Opinião
- 08 de maio de 2020
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Cristãos à espera de um Messias
Por Helder Nozima
"Então, os que estavam reunidos lhe perguntaram: Senhor, será este o tempo em que restaures o reino a Israel?" (Atos 1.6)
No princípio, éramos todos judeus. Jesus era judeu, os apóstolos eram judeus, a igreja-mãe era a igreja de Jerusalém. Depois, gentios começaram a se converter a Jesus Cristo. Mas, na verdade, até aí ainda podíamos nos considerar judeus. Afinal, o judaísmo também tinha seus gentios convertidos, os chamados prosélitos. Por que, então, o cristianismo tornou-se uma religião distinta do judaísmo?
Entre as muitas respostas que podem ser dadas, uma se destaca como a principal. A grande diferença é que os judeus ainda esperam pela vinda do Messias, enquanto os cristãos creem que ele já veio. Todo o resto: a questão da circuncisão, a observância ou não das regras alimentares da Torá, a salvação pela graça e não pelas obras e até o escândalo da cruz, tudo isso só faz sentido se Jesus é ou não o Messias. Esse é o divisor de águas, o Rubicão que foi cruzado pela Igreja do Novo Testamento e que dividiu judeus e cristãos.
E por que os judeus rejeitaram Jesus? Talvez pelo mesmo motivo que alguns cristãos brasileiros do século 21 parecem estar à procura de um segundo Messias.
Expectativas frustradas
No século 1, havia uma forte expectativa messiânica. A literatura apocalíptica produzida durante o período intertestamentário alimentou a esperança de que o Senhor levantaria um líder político e militar que libertaria o povo de Israel do domínio romano e traria um período de prosperidade e predominância para Israel. De modo geral, esperava-se que o Messias:
1. Governasse de modo semelhante a Davi.
2. Punisse os inimigos de Israel.
3. Restaurasse Israel e o seu Templo.
4. Iniciasse uma nova era de paz e perfeita obediência da Torá.[1]
Essa expectativa estava por trás da pergunta feita pelos apóstolos a Jesus Cristo, momentos antes de sua ascensão. A ressurreição mostrou aos discípulos que Jesus era o Messias. Mas...quando as demais coisas aconteceriam?
Não era a primeira vez que Jesus enfrentava esse tipo de questionamento. Quando João Batista ouviu falar sobre o ministério de Jesus, as mesmas dúvidas lhe vieram ao coração. Do cárcere, ele enviou dois discípulos com a seguinte pergunta: “És tu aquele que estava para vir ou havemos de esperar outro?” (Lc 7.19). Naquela ocasião, Jesus fez uma série de milagres e prodígios que mostravam que ele era o Messias, mas não da maneira político-militar que João talvez esperasse. Ao invés de livramento da nação, “aos pobres, anuncia-se-lhes o evangelho” (Lc 7.22).
A resposta de Jesus em Atos 1.7-8 foi na mesma direção. Segundo J. B. Polhill: “Tampouco Jesus rejeitou o conceito de ‘restauração de Israel’. Ao invés disso, ele ‘despolitizou-o’ com o chamado para uma missão mundial. Os discípulos seriam o Israel verdadeiro, ‘restaurado’, cumprindo sua missão de ser ‘uma luz para os gentios’ para que a salvação de Deus possa atingir ‘os confins da terra’ (Is 49.6).”[2]
Em outras palavras, a restauração política de Israel viria, mas não cabia aos discípulos (e nem a nós) saber quando isso ocorreria. Israel aqui refere-se não exatamente à nação judaica do Antigo Testamento, mas ao reino de Deus na Terra, onde Jesus é reconhecido e reverenciado como o verdadeiro Filho de Davi, os inimigos do povo de Deus estão derrotados e vive-se em perfeita obediência ao Senhor. Mas, até lá, o papel que Jesus deu à igreja foi o de ser “minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra” (Atos 1.8).
Expectativas insistentes
As ordens de Jesus foram claras. O papel da igreja não é político, mas espiritual. A missão é testemunhar Jesus Cristo até os confins do mundo, fazendo as mesmas coisas que o Senhor fez em seu ministério: dando vista aos cegos, fazendo coxos andarem, purificando leprosos, devolvendo a audição a surdos, ressuscitando mortos...em resumo, anunciando aos pobres (de espírito e de matéria) o evangelho. O poder para isso vem do Espírito Santo, que já foi dado à igreja no dia de Pentecostes.
