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- 25 de agosto de 2015
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Deus não irá a público?
O Portal Ultimato publica a seguir um trecho do nosso lançamento de agosto, Surpreendido pelas Escrituras, do respeitado teólogo N. T. Wright. O livro fala sobre temas atuais, inclusive, política. O texto foi retirado do capítulo “Nossa política é muito pequena” e, apesar de ter sido escrito em um contexto norte-americano e europeu, trata de questões universais. Talvez nos ajude a pensar também em como os evangélicos brasileiros têm refletido sobre a relação entre política e religião. Confira.
***
Ninguém se deu ao trabalho de levar a sério pessoas como Bowker1 porque, por duzentos anos, a sociedade ocidental acreditou, mais ou menos, que Deus não faz parte da vida pública. O mundo dividido do Iluminismo, cuja justificativa aparentemente sensível era evitar as pavorosas guerras religiosas, não tinha um motivo tão benigno assim: excluímos Deus da vida pública a fim de podermos dirigir o mundo para nosso próprio benefício.
Uma vez que o deísmo deu lugar ao ateísmo público implícito e, depois, explícito, a democracia ocidental justificou sua existência com o lema “vox populi vox Dei”. Assim, deu uma aparência de teologia pública, enquanto, na verdade, aprisionava Deus nas urnas e neutralizava qualquer possível crítica política do evangelho cristão. Por esta perspectiva, a grande realização de William Wilberforce no primeiro terço do século 19 foi manter uma crítica
política baseada explicitamente na Bíblia em um mundo onde isso era visto cada vez mais como uma gafe filosófica e cultural.
Contudo, a disjunção entre Deus e o mundo público tem se infiltrado na visão de mundo adotada pelo mundo ocidental. Percebemos isso principalmente na retórica cada vez mais estridente de secularistas que, ainda apegados a sua tese claramente ultrapassada agora, realmente acreditam que a religião deveria ter murchado e morrido ha muito tempo, voltando-se para ela com raiva e incompreensão por sua presunção não só de ainda existir, mas também de ter algo a dizer em público. É fascinante observar o modo como Dawkins, Hitchens e outros repetiram, com uma indignação moral cada vez maior, o discurso de Voltaire no final do século 18 e de Nietzsche no final do 19. Eles representam o auge da modernidade tardia, e sua maior indignação é explicada pelo aumento alarmante do fundamentalismo de vários aspectos em diversos continentes. Na verdade, quero sugerir aqui que a Bíblia nos permite percorrer todo um caminho de sabedoria – e não apenas até a metade – entre secularismo e fundamentalismo, mas em uma trajetória que mostra que esses irmãos feios simplesmente não captaram a ideia, representando dois extremos de uma visão de mundo completamente desacreditada.
Por que ela foi desacreditada? Talvez já não seja necessária a argumentação pós-moderna de que as grandes histórias da modernidade perderam a força. O dia 11 setembro de 2001 foi um momento pós-moderno decisivo com duas grandes narrativas se colidindo e explodindo, e a resposta para esse acontecimento na forma de uma guerra modernista ainda mais violenta e um exemplo impressionante do que é não entender o xis da questão. Fui acusado, principalmente por algumas pessoas do alto escalão da Casa Branca e de outros lugares, de eu mesmo não ter entendido o xis da questão aqui, mas tenho medo de ser impenitente; e minha falta de penitência não tem relação alguma, como absurdamente sugeriram meus detratores, com ser brando com o terror ou com desconsiderar Romanos 13 e sua legitimação dos governos no poder. Acostumei-me a receber e-mails queixosos que diziam: “Gostamos do que você escreve sobre Jesus e a ressurreição; ficamos fascinados com o que você diz sobre Paulo; mas por que você critica tanto o nosso presidente?”. A minha resposta é: “Se vocês realmente lessem o que digo sobre Jesus e o reino e entendessem sobre o que Paulo realmente estava falando, teriam de levar a sério as questões de Deus na esfera pública de uma maneira totalmente diferente. Dizer que eu confundi questões espirituais com questões políticas é simplesmente reafirmar a velha dicotomia do Iluminismo em um momento em que ela é desastrosamente inadequada, bem como falaz”. Falarei mais sobre isso em breve.
