Opinião
- 05 de agosto de 2015
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Deus: problema ou mistério?
Às vezes, questões de suma importância, que se relacionam diretamente com aquilo que denominamos o “destino do ser humano”, tendem a ser distorcidas, ou se convertem em “enigmas” e em jogos de palavras.
Verificamos isso, recentemente, num programa radiofônico. O assunto era a situação da cultura no Brasil. De repente, por uma espécie de acidente, o coordenador do debate desviou a conversa para a questão da existência de Deus. Os debatedores, surpreendidos, assumiram um tom quase de alheamento, como se a gravidade da questão não os tocasse, e a temática fosse semelhante à de um comentário sobre uma manchete política. No debate surgiram opiniões que nos persuadiram de que seria oportuno, antes de se abordar uma questão de tamanha transcendência, encontrar-se tempo para a reflexão.
Noutras palavras, poderá a existência de Deus ser equiparada a um problema, ou seria ela algo mais profundo, um mistério?
Essa distinção foi proposta, após a Segunda Grande Guerra, por um pensador francês, Gabriel Marcel (1889-1973), considerado, do ponto de vista cronológico, o primeiro dos “filósofos existencialistas”. Marcel sustentava que as questões existenciais - antes de serem debatidas, deveriam ser submetidas a uma análise, que lhes atribuísse um grau ontológico. Noutros termos: tais questões deveriam ser distinguidas na sua condição de problemas e mistérios.
Segundo Marcel, a pesquisa filosófica subsequente dependeria dessa avaliação. Se a questão fosse classificada como problema, caberia ao pensamento propor-lhe uma solução, ou soluções, que consistiriam na descoberta de sua articulação teórica com suas exigências visando a resultados concretos.
Exemplifiquemos: uma das questões, que atualmente afligem a humanidade é a substituição das energias poluentes e não-renováveis por outras não poluentes e renováveis, digamos por um tipo de energia que se assemelha à energia solar. Tal questão, obviamente, seria considerada um “problema”.
Em princípio, qualquer problema comporta uma ou mais soluções. Se a questão, porém, se enquadrasse dentro da categoria “mistério”, não existiria solução para ela. O mistério é precisamente aquilo que o homem pode vislumbrar, mas não reduzir a algo que exige uma “solução”. O mistério relaciona-se com o Ser na sua significação mais ampla e profunda. Relaciona-se, principalmente, com o significado da existência humana.
Para tornar mais compreensível sua noção de mistério, Marcel apelou para a encarnação da alma num corpo. I. M. Bochenski, com rara clareza, expõe o pensamento do autor de “Etre et Avoir”:
- As relações entre meu corpo e mim mesmo não podem ser designadas nem como ser nem como ter. Eu sou meu corpo e, no entanto, não me identifico com ele. Essa questão levou o filósofo a distinguir claramente entre o problema e o mistério. Um problema refere-se a alguma coisa que se encontra dentro de mim, que na condição de espectador posso contemplar objetivamente. O mistério, ao contrário, é “alguma coisa em que estou engajado”, e que, por isso, não pode estar essencialmente fora de mim1.
Gabriel Marcel desejava esclarecer ao leitor a ideia de que o mistério não é algo “a que se assiste”, ou que pode ser analisado, decomposto, submetido ao microscópio, ou ao telescópio. Não é invenção ou descoberta que os olhos e as mãos podem ver ou tocar.
O mistério compromete o ser humano, está inserido na existência humana de tal modo que o homem não o pode dominar. Diante do mistério, o homem não se situa à frente do seu destino, como o cientista diante de um problema, seja ele a compreensão clínica do câncer ou a definição da estrutura da matéria do Universo. O mistério é uma espécie de terra da promissão, que o homem pode vislumbrar, mas não palmilhar, visto que ele ultrapassa as categorias de espaço e tempo.
Houve filósofos que formularam objeções ponderáveis à distinção apresentada por Gabriel Marcel. Outros autores consideraram a distinção mais apropriada à teologia do que à filosofia e às ciências empíricas. O fato é que a distinção de Gabriel Marcel não pode ser ignorada quando está em jogo a questão sobre a existência de Deus. Talvez até a distinção de Marcel só se aplique a essa única questão, que, de resto, não é uma questão. É um silencioso “desafio”, que todo homem traz dentro de si, quando se conhece como pessoa.
A fé cristã ensina que a alma de qualquer criatura humana não é material, sendo infundida por Deus num corpo previamente preparado para ela. Um homem e uma mulher são pais na medida em que se tornam causas-segundas do nascimento de um organismo humano. A existência, porém, de um “animal racional”, a que lhe permite dizer: “Eu penso, logo existo”, é uma criação direta do próprio Criador.
A distinção de Gabriel Marcel – voltamos a insistir - talvez só possa aplicar-se num único caso: o mistério da existência de Deus.