Mas a mesma insistência que os primeiros discípulos de Jesus tinham até a ascensão continua presente na igreja brasileira do século 21. Ao olharmos para um Brasil marcado por desigualdades sociais, com uma elite política que parece ver o povo como os senhores de engenho olhavam para os escravos em uma senzala e uma cultura que valoriza a desonestidade, a sensualidade e a violência, nós, evangélicos, também perguntamos a Jesus: “Senhor, será este o tempo?” Ansiamos por um Brasil livre do jugo de “Roma”, onde os grupos que ridicularizam os evangélicos sejam envergonhados e derrotados e um período de obediência à Bíblia transforme a cultura, a mentalidade e a sociedade brasileiras.
Em princípio, nada contra ansiar nenhuma dessas coisas. Esse desejo de ver o Reino de Deus crescendo na Terra motivou movimentos como o puritanismo, levou à expansão da obra missionária ao Terceiro Mundo e produziu avivamentos no Reino Unido e nos Estados Unidos, por exemplo. Todas essas manifestações deixaram marcas permanentes no mundo atual, mas não produziram a “restauração de Israel”. Igrejas que no passado abrigaram gigantes da fé em seus púlpitos hoje pregam o liberalismo teológico. O secularismo, os abortos e o desprezo pelo cristianismo estão presentes nos Estados Unidos e em toda a Europa. Em países que colocaram o protestantismo como religião oficial, hoje encontram-se sociedades “pós-cristãs”. As utopias falharam.
Expectativas messiânicas
E por que utopias fracassam? Porque apenas um líder messiânico pode torná-las realidade. É preciso que alguém “semelhante a Davi” e “ungido por Deus” tenha o poder necessário para liderar o povo na construção de uma sociedade realmente transformada. Um Messias que dê o exemplo e que mostre às pessoas o caminho a ser seguido. Um “guerreiro” que consiga vencer os inimigos reais e metafóricos que mantêm o mundo cativo ao mal.
Ao longo da história da igreja, procuramos líderes assim dentro e fora do cristianismo. De pregadores do fim do mundo, como Montano[3] e Antônio Conselheiro[4], a novos Messias, como Sun Myung Moon[5], tentou-se de tudo. Até mesmo colocar a autoridade eclesiástica (o papa) acima dos reis e imperadores medievais. Não funcionou.
Resta, então, um último recurso, sutil, mas que talvez seja o mais perverso de todos. A igreja para de procurar um substituto para Jesus de dentro das suas fileiras e passa a depositar sua esperança em um governante ímpio. Se o Senhor escolheu Ciro (Is 45.1), por que não uma encarnação moderna? Um novo Nabucodonosor, para que Daniel prospere em sua corte. A proposta não é nova: Eusébio de Cesareia (265-339), o primeiro historiador da igreja, escreveu “Vida de Constantino, o Grande”, uma homenagem ao imperador romano Constantino, que pôs fim às perseguições ao cristianismo. Daí em diante, os imperadores romanos passaram a tutelar a igreja. E quando os pregadores ousavam criticar e discordar de César, o destino de vários foi o exílio e as ameaças de morte. Outros se curvaram a César, e assim a igreja se corrompeu.
Ignorar a História é ser condenado a repeti-la. Quando evangélicos brasileiros atendem a um jejum chamado pelo presidente, dizem amém às suas falas na porta do Palácio e profetizam tempos de prosperidade jamais vistos, estamos colocando nossas esperanças em outro Messias. Quando pastores e bispos se calam porque não querem perder proximidade com o poder político para emplacar leis mais cristãs, fizemos do Estado a esperança de um novo Brasil. Quando católicos, reformados, pentecostais e arminianos se unem em torno de um presidente, mas são incapazes de se unirem em torno de Jesus, é porque esperamos que outro restaure Israel. E não é preciso ser profeta para saber como isso terminará.
• Helder Nozima Pereira é bacharel em Teologia pelo Seminário Presbiteriano de Brasília (SPB) e em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente, trabalha como oficial de chancelaria e é mestrando em Estudos Bíblicos pelo Reformed Theological Seminary (RTS), em Nova York. Fundador e editor do blog Reforma e Carisma.
Notas
Notas
- Gupta, N. K. (2016). Christology. In J. D. Barry, D. Bomar, D. R. Brown, R. Klippenstein, D. Mangum, C. Sinclair Wolcott, … W. Widder (Eds.), The Lexham Bible Dictionary. Bellingham, WA: Lexham Press.
- Polhill, J. B. (1992). Acts (Vol. 26, pp. 84–86). Nashville: Broadman & Holman Publishers.
- Fundador do Montanismo
- Antônio Conselheiro (1830-1897) foi o líder do Arraial de Canudos, destruído pelo Exército brasileiro em 1897.
- Sun Myung Moon (1920-2012), conhecido como “Reverendo Moon”, fundou a Igreja da Unificação e clamava ser um Messias.
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