Opinião
- 30 de outubro de 2017
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Contra o que protestam os protestantes?
Por Billy Lane
Há um senso comum de que os protestantes são aqueles que protestam contra a igreja católica romana e suas doutrinas. É natural que se pense assim porque o grande símbolo da Reforma é o dia em que o monge agostiniano Martinho Lutero afixou suas 95 teses na porta da catedral de Wittenberg, condenando objetivamente as indulgências praticadas pela igreja. No entanto, mesmo que isso denote um protesto e Martinho Lutero tenha sido convocado para se retratar perante representantes do papa e do imperador, não foi esse gesto nem sua resoluta e irredutível posição na Dieta de Worms (1521) que conferiram a Lutero e ao movimento reformado o adjetivo de protestantes.
O termo surgiu alguns anos depois, em referência ao protesto dos príncipes na Dieta de Espira (ou, Speyer), em 1529, contra a decisão do imperador Carlos V de revogar decisão anterior da Dieta de Espira de 1526, que autorizava que cada príncipe determinasse qual religião seguir em seu principado. Em 1529, a Dieta determina que a religião católica fosse praticada nos principados luteranos. Assim, os príncipes, não os teólogos ou líderes do movimento reformado, redigiram o Protesto:
Nós protestantes, por meio das presentes, diante de Deus, nosso único Criador, Conservador, Redentor e Salvador, e que será, um dia nosso juiz, assim como diante de todos os homens e de todas as criaturas, que não consentimos nem aderimos de nenhuma maneira, nem quanto a nós nem quanto aos nossos, ao decreto proposto em todas as coisas que são contrárias a Deus, à sua santa Palavra, à nossa consciência, à salvação de nossas almas e ao último decreto de Espira.
Basicamente, foi um protesto pela liberdade religiosa e contra a imposição de uma religião oficial. Naturalmente, os príncipes o faziam em defesa própria, pois, na prática a Dieta de Espira de 1529 significaria o fim do movimento luterano. A partir daí foi sob pressão e oposição que as igrejas luteranas se mantiveram ativas a despeito da resolução imperial.
O protesto não foi exatamente contra a igreja católica romana, e sim contra o império e a imposição da religião. O historiador Philip Schaff diz que o protesto de Espira foi, “objetivamente, baseado na Palavra de Deus, subjetivamente, sobre o direito particular de juízo e consciência e, historicamente, sobre a decisão libertária da Dieta de 1526”. Não foi, então, um protesto contra a igreja católica, mas contra a imposição religiosa por parte do império e em defesa do direito de cada região estabelecer a sua própria religião, em suma, a favor da liberdade religiosa.
Na Suíça, quando as tensões políticas e religiosas entre protestantes e católicos se acentuaram, Ulríco Zuínglio participou ativamente de tentativas de paz. Depois de muitas tentativas, em 1529 cantões católicos e protestantes chegaram a um tratado de paz em Cappel. Apesar de não ter contentado Zuínglio completamente, foi a primeira vez na Europa que se reconheceu “o princípio de paridade ou igualdade legal entre as igrejas católico romanas e protestantes.” Na Alemanha algo semelhante só ocorreu 26 anos depois, assim mesmo só foi finalmente estabelecida depois da Guerra dos Trinta Anos e do tratado de Vestfália em 1648.
É verdade que na Europa do século 16 e até os dias de hoje, as igrejas protestantes são um tanto ambivalentes no que se refere à liberdade religiosa. Ora são perseguidas, ora são perseguidoras. Como sabemos, na Europa, a igreja sempre esteve aliada ao estado. Nem sempre os protestantes estenderam a liberdade religiosa, que tanto desejavam e defendiam, aos católicos, aos anabatistas e a outros grupos religiosos. Pelo contrário, foram muitas vezes tão severos quanto os católicos e desejavam também estabelecer a religião protestante com o aval do poder civil. Schaff diz que as perseguições religiosas não são resultados só de preconceito, fanatismo, ódio e intolerância, mas da intensidade das convicções religiosas, um zelo distorcido pela verdade e ortodoxia, e a aliança entre religião e política.
