – citando apenas alguns exemplos. Austin se propõe a entender o que são essas ações de fala (ações ilocucionárias) e se elas podem ser organizadas em grupos ou categorias quanto às suas características constitutivas. Ele também criou a nomenclatura de força ilocucionária para designar a intenção do falante ao falar. Por exemplo, posso dizer “vou me casar” com a intenção de prometer algo, ou de informar alguém, ou com a intenção pura e simplesmente de expressar uma expectativa sobre o futuro, ou de reprovar alguém que esteja me provocando dizendo que não irei me casar, de interpretar um personagem em uma peça de teatro etc. Minha intenção (a força ilocucionária do meu proferimento) muitas vezes determina o tipo de ação que realizo: uma promessa, uma asserção etc.
A teoria de Austin defende então que há um forte elo entre a intenção do autor e o conteúdo do discurso. Mas isso leva a um problema sobre interpretação. Para saber se alguém está prometendo algo, precisaríamos, portanto, saber qual a intenção daquela pessoa ao falar. Todavia, intenções são inescrutáveis: não temos como ter plena certeza da intenção de alguém. Seria, então, a interpretação de uma sentença impossível de ser feita corretamente? Ou, ainda, deveríamos abrir mão do critério de conhecer a intenção do autor para compreender seu discurso?
Algumas escolas de pensamento pós-modernas defendem que sim, devemos partir de outros critérios para que algo conte como uma interpretação de um discurso, porque as intenções são inacessíveis a nós. Wolterstorff discorda dessa posição e a critica duramente no livro. Para ele, o que devemos abandonar é o requisito de certeza plena da intenção do autor, e não toda busca pela intenção autoral. Ainda que eu não tenha certeza absoluta de que a intenção do meu chefe ao dizer “imprima o relatório” com tal tom de voz e em tal contexto era a de ordenar que eu imprimisse o relatório, tenho um grau de confiabilidade e de certeza altíssimo de que essa era a intenção dele ao proferir aquelas palavras. E isso é mais do que suficiente na maior parte dos casos para que possamos interpretar a intenção autoral de um discurso.
Para Wolterstorff, então, falar é fazer uma ação ilocucionária, dotada de certa força ilocucionária. Mas somente a intenção do autor não determina todo tipo de fala. Existem atos de fala específicos que apenas algumas pessoas estão autorizadas a realizar. Por exemplo, apenas uma autoridade legal pode declarar que duas pessoas, a partir de determinado momento, passam a ser marido e mulher. Apenas uma autoridade pode determinar qual será o nome de um navio (o seu dono) ou de uma pessoa (os pais diante do tabelião). Falar, portanto, é uma ação que se insere em um contexto de direitos e deveres. Somente quem foi lesado pode perdoar, e somente quem está em plenas condições mentais pode prometer. Há, inerente ao discurso, uma normatividade: algo que se deve ou se pode fazer, dada a sua posição normativa no contexto (normalmente contexto social) em que se insere.
Wolterstorff vai além de Austin e afirma que isso é aquilo que define o falar. Falar é assumir uma posição normativa, valendo-se de certos direitos e imputando certos deveres. Quem promete possui o direito de fazê-lo e atribui a si mesmo o dever de cumprir a promessa, assim como imputa direitos de cobrar o comportamento prometido àqueles a quem promete. Quem pergunta imputa o dever àqueles a quem pergunta de que respondam à pergunta. Quem assere imputa aos outros o direito de cobrar dele a verdade do que asseriu. E assim por diante. Essa é a teoria normativa do discurso de Wolterstorff.
Tal compreensão do discurso abre, portanto, possibilidades de que alguém fale em nome de outro. Ao conferir a alguém a autoridade e o direito de falar em meu nome, de ser meu embaixador, representante ou procurador, o que aquela pessoa falar em meu nome pode e deve ser atribuído a mim. O meu discurso pode ser enunciado por outras pessoas.
Podemos falar por meio de proferimentos de outros também por apropriação. Podemos nos apropriar de textos ou palavras de outras pessoas de modo que o discurso de outra pessoa se torna o nosso discurso. Posso, por exemplo, adicionar uma frase de Agostinho em uma carta de minha autoria como se eu estivesse falando aquela frase naquele momento.
Mas o discurso também pode ocorrer sem palavras. Um aceno de mão pode ser um veículo de discurso, assim como um desenho detalhado de uma ave em um manual de ornitologia. Símbolos, gestos, sinais, códigos – existem muitas formas de falar.
E, diante dessa compreensão de discurso, podemos nos deparar com um Deus que fala. Deus pode asserir, perguntar, prometer, e pode fazer isso de diversas maneiras. Por meio de uma sarça ardente, de sonhos, visões e aparições, doenças, guerras, desastres naturais – assim como por meio de mensageiros, anjos e profetas, incumbidos de falar algo que Deus disse ou delegados para falar em nome de Deus. Certamente Deus também pode produzir sons e palavras mesmo sem ter um corpo – mas essa não é a única forma pela qual ele pode falar.
