Opinião
- 25 de agosto de 2023
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Deus realmente fala com o seu povo?
Discurso Divino: Reflexões filosóficas sobre a tese de que Deus fala
Por Aleff Oliveira
O autor de Hebreus começa sua epístola com as seguintes palavras:
“Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo.” Hb 1.1-2
A ideia de que Deus fala com seu povo é central no cristianismo. A tese de que Deus mantém um relacionamento pessoal e se comunica com os crentes tem sido assumida desde os primórdios da igreja. Alguém poderia objetar: como Deus fala se Ele não tem boca?
Para os primeiros cristãos, isso não deveria ser um problema. Com a carta aos Hebreus em mãos, tinham ciência de que Deus poderia falar de diversas maneiras; afinal, Ele fez isso através dos profetas e, naqueles tempos, através de seu Filho. Claro, eram pessoas que não tinham o conhecimento que nós temos; sua filosofia e ciência, com ideias primitivas, não lhes permitiam pensar com certa profundidade em assuntos complexos. Correto? Certamente não!
Mas mesmo que concedêssemos tal ponto, o que se seguiria para nós, hoje? Será que pessoas esclarecidas do século 21 podem sustentar uma crença aparentemente tão absurda? Será que, em uma sociedade tão desenvolvida, há alguém, mesmo dentre os cristãos, que poderia sustentar racionalmente a tese de que Deus fala? E, mesmo que fosse possível defender o discurso divino, será que Deus poderia falar através das Escrituras?
Em seu livro “Discurso Divino: Reflexões filosóficas sobre a tese de que Deus fala”, Nicholas Wolterstorff se dedica a lidar com essas e outras questões. Sua defesa é de que não precisamos abandonar a crença, tão presente na história da igreja cristã, de que Deus pode e de fato fala conosco através das Escrituras. E vai além: para Wolterstorff, quando abrimos nossas Bíblias, Deus está falando conosco naquele instante. Não estamos apenas lendo um relato daquilo que Deus disse em um tempo distante. Não! Deus não apenas falou mas ainda fala, e podemos ouvir sua mensagem.
Desenvolvimentos recentes na filosofia da linguagem nos permitem entender racionalmente por que a crença no discurso divino não é absurda. Wolterstorff traz os conceitos de “atos de fala” para a construção de um modelo para a compreensão da comunicação de Deus. Segundo a teoria de atos de fala, “falar”, “dizer” ou “discursar” são ações que realizamos. Contudo, essas ações são compreendidas em duas etapas. Primeiro, há o ato locucionário, que é a ação de proferir palavras. Depois, há o ato ilocucionário, que é a ação que realizamos por meio do proferimento das palavras, mas que não é o simples proferimento: ordenar, prometer, asserir, indagar, entre muitos outros. Depois de adotar tal distinção, Wolterstorff prossegue:
"É óbvio que um único ato ilocucionário pode ter mais de um destinatário; uma pessoa pode dirigir suas observações a várias pessoas. O que não é tão óbvio é que, por meio de um único ato locucionário, uma pessoa pode dizer coisas diferentes a destinatários diferentes. Durante o jantar em família, a mãe pode dizer assertivamente “faltam apenas dois dias para o Natal”. Para seus filhos, ela pode ter dito apenas o que a sentença significa, que faltam apenas dois dias para o Natal. Para seu marido, ela pode ter dito, de maneira indireta e alusiva, que ele pare de enrolar e vá fazer as compras. Um ato locucionário, vários atos ilocucionários, estes sendo distintos para destinatários distintos."
"É óbvio que um único ato ilocucionário pode ter mais de um destinatário; uma pessoa pode dirigir suas observações a várias pessoas. O que não é tão óbvio é que, por meio de um único ato locucionário, uma pessoa pode dizer coisas diferentes a destinatários diferentes. Durante o jantar em família, a mãe pode dizer assertivamente “faltam apenas dois dias para o Natal”. Para seus filhos, ela pode ter dito apenas o que a sentença significa, que faltam apenas dois dias para o Natal. Para seu marido, ela pode ter dito, de maneira indireta e alusiva, que ele pare de enrolar e vá fazer as compras. Um ato locucionário, vários atos ilocucionários, estes sendo distintos para destinatários distintos."
A essência do discurso e o que determina seu sentido vai muito além das palavras usadas: gestos, piscadelas, tom de voz, detalhes do contexto comunicativo, etc. Wolterstorff apresenta então o que é chamado de discurso por apropriação. Ora, se na fala estão acontecendo dois atos, locucionários e ilocucionários, é possível realizar um ato ilocucionário através de um ato locucionário de outra pessoa? Ou seja, é possível que um falante prometa, indague ou ordene através das palavras de outra pessoa? Parece que sim. Frequentemente, dizemos “Faço das palavras dele as minhas!”. Se estivermos no caminho correto, então é possível que Deus fale, ou realize atos ilocucionários através de palavras que Ele mesmo não tenha proferido: palavras proferidas pelos profetas, pelo Filho e palavras registradas nas Escrituras.
Toda essa discussão se dá nos primeiros capítulos da obra. Em um momento posterior, Wolterstorff lida com algumas objeções a teorias que apelem a intenções autorais para a interpretação de um discurso, especialmente as teorias de Paul Ricoeur e Jacques Derrida. Segundo Wolterstorff, para tais autores a interpretação do discurso autoral não é possível; isto é, mesmo que Deus fale através das Escrituras, é impossível, ou pelo menos não é viável, tentar descobrir o que Deus queria dizer quando falou o que está registrado na revelação. O que agora temos é somente o texto, o autor não está presente. Wolterstorff discorda, e sua defesa é impecável.
Toda essa discussão pode parecer desnecessariamente complexa para o cristão comum, ou para os temas abordados na igreja local. De fato, nem todos terão que lidar com este assunto diretamente. Alguns nunca virão a enfrentar qualquer dúvida razoável à ideia de que Deus fala. Mas qualquer um que refletir um pouco mais sobre este assunto acabará se deparando com essa grande questão: Deus fala? E, para estes, o livro de Wolterstorff traz talvez a melhor resposta cristã até o momento a esse desafio.
Para mim, a maior contribuição do livro de Wolterstorff é estabelecer a razoabilidade da afirmação de que Deus fala conosco, e de que isso não se limitou ao passado. Ainda hoje, nos cultos, nas escolas dominicais e em nossos quartos, podemos compreender o discurso divino. Toda vez que acordamos e abrimos nossas Bíblias estamos diante da voz do Deus Todo-Poderoso, Criador dos céus e da terra, e nos deparamos com o fato de que o Ser comparado ao qual nada maior pode ser pensado está falando com uma frágil criatura a quem Ele chama de "filho meu".
- Aleff Oliveira, 28 anos, é auxiliar de comunicação da Editora Ultimato. É estudante de Matemática e gosta de ler bons livros.
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Ao todo, Jesus contou 38 parábolas. Mais de um terço delas trata de assuntos ligados a posses e riquezas. Há cerca de quinhentos versículos sobre oração na Bíblia. Sobre dinheiro e posses são mais de 2.300.
As Escrituras se ocupam desse assunto porque ele é crucial para a fé. Trata-se de onde colocamos nossos afetos e a quem seguimos. Jesus adverte: “Onde estiver o seu tesouro, aí estará também o seu coração” (Mt 6.21).
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