Opinião
- 24 de julho de 2012
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Deus no inferno de cada dia
“E se esse mundo for o inferno de outro planeta?”. A frase é de Aldous Huxley. No filme “The Sunset Limited”, White, um professor que ia jogar-se nos trilhos do metrô do Harlem, quer escapar do inferno que é este mundo, mas é salvo a contragosto por um ex-presidiário, pregador evangélico. Travam um diálogo intenso, no precário quarto do cortiço onde mora o pregador: Jackson: – “Você diz que quer morrer, e que não se importa com nada. Você já leu a Bíblia, entre os milhares de livros que você diz ter lido? Confio em suas palavras, sei que elas chegarão até ao seu coração. Estou lhe falando porque acredito que elas são o caminho para salvar”, afirmando a concepção evangélica comum.
White: “Você perde seu tempo. Não desistirei de morrer. As coisas em que acredito, por serem verdadeiras, são muito frágeis”. O pregador retruca: – “Este é um mundo de escuridão, professor”. White continua: – “Eu admito, mas saber disso não me liberta da escuridão. De fato, não tenho escolha. Estou lhe dizendo o que compreendo sobre isso. Anseio pelo mundo escuro, desejo a escuridão. Oro pela morte verdadeira, definitiva”. Prosseguindo: – “Se eu achasse que no além encontraria com um monte de pessoas incômodas que conheci na vida, eu não sei o que faria. Seria o maior dos pesadelos. Eu quero que os mortos permaneçam mortos para sempre. Quero ser um deles. Desejo a escuridão, a solidão, o silêncio e a paz para sempre. Não considero o meu estado de espírito como uma visão pessimista do mundo. Vejo-o como ele é. Se as pessoas também pudessem ver a vida como ela é, sem ilusões, sem sonhos inúteis, escolheriam morrer o mais rápido possível”.
O diálogo continua, a questão da salvação permeia a conversa, e White vai construindo o “grand finale”: – “Eu não acredito em Deus, você acha isso possível? Os que crêem parecem não ouvir o clamor dos que sofrem. Ou os gemidos de dor e coletiva lhes parece o som mais agradável aos ouvidos. Se estes pudessem ser consequentes, em suas preces mandariam queimar aqueles que condenam numa fogueira, que se queimassem tanto a ponto de só restarem umas poucas cinzas nos escombros do universo”.
Por fim, em golpe mortal, diante do pregador perplexo e sem respostas: – “Em suas mãos há sempre um machado pronto para cortar a árvore da alegria. Árvore da vida. Vocês não acreditam no prazer e na alegria. Toda estrada que vocês trilham termina na morte de cada amizade, de cada amor. Aqui está a comunidade humana da qual todos somos sócios. O tormento humano, a perda, a traição, a dor, a idade, a velhice, as doenças hediondas, a insanidade geral, ignoradas por vocês, levam-me a uma conclusão. O que escolheram para salvar perecerá para sempre na obscuridade. Não há salvação”.
Certamente, não estamos falando da “depravação total da humanidade”, em mais um infeliz momento de Calvino. Karl Barth, de certo modo, repara a doutrina rigorosa da perdição de todos os homens e mulheres, ampliando o agir de Deus muito além do julgamento e condenação ao inferno, quando discute a humanidade de Deus, alcançando este mesmo mundo como alguém que sofre, que chora, que anda em estradas sujeitas aos salteadores, que acaba torturado e assassinado pelos poderes deste mundo. Não é o homem que vai a Deus para ser salvo, mas Deus que vem ao homem para salvá-lo. Jesus foi ressuscitado por Deus, diz o Novo Testamento. Rompido o tabu literalista, ou fundamentalista, a respeito da revelação adocionista, talvez precisemos ampliar nossos conhecimentos indo além do mistério.
O problema incômodo, porém teórico, sobre a morte, o inferno e a salvação, não pode ficar restrito a repetições doutrinais ou catequéticas. São piores que o silêncio – também indesejável –, diria o catalão Andrés Queiruga. Como o personagem do roteirista Cormac McCarthy, em “The Sunset Limited”, aqueles que não discutem, ou ignoram, deixam-nos expostos ao vazio. O vazio não nos interessa. A fé não se move no vácuo. A luz é preferível à escuridão e a solidão, ausência de comunhão, nas quais o professor White quer mergulhar para sempre.
Teriam perguntado a José Saramago, Nobel de Literatura: Como podem homens sem Deus ser bons? Ele respondeu: – “Como podem homens com Deus ser tão maus?” Os temas mais diversos aparecem no diálogo observado acima, como a inexistência do amor real, assim como a abstração e substituição narcisista dos significados do amor; como a palavra sobre uma salvação impossível, porque “salvacionistas”, em catarse pessoal, ignoram a vida real das pessoas em sua concretude.
A revelação de Deus, ao contrário, não nasce de nenhuma doutrina ou escritura. Porque são elas que nos dizem o que Deus quereria dizer, e não do misterioso agir de Deus. Mas a inspiração vem de dentro da existência humana, é um dar-se conta de que Deus está atualizando a fé necessária para a salvação da humanidade. Deus está nos procurando e dando-se a conhecer através da realidade humana, onde há injustiças, abusos e desigualdades. Deus está na realidade de um mundo que sofre, buscando nos convencer de seu agir em favor do oprimido e do desesperado, como disse Richard Shaull.
O uso do poder de julgar, aplicado aos que não compartilham de pregações abstratas; o medo do inferno e o horror do próximo; a ausência de indignação sobre as grandes injustiças misturam-se com outras ênfases, um modo primitivo, um inferno geográfico, uma cosmologia simplista que vê o mundo sem história cultural ou geológica, social, política, sem inovações cúlticas e teológicas, negando a fé histórica.
A simbologia da revelação de Deus dentro e através da realidade humana confronta-se com questões dominadas por valores de sobrevivência econômica, misturada com a religião que mantém esticado o cabresto e prende o antolho que impede o fiel de ver a realidade. À instalação da liberdade, em níveis de consciência e de vida política, a fé transcendente descendo à temporalidade; à violência das sociedades autoritárias; à falta de pão, ao crime diário e ao sofrimento desnecessário; ao sangue dos inocentes derramado sem sentido, não são problemas de pessoas desfocadas quanto à revelação de Jesus Cristo diante da dignidade das etnias, dos povos, dos oprimidos, dos discriminados, dos perseguidos por causa da consciência indignada, insurgentes, diante dos abismos das desigualdades, das injustiças, dos abusos contra crianças, mulheres, idosos, deficientes e doentes, em quaisquer lugares?
Em primeiro lugar, cremos, Deus continua agindo para salvar o homem de si mesmo. Através de Jesus de Nazaré, conhecemos “seu” Pai, a quem chamou de “Paínho”, “Abbá”, que cria por amor, repele o mal e nem sequer admite sua prática, e que, situando-se do nosso lado, luta incansavelmente para salvar-nos de nós mesmos. Como o pai da parábola, não nos submete ao castigo, mas vai às nossas encruzilhadas, e às porteiras da vida com o coração triste por nossas decisões em esbanjar as riquezas da vida, mas cheio de esperança que retornemos ao lugar da salvação.
É pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e autor de livros como “Pedagogia da Ganância" (2013) e "O Dragão que Habita em Nós” (2010).
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