Deus também pode se apropriar de discursos de outrem. Wolterstorff defende a inspiração do Espírito Santo na escrita da Bíblia Sagrada, mas também defende que Deus pode se apropriar de discursos de outras pessoas para falar. Assim, o discurso do salmista pode ser tanto inspirado por Deus para revelar certas verdades, como apropriado por Deus para expressar outras verdades.
Além disso, Deus pode se apropriar de seu próprio discurso – algo que ocorre no caso paradigmático analisado por Wolterstorff, em que Agostinho lê um trecho das Escrituras e entende que Deus está falando aquelas palavras com ele naquele momento. Não apenas Deus disse aquelas palavras por intermédio do autor bíblico no passado, mas, muito tempo depois, Deus se apropria do mesmo discurso para falar com Agostinho.
E, para mim, essa é a maior riqueza deste livro. Não a apologia da intenção autoral contra o pós-modernismo (que é excelente). Não o mapa conceitual de tipos de revelação e tipos de discurso (fantástico!). Não sua teoria da interpretação em duas hermenêuticas (muito sagaz). A maior riqueza do livro está em defender que Deus fala ainda hoje, de diversas maneiras.¹ Por meio da natureza, da beleza e do prazer, Deus fala. Por meio da dor, Deus fala. Por meio de canções e histórias, Deus fala. Por meio de conselhos e admoestações, Deus fala. Por meio de sonhos e convicções, Deus fala. Por meio de sua Palavra, Deus fala (e não apenas falou, mas continua falando). Deus é um Deus presente hoje, em nosso dia a dia, e que fala conosco hoje. Essa simples convicção parece ser corroída pelo naturalismo contemporâneo, ou pelo medo de confundir a voz de Deus com vozes humanas ou demoníacas, ou mesmo pelo pecado que nubla nossa mente. Mas Wolterstorff nos mostra que podemos e devemos, enquanto cristãos, ter convicção de que Deus fala hoje e de que precisamos estar atentos à sua voz.
Talvez você não tenha essa dificuldade. Talvez, ao ler sua Bíblia em seu momento devocional, você esteja convicto(a) de que Deus está falando com você naquele instante. Mas muitos de nós, especialmente de círculos teológicos mais temerosos de heresias, temos lido a Bíblia buscando apenas entender o que Deus disse no passado por meio dela ou o que os autores humanos estavam pensando quando escreveram tais textos. E, por mais que sejam atividades importantíssimas, Satanás se regozija quando deixamos de procurar ouvir a voz de Deus hoje, em nosso dia a dia.
Mas aqui cabe a crítica. Na verdade, uma observação acompanhada de um leve alerta. É conhecimento comum de que, já idoso, Wolterstorff manifestou-se publicamente em favor da visão heterodoxa de que a prática homoafetiva não é uma desordem da queda, mas é parte da criação original de Deus, uma manifestação pura e legítima de amor que a igreja deve permitir, inclusive realizando casamentos entre pessoas do mesmo sexo biológico. E, ao ler Discurso Divino, não é difícil ver como a sua hermenêutica poderia abrir espaço para isso. Talvez isso seja suficiente, para muitos, para que sua visão sobre a fala divina e a interpretação bíblica sejam desconsideradas e acusadas de hereges ou ao menos de perigosas. Uma reação forte, mas, até certo ponto, natural. Eu (e muitos outros), contudo, continuo recomendando fortemente a sua obra. Por mais que se possa argumentar em favor de interpretações não ortodoxas a partir da hermenêutica de Discurso Divino, isso não é de forma alguma uma implicação ou um pressuposto da hermenêutica ali apresentada. E digo mais: as riquezas expostas nesse livro não podem (do ponto de vista argumentativo) e não devem (do ponto de vista pragmático guiado pela preocupação com a edificação da Igreja) ser desconsideradas simplesmente por uma postura polêmica tardia de seu autor. Ainda assim, cabe ao leitor atenção e cuidado, para que, ao buscar ouvir a voz de Deus, não se deixe confundir por outras vozes. As muitas maneiras do discurso divino não eliminam e não podem contradizer as maneiras convencionais – a interpretação ortodoxa das Escrituras permanece fundamental para ouvir a voz de Deus.
Não tenho espaço para expor todas as riquezas do livro de Wolterstorff – e reitero que todos se beneficiarão de lê-lo –, mas espero ter contribuído para que possamos procurar ativamente o discurso divino em nosso viver. Que o Santo Espírito nos habilite para ouvirmos a Sua voz, e que Seu discurso, mesmo quando sem palavras (Sl 19.3-4), nos transforme à semelhança de Cristo, nosso Senhor.
REVISTA ULTIMATO | OS DESAFIOS ÉTICOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS
O avanço da tecnologia nas últimas décadas é maior do que em qualquer outra época da história. Tal aumento se dá em muitas frentes e, mais significativo, confere um caráter tecnológico à vida contemporânea.
Quais são os desafios trazidos por esse avanço? A ética cristã é suficiente para responder aos aspectos relacionados às novas tecnologias? Como a igreja pode atuar nesse cenário tão desafiador?
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Davi Bastos é casado com Samara e pai de Moisés, Anastácia (in memoriam) e Irene. É editor da série de livros Filosofia e Fé Cristã (Editora Ultimato) e doutorando em filosofia na Unicamp.
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