Enquanto isso, as grandes questões éticas e publico-políticas de nossos dias continuam a ecoar: a dívida global, a crise ecológica, a nova pobreza em nossa envernizada sociedade ocidental, as questões de gênero e sexo, as pesquisas com células-tronco, a eutanásia e, principalmente, as questões complexas do Oriente Médio. Enquanto os debates forem realizados segundo o fundamentalismo e o secularismo, não passarão de uma discussão agressiva. Neste ponto, ironicamente, o sonho do Iluminismo começou a se consumir, uma vez que sua maior forca (a ênfase na razão como o meio para a coexistência pacífica) foi prejudicada por sua maior fraqueza: a divisão dualista entre Deus e o mundo público, com o discurso público humano desmoronando em confusão e emocionalismo.
Talvez a consequência impensada da revolução pós-moderna seja revelar que, se a razão deve fazer o que diz no rótulo, talvez precisemos, afinal, contar com Deus em público. Quero, portanto, fazer uma proposta que pode nos ajudar a percorrer um caminho de sabedoria bíblica enquanto avançamos em direção ao futuro perigoso e incerto da pós-pós-modernidade (a vida após a vida após a modernidade, se você preferir). O mundo de amanhã precisa urgentemente encontrar um caminho que não seja o do secularismo, nem o do fundamentalismo, nem o da mera desconstrução que declara que ambos estão errados, sem ter nada para colocar no lugar deles. Você não se surpreenderá ao saber que acredito que tal caminho pode ser encontrado quando voltamos aos documentos do fundamento da fé cristã – em particular, os quatro Evangelhos.
• N. T. Wright foi bispo de Durham, na Inglaterra, e é um dos mais conhecidos e respeitados estudiosos do Novo Testamento da atualidade. Foi professor das universidades de Cambridge e Oxford por vinte anos e é professor visitante de universidades como Harvard Divinity School, Universidade Hebraica de Jerusalém e Universidade Gregoriana em Roma, entre outras. É autor de mais de quarenta livros, entre os quais Simplesmente Cristão, Surpreendido pela Esperança, O Mal e a Justiça de Deus e Eu Creio. E Agora? e o lançamento de agosto da Editora Ultimato Surpreendido pelas Escrituras.
Nota:
1. Em 1987, o teólogo britânico John Bowker publicou “Licensed Insanities” [Insanidades permitidas].
Imagem: La Petite Tombe/Rembrandt van Rijn/H. O. Havemeyer Collection
Leia também
Cristianismo e política
Religião e Política, sim; Igreja e Estado, não
Cosmovisão Cristã e Transformação
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Ninguém se deu ao trabalho de levar a sério pessoas como Bowker1 porque, por duzentos anos, a sociedade ocidental acreditou, mais ou menos, que Deus não faz parte da vida pública. O mundo dividido do Iluminismo, cuja justificativa aparentemente sensível era evitar as pavorosas guerras religiosas, não tinha um motivo tão benigno assim: excluímos Deus da vida pública a fim de podermos dirigir o mundo para nosso próprio benefício.
Uma vez que o deísmo deu lugar ao ateísmo público implícito e, depois, explícito, a democracia ocidental justificou sua existência com o lema “vox populi vox Dei”. Assim, deu uma aparência de teologia pública, enquanto, na verdade, aprisionava Deus nas urnas e neutralizava qualquer possível crítica política do evangelho cristão. Por esta perspectiva, a grande realização de William Wilberforce no primeiro terço do século 19 foi manter uma crítica
política baseada explicitamente na Bíblia em um mundo onde isso era visto cada vez mais como uma gafe filosófica e cultural.
Contudo, a disjunção entre Deus e o mundo público tem se infiltrado na visão de mundo adotada pelo mundo ocidental. Percebemos isso principalmente na retórica cada vez mais estridente de secularistas que, ainda apegados a sua tese claramente ultrapassada agora, realmente acreditam que a religião deveria ter murchado e morrido ha muito tempo, voltando-se para ela com raiva e incompreensão por sua presunção não só de ainda existir, mas também de ter algo a dizer em público. É fascinante observar o modo como Dawkins, Hitchens e outros repetiram, com uma indignação moral cada vez maior, o discurso de Voltaire no final do século 18 e de Nietzsche no final do 19. Eles representam o auge da modernidade tardia, e sua maior indignação é explicada pelo aumento alarmante do fundamentalismo de vários aspectos em diversos continentes. Na verdade, quero sugerir aqui que a Bíblia nos permite percorrer todo um caminho de sabedoria – e não apenas até a metade – entre secularismo e fundamentalismo, mas em uma trajetória que mostra que esses irmãos feios simplesmente não captaram a ideia, representando dois extremos de uma visão de mundo completamente desacreditada.