Talvez seja possível sugerir um símile. Os olhos do corpo comportam-se semelhantemente aos olhos da alma em relação à luz.
A luz, com efeito, ilumina, permitindo que vejamos os objetos. A luz em si não é vista. A luz natural e a luz da razão iluminam, mas não podem ser apreendidas em si mesmas. Ao nascer, o homem é dado à luz, mas não se torna senhor da luz. A luz natural fornece aos olhos do homem o mundo visível. A luz da razão fornece ao ser humano a inteligibilidade – não a posse de toda a inteligibilidade. Daí o mistério. Este envolve a existência de Deus, que é inteligível, mas como a inteligibilidade humana é finita, não pode adequar-se à inteligibilidade do Criador.
Quando Tomás de Aquino, no seu “Comentário ao Credo”, após citar dois textos sagrados, o do Livro de Jó: “Deus é grande demais para que o possamos conhecer” (36.26), e o do Salmo 13.1: “Diz o insensato no seu coração: Deus não existe”, acrescenta:
“Tudo o que pode ser compreendido ou pensado sobre Deus será sempre menor do que o próprio Deus”.
E mais:
“Nenhum filósofo, antes da vinda de Cristo, apesar de todos os seus esforços, pôde conhecer, a respeito de Deus e das coisas necessárias à vida eterna, o que, depois de sua vinda, qualquer velhinha conhece pela Fé”.
Juntando as citações, ele possivelmente desejou significar o seguinte:
Se a nossa inteligência é tão débil, seria insensato crer, a respeito de Deus, somente naquilo que o homem pode conhecer por si.
Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), que se declarava ateu, admirou-se de que, no mundo atual, poucas pessoas se preocupam em demonstrar a existência de Deus. Mas talvez devêssemos admirar-nos ainda mais de que cientistas, de porte, tenham a pretensão de demonstrar a não-existência de Deus. Não seria mais sensato não ter tal pretensão? O silêncio do agnosticismo já é um ato de adoração.
A noção de mistério, tal qual a entendia Gabriel Marcel, aplica-se apenas à questão das questões, à pergunta que o coordenador do debate (a que nos referimos no início desta crônica) suscitou, sem se aperceber de sua incomensurabilidade.
Nota:
1. A Filosofia Contemporânea Ocidental. São Paulo, Editora Herder, 1962. p. 173.
• Armindo Trevisan é doutor em filosofia e professor de história da arte na Universidade Federa do Rio Grande do Sul. Escreve para a revista Cidade Nova.
Foto: Simon S. / freeimages.com
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Verificamos isso, recentemente, num programa radiofônico. O assunto era a situação da cultura no Brasil. De repente, por uma espécie de acidente, o coordenador do debate desviou a conversa para a questão da existência de Deus. Os debatedores, surpreendidos, assumiram um tom quase de alheamento, como se a gravidade da questão não os tocasse, e a temática fosse semelhante à de um comentário sobre uma manchete política. No debate surgiram opiniões que nos persuadiram de que seria oportuno, antes de se abordar uma questão de tamanha transcendência, encontrar-se tempo para a reflexão.
Noutras palavras, poderá a existência de Deus ser equiparada a um problema, ou seria ela algo mais profundo, um mistério?
Essa distinção foi proposta, após a Segunda Grande Guerra, por um pensador francês, Gabriel Marcel (1889-1973), considerado, do ponto de vista cronológico, o primeiro dos “filósofos existencialistas”. Marcel sustentava que as questões existenciais - antes de serem debatidas, deveriam ser submetidas a uma análise, que lhes atribuísse um grau ontológico. Noutros termos: tais questões deveriam ser distinguidas na sua condição de problemas e mistérios.
Segundo Marcel, a pesquisa filosófica subsequente dependeria dessa avaliação. Se a questão fosse classificada como problema, caberia ao pensamento propor-lhe uma solução, ou soluções, que consistiriam na descoberta de sua articulação teórica com suas exigências visando a resultados concretos.
Exemplifiquemos: uma das questões, que atualmente afligem a humanidade é a substituição das energias poluentes e não-renováveis por outras não poluentes e renováveis, digamos por um tipo de energia que se assemelha à energia solar. Tal questão, obviamente, seria considerada um “problema”.
Em princípio, qualquer problema comporta uma ou mais soluções. Se a questão, porém, se enquadrasse dentro da categoria “mistério”, não existiria solução para ela. O mistério é precisamente aquilo que o homem pode vislumbrar, mas não reduzir a algo que exige uma “solução”. O mistério relaciona-se com o Ser na sua significação mais ampla e profunda. Relaciona-se, principalmente, com o significado da existência humana.