Mesmo assim, André Biéler, um pastor suíço e doutor em ciências econômicas, escreve que o protestantismo é “um fermento revolucionário, semente de liberdade que libera o homem dos conformismos religiosos, sociais, e políticos e o encoraja a iniciativas benéficas que lhe sugere o Evangelho.”
Fato é que os protestantes não protestaram exatamente contra a igreja católica, mas contra a imposição religiosa do poder civil e em favor da liberdade religiosa. Ainda que não fossem os melhores exemplos de garantir esse direito aos outros, os valores foram decisivos para a constituição dos direitos dos estados, para a diplomacia internacional e para o desenvolvimento dos valores democráticos ocidentais.
É possível quinhentos anos depois dizer que vivemos numa sociedade mais religiosamente tolerante? Certamente houve muitos avanços. Embora o protestantismo tenha encontrado no Brasil um campo cristão hostil, sofrido perseguição, enterrado seus mártires, e, mesmo assim, se consolidado com um projeto não só catequético como também social e educacional, trazendo uma contribuição construtiva para a sociedade, se calou e se acanhou muitas vezes quando deveria levantar a voz de seu protesto. Atualmente, anda calado, exceto pelos embates polêmicos populares em redes sociais. É preciso continuar protestando, não em favor dos interesses particulares e estritamente morais ou religiosos, mas em defesa de uma sociedade mais justa e igualitária.
Notas:
1. Boisset apud Klein, Carlos J. História e pensamento da Reforma. Londrina: Eduel, 2014, p. 41.
2. Schaff, Philip. History of the Christian Church. Vol VIII: Modern Christianity. The Swiss Reformation. Grand Rapids: Christian Classics Ethereal Library, 1998b, p. 548.
3. Schaff, 1998b, p. 154.
4. Schaff, Philip. History of the Christian Church. Vol VII: Modern Christianity. The German Reformation. Grand Rapids: Christian Classics Ethereal Library, 1998a, p. 43.
5. Biéler, A. A força dos protestantes. S. Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 37.
Imagem: Photo by Warren Wong on Unsplash.
Há um senso comum de que os protestantes são aqueles que protestam contra a igreja católica romana e suas doutrinas. É natural que se pense assim porque o grande símbolo da Reforma é o dia em que o monge agostiniano Martinho Lutero afixou suas 95 teses na porta da catedral de Wittenberg, condenando objetivamente as indulgências praticadas pela igreja. No entanto, mesmo que isso denote um protesto e Martinho Lutero tenha sido convocado para se retratar perante representantes do papa e do imperador, não foi esse gesto nem sua resoluta e irredutível posição na Dieta de Worms (1521) que conferiram a Lutero e ao movimento reformado o adjetivo de protestantes.
O termo surgiu alguns anos depois, em referência ao protesto dos príncipes na Dieta de Espira (ou, Speyer), em 1529, contra a decisão do imperador Carlos V de revogar decisão anterior da Dieta de Espira de 1526, que autorizava que cada príncipe determinasse qual religião seguir em seu principado. Em 1529, a Dieta determina que a religião católica fosse praticada nos principados luteranos. Assim, os príncipes, não os teólogos ou líderes do movimento reformado, redigiram o Protesto:
Nós protestantes, por meio das presentes, diante de Deus, nosso único Criador, Conservador, Redentor e Salvador, e que será, um dia nosso juiz, assim como diante de todos os homens e de todas as criaturas, que não consentimos nem aderimos de nenhuma maneira, nem quanto a nós nem quanto aos nossos, ao decreto proposto em todas as coisas que são contrárias a Deus, à sua santa Palavra, à nossa consciência, à salvação de nossas almas e ao último decreto de Espira.
Basicamente, foi um protesto pela liberdade religiosa e contra a imposição de uma religião oficial. Naturalmente, os príncipes o faziam em defesa própria, pois, na prática a Dieta de Espira de 1529 significaria o fim do movimento luterano. A partir daí foi sob pressão e oposição que as igrejas luteranas se mantiveram ativas a despeito da resolução imperial.