Por que ela foi desacreditada? Talvez já não seja necessária a argumentação pós-moderna de que as grandes histórias da modernidade perderam a força. O dia 11 setembro de 2001 foi um momento pós-moderno decisivo com duas grandes narrativas se colidindo e explodindo, e a resposta para esse acontecimento na forma de uma guerra modernista ainda mais violenta e um exemplo impressionante do que é não entender o xis da questão. Fui acusado, principalmente por algumas pessoas do alto escalão da Casa Branca e de outros lugares, de eu mesmo não ter entendido o xis da questão aqui, mas tenho medo de ser impenitente; e minha falta de penitência não tem relação alguma, como absurdamente sugeriram meus detratores, com ser brando com o terror ou com desconsiderar Romanos 13 e sua legitimação dos governos no poder. Acostumei-me a receber e-mails queixosos que diziam: “Gostamos do que você escreve sobre Jesus e a ressurreição; ficamos fascinados com o que você diz sobre Paulo; mas por que você critica tanto o nosso presidente?”. A minha resposta é: “Se vocês realmente lessem o que digo sobre Jesus e o reino e entendessem sobre o que Paulo realmente estava falando, teriam de levar a sério as questões de Deus na esfera pública de uma maneira totalmente diferente. Dizer que eu confundi questões espirituais com questões políticas é simplesmente reafirmar a velha dicotomia do Iluminismo em um momento em que ela é desastrosamente inadequada, bem como falaz”. Falarei mais sobre isso em breve.
Enquanto isso, as grandes questões éticas e publico-políticas de nossos dias continuam a ecoar: a dívida global, a crise ecológica, a nova pobreza em nossa envernizada sociedade ocidental, as questões de gênero e sexo, as pesquisas com células-tronco, a eutanásia e, principalmente, as questões complexas do Oriente Médio. Enquanto os debates forem realizados segundo o fundamentalismo e o secularismo, não passarão de uma discussão agressiva. Neste ponto, ironicamente, o sonho do Iluminismo começou a se consumir, uma vez que sua maior forca (a ênfase na razão como o meio para a coexistência pacífica) foi prejudicada por sua maior fraqueza: a divisão dualista entre Deus e o mundo público, com o discurso público humano desmoronando em confusão e emocionalismo.
Talvez a consequência impensada da revolução pós-moderna seja revelar que, se a razão deve fazer o que diz no rótulo, talvez precisemos, afinal, contar com Deus em público. Quero, portanto, fazer uma proposta que pode nos ajudar a percorrer um caminho de sabedoria bíblica enquanto avançamos em direção ao futuro perigoso e incerto da pós-pós-modernidade (a vida após a vida após a modernidade, se você preferir). O mundo de amanhã precisa urgentemente encontrar um caminho que não seja o do secularismo, nem o do fundamentalismo, nem o da mera desconstrução que declara que ambos estão errados, sem ter nada para colocar no lugar deles. Você não se surpreenderá ao saber que acredito que tal caminho pode ser encontrado quando voltamos aos documentos do fundamento da fé cristã – em particular, os quatro Evangelhos.
• N. T. Wright foi bispo de Durham, na Inglaterra, e é um dos mais conhecidos e respeitados estudiosos do Novo Testamento da atualidade. Foi professor das universidades de Cambridge e Oxford por vinte anos e é professor visitante de universidades como Harvard Divinity School, Universidade Hebraica de Jerusalém e Universidade Gregoriana em Roma, entre outras. É autor de mais de quarenta livros, entre os quais Simplesmente Cristão, Surpreendido pela Esperança, O Mal e a Justiça de Deus e Eu Creio. E Agora? e o lançamento de agosto da Editora Ultimato Surpreendido pelas Escrituras.
Nota:
1. Em 1987, o teólogo britânico John Bowker publicou “Licensed Insanities” [Insanidades permitidas].
Imagem: La Petite Tombe/Rembrandt van Rijn/H. O. Havemeyer Collection
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