Para tornar mais compreensível sua noção de mistério, Marcel apelou para a encarnação da alma num corpo. I. M. Bochenski, com rara clareza, expõe o pensamento do autor de “Etre et Avoir”:
- As relações entre meu corpo e mim mesmo não podem ser designadas nem como ser nem como ter. Eu sou meu corpo e, no entanto, não me identifico com ele. Essa questão levou o filósofo a distinguir claramente entre o problema e o mistério. Um problema refere-se a alguma coisa que se encontra dentro de mim, que na condição de espectador posso contemplar objetivamente. O mistério, ao contrário, é “alguma coisa em que estou engajado”, e que, por isso, não pode estar essencialmente fora de mim1.
Gabriel Marcel desejava esclarecer ao leitor a ideia de que o mistério não é algo “a que se assiste”, ou que pode ser analisado, decomposto, submetido ao microscópio, ou ao telescópio. Não é invenção ou descoberta que os olhos e as mãos podem ver ou tocar.
O mistério compromete o ser humano, está inserido na existência humana de tal modo que o homem não o pode dominar. Diante do mistério, o homem não se situa à frente do seu destino, como o cientista diante de um problema, seja ele a compreensão clínica do câncer ou a definição da estrutura da matéria do Universo. O mistério é uma espécie de terra da promissão, que o homem pode vislumbrar, mas não palmilhar, visto que ele ultrapassa as categorias de espaço e tempo.
Houve filósofos que formularam objeções ponderáveis à distinção apresentada por Gabriel Marcel. Outros autores consideraram a distinção mais apropriada à teologia do que à filosofia e às ciências empíricas. O fato é que a distinção de Gabriel Marcel não pode ser ignorada quando está em jogo a questão sobre a existência de Deus. Talvez até a distinção de Marcel só se aplique a essa única questão, que, de resto, não é uma questão. É um silencioso “desafio”, que todo homem traz dentro de si, quando se conhece como pessoa.
A fé cristã ensina que a alma de qualquer criatura humana não é material, sendo infundida por Deus num corpo previamente preparado para ela. Um homem e uma mulher são pais na medida em que se tornam causas-segundas do nascimento de um organismo humano. A existência, porém, de um “animal racional”, a que lhe permite dizer: “Eu penso, logo existo”, é uma criação direta do próprio Criador.
A distinção de Gabriel Marcel – voltamos a insistir - talvez só possa aplicar-se num único caso: o mistério da existência de Deus.
Talvez seja possível sugerir um símile. Os olhos do corpo comportam-se semelhantemente aos olhos da alma em relação à luz.
A luz, com efeito, ilumina, permitindo que vejamos os objetos. A luz em si não é vista. A luz natural e a luz da razão iluminam, mas não podem ser apreendidas em si mesmas. Ao nascer, o homem é dado à luz, mas não se torna senhor da luz. A luz natural fornece aos olhos do homem o mundo visível. A luz da razão fornece ao ser humano a inteligibilidade – não a posse de toda a inteligibilidade. Daí o mistério. Este envolve a existência de Deus, que é inteligível, mas como a inteligibilidade humana é finita, não pode adequar-se à inteligibilidade do Criador.
Quando Tomás de Aquino, no seu “Comentário ao Credo”, após citar dois textos sagrados, o do Livro de Jó: “Deus é grande demais para que o possamos conhecer” (36.26), e o do Salmo 13.1: “Diz o insensato no seu coração: Deus não existe”, acrescenta:
“Tudo o que pode ser compreendido ou pensado sobre Deus será sempre menor do que o próprio Deus”.
E mais:
“Nenhum filósofo, antes da vinda de Cristo, apesar de todos os seus esforços, pôde conhecer, a respeito de Deus e das coisas necessárias à vida eterna, o que, depois de sua vinda, qualquer velhinha conhece pela Fé”.
Juntando as citações, ele possivelmente desejou significar o seguinte:
Se a nossa inteligência é tão débil, seria insensato crer, a respeito de Deus, somente naquilo que o homem pode conhecer por si.
Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), que se declarava ateu, admirou-se de que, no mundo atual, poucas pessoas se preocupam em demonstrar a existência de Deus. Mas talvez devêssemos admirar-nos ainda mais de que cientistas, de porte, tenham a pretensão de demonstrar a não-existência de Deus. Não seria mais sensato não ter tal pretensão? O silêncio do agnosticismo já é um ato de adoração.
A noção de mistério, tal qual a entendia Gabriel Marcel, aplica-se apenas à questão das questões, à pergunta que o coordenador do debate (a que nos referimos no início desta crônica) suscitou, sem se aperceber de sua incomensurabilidade.
Nota:
1. A Filosofia Contemporânea Ocidental. São Paulo, Editora Herder, 1962. p. 173.
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Foto: Simon S. / freeimages.com
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Ricardo Barbosa