Opinião
- 08 de agosto de 2012
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Democracia racial?
“Brasil, grande democracia racial”. Uma frase bastante comum, mas destituída de fundamento verdadeiro. O Brasil é uma democracia política, mas não é uma democracia social, muito menos racial. Permanecem as grandes desigualdades sociais, do mesmo modo que o tratamento cultural racista. O IBGE já não esconde que a metade da população brasileira não mais se envergonha de declarar-se “afrodescendente”. Esses mitos atravessam a história social do Brasil na contramão. E por quê? Roberto Martins Borges, estudioso e militante do movimento negro no Brasil, num seminário de Direitos Humanos do qual participei em Brasília, dizia coisas assim:
“No império de Dom Pedro II, 58,1 % de afrodescendentes faziam parte da população nacional. Cerca de 38% da população de negros na América estavam aqui. O Caribe Britânico, concorrente comercial do Brasil, tinha 17%, dessa mesma região política. A sociedade brasileira, como um todo, apoiava fortemente a escravidão, pois seu trabalho a sustentava, quase integralmente. Soldados, pequenos funcionários, tinham pelo menos um escravo. As pequenas elites, comerciantes e negocistas do mercado de minerais e pedras preciosas, utilizavam-se muito mais do trabalho escravo. Especialmente em Minas Gerais, talvez o Estado onde se cultivam as piores piadas racistas.
O antropólogo brasileiro Gilberto Freire, autor do clássico estudo “Casa Grande e Senzala”, ajudou a construir o mito da escravidão cordial, acreditamos. Isso reforça a afirmação de outros pesquisadores anteriores sobre a “democracia racial” (Tannenbaun, Frank: El Negro em las Américas). Esse último dizia: “no Brasil, o negro reconhece o seu lugar!” E mais: “no Brasil, o mulato pode superar a pobreza, enriquecer, ter cultura, ser presidente”. Gilberto Freire, por sua vez, construiu a visão idílica da escravidão, escrevendo sobre a civilização do engenho. Dizia que o operário inglês era muito mais maltratado que o negro da senzala (!?). Comparativamente, o escravo na senzala era um querubim (“likecherub”), em linguagem poética.
Dificilmente se pode admitir isso, hoje, à luz de estudos mais recentes. No máximo, poder-se-á compreender que a população brasileira dos pobres quase se igualava à dos escravos. Ser pobre e negro não é a mesma coisa que ser “negro e pobre”. Na verdade, esse é “um passado que não passou”. Foram séculos de regime escravista concentrado no negro. E Borges afirmava: “O Brasil avançou muito pouco, no que se refere à integração da população de negros e afrodescendentes na vida nacional”. Além do gozo pleno dos bens sociais negados aos grupos raciais.
É preciso atualizar a situação no Brasil urbano recente. Aqui se oferece pouco espaço para a discriminação racial? Os bolsões de pobreza podem dizer muita coisa sobre racismo e pobreza. Também as populações dos presídios brasileiros gritam números escandalosos sobre negros e afrodescendentes. O número de condenações de pessoas desse seguimento, impossibilitadas de defesa jurídica qualificada, é elevado. E tudo começa nas delegacias de polícia, nos inquéritos criminais onde a pessoa negra sai em desvantagem.
Na verdade, hoje, é preciso reconhecer que poucas pessoas aparecem na Delegacia de Polícia de Investigações sobre Crimes Raciais com um caso real de racismo, de acordo com a lei brasileira. No Brasil, perante a lei, xingar alguém fazendo referência à cor da pele não é racismo. Racismo é, entre outras coisas, impedir alguém de fazer algo por causa da cor da pele. Muita gente vai a uma delegacia de polícia acusando alguém de racismo. Quem vai é logo informado que poderá, no máximo, abrir um processo de injúria, calúnia ou difamação. Por exemplo: quando alguém é chamado de “macaco” é injúria. Se for chamado de “ladrão”, e se não se conseguir provar, será calúnia. No futebol e demais esportes temos o exemplo cabal da “suavidade” e delicadeza como a ofensa racista é tratada. É só observar as penalidades nos casos relatados.
A escravização imposta ao povo negro, durante séculos, repercute até os dias de hoje em outro tipo de sofrimento: o passado escravista gravou no inconsciente coletivo a falsa convicção da inferioridade do negro, criando-se um preconceito que se manifesta de diferentes formas. E isto atingiu também os negros: são muitos os que internalizaram um complexo de inferioridade em relação à sua condição e, por isso, não assumem a negritude e têm como padrão ideal a situação do branco. Demorou quase 300 anos para que Zumbi dos Palmares fizesse parte da História do Brasil. Não como “negro fujão’, que liderou outros ‘escravos fujões,’ e por isso foi morto. Mas como um herói nacional que lutou pela dignidade humana e pela liberdade.
A História registra que Zumbi estabeleceu a república do Quilombo dos Palmares, conhecida como a mais bem-sucedida aventura libertária do povo negro durante a escravidão no Brasil. Palmares resistiu quase setenta anos às expedições enviadas pelas autoridades governantes. Chegou a abrigar 20 mil escravos fugidos. Foi destruído em 1693 por um exército de mais de 6 mil soldados mercenários, e assim mesmo porque após um mês de cerco a munição e os víveres acabaram. Zumbi conseguiu escapar. Dois anos mais tarde foi capturado e morto. Partes de seu corpo foram expostas num poste, no Recife, como lição para quem tentasse fugir ou resistir à escravidão.
A luta contra o racismo não é, no entanto, uma luta fácil. Em quatro décadas, desde que a discriminação racial passou a ser infração penal, quase não há notícias de cumprimento da pena de prisão por crime de racismo. E passados mais de vinte anos da aprovação da Lei Caó (1989), como ficou conhecida – que tornou crime a prática de racismo no país – a discriminação racial continua impune. É muito reduzido o número de condenações por crime de racismo, na justiça brasileira. Nada de extraordinário, diante de crimes de corrupção religiosa. Estamos no Brasil. Eis um exemplo de corporativismo ou isonomia religiosa. Crimes comuns na sociedade civil, como roubo, calúnia, injúria e corrupção são inimputáveis no âmbito interno das igrejas, ou inalcançáveis pela justiça comum. Racismo? Não se fala sobre isso. Mas esta é outra conversa...
É pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e autor de livros como “Pedagogia da Ganância" (2013) e "O Dragão que Habita em Nós” (2010).
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