Opinião
- 27 de abril de 2023
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Deus não tem boca, mas fala!
Por Guilherme de Carvalho
Há muitos anos eu tive uma conversa marcante sobre a natureza da Bíblia com um professor de teologia de vasta erudição e enorme paciência. Depois de um “beco sem saída” sobre a relação entre o natural e o sobrenatural, levantei a bola: “Mas... Deus fala?”. A resposta foi inequívoca: “É claro que não. Deus não tem boca. Como ele poderia falar?”. Incrédulo com a resposta do meu professor, retruquei: “Mas e quanto à tese de Wolterstorff?”. Ele deu de ombros: “Não gosto de Wolterstorff”! Ora, é claro que Deus não tem boca, mas a questão era outra: Deus falou ou apenas homens falaram sobre Deus?
Em Discurso Divino, Nicholas Wolterstorff mostra que nada disso é necessário. Ele parte da teoria dos atos de fala (speech acts) de John L. Austin e John Searle, segundo a qual a linguagem não é apenas um jogo conceitual ou uma comunicação de conteúdos, mas um tipo de ação que realiza gestos ou atos em relação ao interlocutor (afirmar, dirigir, prometer, explicar, convidar etc.). Assim, haveria a locução – aquilo que é dito – e a ilocução – o ato realizado pelo falante quando ele faz seu enunciado.
Por exemplo, a frase “eu aprendi com meu pai a ser honesto”, no contexto de uma discussão sobre dívidas, não apenas diz algo sobre a qualidade da educação moral que o sujeito recebeu (o ato locucionário), mas também funciona como uma promessa ou garantia de que a dívida será paga (um ato ilocucionário compromissivo). E essa promessa coloca o falante e o ouvinte dentro de uma rede de obrigações morais.
Pois bem: ao distinguir entre o que é dito e o que estamos fazendo com o que dissemos, a tese de Austin-Searle implica a possibilidade de uma pessoa realizar um ato ilocucionário usando o discurso de outra pessoa. Pense, por exemplo, na situação em que um chefe solicita a seu secretário a redação de uma carta ao fornecedor de produtos da empresa, que deve conter tais e tais assuntos, e cobrar tais e tais providências, com um tom levemente ácido, mas não muito. Imagine que esse secretário, sendo bom redator, experiente e funcionário de longa data desse chefe, escreva uma carta perfeita e bem temperada. O chefe sorri e observa: “Você entrou dentro da minha cabeça!”. É claro que, nesse caso, o funcionário preparou o enunciado locucionário; mas assinada e enviada a carta, o chefe realizou por meio dela um ato ilocucionário de cobrança em relação ao fornecedor.
A sacada genial de Wolterstorff foi propor que essa estrutura ordinária de nossa experiência comunicativa seria suficiente para explicar como Deus pode falar em linguagem humana; ele o faria usando o que um ser humano disse para dizer a sua própria Palavra. E, a partir desse insight, ele argumenta que a Bíblia, a despeito de reunir enunciados locucionários de dezenas de pessoas, poderia ser entendida como um discurso ilocucionário de Deus. Diferentes peças e formas literárias podem ter sido reunidas providencialmente, algumas resultando de revelações direitas, e outras sendo até mesmo apropriadas por Deus com propósitos ilocucionários distintos (pensemos, por exemplo, em longos trechos históricos e sapienciais do Antigo Testamento). Em todo caso, uma vez que Deus compreende perfeitamente o discurso de qualquer pessoa, podemos confiar no resultado desse grande arranjo comunicativo que é a Bíblia Sagrada: ela seria a Palavra de Deus escrita.
A obra do doutor Wolterstorff estende a defesa filosófica da racionalidade da fé em Deus para a racionalidade da crença cristã nas Escrituras, lança as bases para uma renovação integral da hermenêutica bíblica e abre uma nova janela para a própria leitura devocional da Bíblia; em suma, mostra que Deus não tem boca, mas fala. Discurso Divino confirma novamente Nicholas Wolterstorff como um dos maiores filósofos cristãos de nosso tempo.
Artigo originalmente publicado na edição 401 de Ultimato.