O protesto não foi exatamente contra a igreja católica romana, e sim contra o império e a imposição da religião. O historiador Philip Schaff diz que o protesto de Espira foi, “objetivamente, baseado na Palavra de Deus, subjetivamente, sobre o direito particular de juízo e consciência e, historicamente, sobre a decisão libertária da Dieta de 1526”. Não foi, então, um protesto contra a igreja católica, mas contra a imposição religiosa por parte do império e em defesa do direito de cada região estabelecer a sua própria religião, em suma, a favor da liberdade religiosa.
Na Suíça, quando as tensões políticas e religiosas entre protestantes e católicos se acentuaram, Ulríco Zuínglio participou ativamente de tentativas de paz. Depois de muitas tentativas, em 1529 cantões católicos e protestantes chegaram a um tratado de paz em Cappel. Apesar de não ter contentado Zuínglio completamente, foi a primeira vez na Europa que se reconheceu “o princípio de paridade ou igualdade legal entre as igrejas católico romanas e protestantes.” Na Alemanha algo semelhante só ocorreu 26 anos depois, assim mesmo só foi finalmente estabelecida depois da Guerra dos Trinta Anos e do tratado de Vestfália em 1648.
É verdade que na Europa do século 16 e até os dias de hoje, as igrejas protestantes são um tanto ambivalentes no que se refere à liberdade religiosa. Ora são perseguidas, ora são perseguidoras. Como sabemos, na Europa, a igreja sempre esteve aliada ao estado. Nem sempre os protestantes estenderam a liberdade religiosa, que tanto desejavam e defendiam, aos católicos, aos anabatistas e a outros grupos religiosos. Pelo contrário, foram muitas vezes tão severos quanto os católicos e desejavam também estabelecer a religião protestante com o aval do poder civil. Schaff diz que as perseguições religiosas não são resultados só de preconceito, fanatismo, ódio e intolerância, mas da intensidade das convicções religiosas, um zelo distorcido pela verdade e ortodoxia, e a aliança entre religião e política.
Mesmo assim, André Biéler, um pastor suíço e doutor em ciências econômicas, escreve que o protestantismo é “um fermento revolucionário, semente de liberdade que libera o homem dos conformismos religiosos, sociais, e políticos e o encoraja a iniciativas benéficas que lhe sugere o Evangelho.”
Fato é que os protestantes não protestaram exatamente contra a igreja católica, mas contra a imposição religiosa do poder civil e em favor da liberdade religiosa. Ainda que não fossem os melhores exemplos de garantir esse direito aos outros, os valores foram decisivos para a constituição dos direitos dos estados, para a diplomacia internacional e para o desenvolvimento dos valores democráticos ocidentais.
É possível quinhentos anos depois dizer que vivemos numa sociedade mais religiosamente tolerante? Certamente houve muitos avanços. Embora o protestantismo tenha encontrado no Brasil um campo cristão hostil, sofrido perseguição, enterrado seus mártires, e, mesmo assim, se consolidado com um projeto não só catequético como também social e educacional, trazendo uma contribuição construtiva para a sociedade, se calou e se acanhou muitas vezes quando deveria levantar a voz de seu protesto. Atualmente, anda calado, exceto pelos embates polêmicos populares em redes sociais. É preciso continuar protestando, não em favor dos interesses particulares e estritamente morais ou religiosos, mas em defesa de uma sociedade mais justa e igualitária.
Notas:
1. Boisset apud Klein, Carlos J. História e pensamento da Reforma. Londrina: Eduel, 2014, p. 41.
2. Schaff, Philip. History of the Christian Church. Vol VIII: Modern Christianity. The Swiss Reformation. Grand Rapids: Christian Classics Ethereal Library, 1998b, p. 548.
3. Schaff, 1998b, p. 154.
4. Schaff, Philip. History of the Christian Church. Vol VII: Modern Christianity. The German Reformation. Grand Rapids: Christian Classics Ethereal Library, 1998a, p. 43.
5. Biéler, A. A força dos protestantes. S. Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 37.
Imagem: Photo by Warren Wong on Unsplash.
Pastor presbiteriano e doutor em Antigo Testamento, é professor e capelão no Seminário Presbiteriano do Sul, e tradutor de obras teológicas. É autor do livro O propósito bíblico da missão.
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