Saiba mais:
» Ciência e Religião São Compatíveis, Alvin Plantinga e Daniel Dennett
» Teologia Analítica – A teologia em diálogo com a filosofia, Thomas H. McCall
» Lamento - A fé em meio ao sofrimento e à morte, Nicholas Wolterstorff
» A filosofia afasta as pessoas de Deus? Perguntas e respostas fundamentais sobre filosofia
Há muitos anos eu tive uma conversa marcante sobre a natureza da Bíblia com um professor de teologia de vasta erudição e enorme paciência. Depois de um “beco sem saída” sobre a relação entre o natural e o sobrenatural, levantei a bola: “Mas... Deus fala?”. A resposta foi inequívoca: “É claro que não. Deus não tem boca. Como ele poderia falar?”. Incrédulo com a resposta do meu professor, retruquei: “Mas e quanto à tese de Wolterstorff?”. Ele deu de ombros: “Não gosto de Wolterstorff”! Ora, é claro que Deus não tem boca, mas a questão era outra: Deus falou ou apenas homens falaram sobre Deus?
Em Discurso Divino, Nicholas Wolterstorff mostra que nada disso é necessário. Ele parte da teoria dos atos de fala (speech acts) de John L. Austin e John Searle, segundo a qual a linguagem não é apenas um jogo conceitual ou uma comunicação de conteúdos, mas um tipo de ação que realiza gestos ou atos em relação ao interlocutor (afirmar, dirigir, prometer, explicar, convidar etc.). Assim, haveria a locução – aquilo que é dito – e a ilocução – o ato realizado pelo falante quando ele faz seu enunciado.
Por exemplo, a frase “eu aprendi com meu pai a ser honesto”, no contexto de uma discussão sobre dívidas, não apenas diz algo sobre a qualidade da educação moral que o sujeito recebeu (o ato locucionário), mas também funciona como uma promessa ou garantia de que a dívida será paga (um ato ilocucionário compromissivo). E essa promessa coloca o falante e o ouvinte dentro de uma rede de obrigações morais.
Pois bem: ao distinguir entre o que é dito e o que estamos fazendo com o que dissemos, a tese de Austin-Searle implica a possibilidade de uma pessoa realizar um ato ilocucionário usando o discurso de outra pessoa. Pense, por exemplo, na situação em que um chefe solicita a seu secretário a redação de uma carta ao fornecedor de produtos da empresa, que deve conter tais e tais assuntos, e cobrar tais e tais providências, com um tom levemente ácido, mas não muito. Imagine que esse secretário, sendo bom redator, experiente e funcionário de longa data desse chefe, escreva uma carta perfeita e bem temperada. O chefe sorri e observa: “Você entrou dentro da minha cabeça!”. É claro que, nesse caso, o funcionário preparou o enunciado locucionário; mas assinada e enviada a carta, o chefe realizou por meio dela um ato ilocucionário de cobrança em relação ao fornecedor.
A sacada genial de Wolterstorff foi propor que essa estrutura ordinária de nossa experiência comunicativa seria suficiente para explicar como Deus pode falar em linguagem humana; ele o faria usando o que um ser humano disse para dizer a sua própria Palavra. E, a partir desse insight, ele argumenta que a Bíblia, a despeito de reunir enunciados locucionários de dezenas de pessoas, poderia ser entendida como um discurso ilocucionário de Deus. Diferentes peças e formas literárias podem ter sido reunidas providencialmente, algumas resultando de revelações direitas, e outras sendo até mesmo apropriadas por Deus com propósitos ilocucionários distintos (pensemos, por exemplo, em longos trechos históricos e sapienciais do Antigo Testamento). Em todo caso, uma vez que Deus compreende perfeitamente o discurso de qualquer pessoa, podemos confiar no resultado desse grande arranjo comunicativo que é a Bíblia Sagrada: ela seria a Palavra de Deus escrita.
A obra do doutor Wolterstorff estende a defesa filosófica da racionalidade da fé em Deus para a racionalidade da crença cristã nas Escrituras, lança as bases para uma renovação integral da hermenêutica bíblica e abre uma nova janela para a própria leitura devocional da Bíblia; em suma, mostra que Deus não tem boca, mas fala. Discurso Divino confirma novamente Nicholas Wolterstorff como um dos maiores filósofos cristãos de nosso tempo.
Artigo originalmente publicado na edição 401 de Ultimato.
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Não é fácil assumir-se fraco. Não é nem um pouco confortável vivenciar a fraqueza. Ela causa dor, limita, envergonha, humilha, incomoda, nos encurrala. É, muitas vezes, o lugar do desânimo, da ansiedade, do desespero, da tristeza, da desorientação, do cansaço, da indiferença. Mas é também o lugar onde clamamos com toda a sinceridade pela força que vem de Deus. E ele nos atende!
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É teólogo, mestre em Ciências da Religião e diretor de L’Abri Fellowship Brasil. Pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e presidente da Associação Kuyper para Estudos Transdisciplinares, é também organizador e autor de Cosmovisão Cristã e Transformação e membro fundador da Associação Brasileira Cristãos na Ciência (ABC2).
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