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- 24 de fevereiro de 2015
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Como escrever uma biografia cristã
Biografias. Este é o gênero textual da seção “Vamos ler!” na próxima edição da revista Ultimato (março-abril). Aproveitando isso, ao longo destas semanas, o Portal Ultimato vai publicar artigos sobre este tipo de escrita. Começamos com o artigo de Miriam Adeney publicado originalmente no livro Sangue, Sofrimento e Fé, com o título “Quão santificadas deveriam ser as biografias?”. O texto é longo, mas bem prático e útil para leitores e escritores. Vale a pena ler!
PS.: E que tal você nos enviar sua resenha sobre a biografia que “fez sua cabeça”? Clique aqui e participe.
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Quão santificadas deveriam ser as biografias?
“O Henry é 1/4 Jesus”, disse Joel com seriedade, mastigando um sanduíche de manteiga de amendoim. Ele tinha acabado de brincar com Henry, de sete anos, o filho mais velho de uma família cristã. Hoje, Joel já tem quase trinta anos de idade, mas essa frase me marcou. “Um quarto de” Jesus. Por muito tempo tenho me perguntado: “Será que alguém me descreveria dessa forma?”
Por muito tempo também tenho sido edificada por biografias cristãs. A vida de Catherine Booth, Lilyas Trottere, Henrietta Mears. Sem essas histórias de seguidoras de Cristo, minha vida teria sido diferente. Eu não teria ousado ou perseverado tanto.
Entretanto, as biografias “santificadas” têm sido criticadas. Se os sujeitos parecem ser anjos, com poucas dúvidas, dores, impaciência ou raiva, os leitores acabam se perguntando: “Será que essa história é verdadeira?”
Todo escrito é seletivo, não importa quão objetivos os autores procurem ser. Então por que nos preocuparmos com os relatos que enfatizam só o lado positivo? Por diversas razões. Em primeiro lugar, as pessoas são falhas. Com certeza os vizinhos conhecem os defeitos da pessoa. Se uma história reconhece esses defeitos, terá maior credibilidade. Em segundo lugar, relatos idealizados podem desencorajar. Outras pessoas que passam por sofrimentos podem se indagar: “Por que estou sempre sofrendo? Será que estou fora da vontade de Deus? Por que não tenho esta confiança gloriosa e a serenidade dessa pessoa sobre quem estou lendo?”
Em vista dessas preocupações, aqui estão quatro sugestões que podem nos ajudar a escrever biografias melhores.
1. Boas biografias incluem o contexto
Em 2007, vinte e três missionários coreanos de curto prazo estavam viajando em um ônibus no Afeganistão quando acabaram sendo raptados. Durante quarenta e dois dias, ficaram no cativeiro. Dois morreram e, embora vinte e um tenham sido libertos, todos ficaram traumatizados.
Para conseguir a libertação, o governo da Coréia do Sul negociou diretamente com terroristas do Talibã. De repente, em vez de ser visto como um bando de marginais, o Talibã foi elevado a uma condição importante na esfera mundial, digno de realizar uma negociação internacional. Como parte do acordo, o grupo exigiu que todos os coreanos – trabalhadores cristãos, assistentes sociais e forças pacificadoras – deixassem o Afeganistão. Enquanto isso, na Coreia, o pastor sênior da igreja enviadora pediu desculpas à nação e se demitiu do seu pastorado. Embora mais tarde ele tenha sido restituído, o trabalho missionário ficou com a imagem manchada em todo o país.
Será que este sofrimento foi simplesmente causado por homens maus e por poderes satânicos? Ou será que fatores contextuais contribuíram? Nesse caso, outros grupos coreanos já haviam enviado milhares de missionários de curto prazo para o Afeganistão durante o ano anterior. Esses missionários realizavam campanhas de evangelização em massa em Kabul, jogavam folhetos nos quintais das pessoas e confrontavam estranhos no mercado com seu testemunho. A mídia afegã protestou, assim como missionários de longo prazo no país, até mesmo os coreanos. Finalmente, o governo afegão deportou as testemunhas afoitas, mas o mal já estava feito. No ano seguinte, outros sofreram as consequências.
O sofrimento não acontece num vácuo. Fatores geopolíticos podem motivar assassinos a interpretar seus atos como “parte da guerra”. Pessoas inocentes podem ser esmagadas na luta pela terra, na competição entre facções ou na batalha contra um poder imperial exagerado. Ou talvez o mártir possa, ele mesmo, ter se comportado de forma arriscada. Uma história acurada coloca o martírio em seu contexto.
Para pesquisar as circunstâncias de uma história, devemos verificar a internet, jornais e revistas, cartas missionárias, publicações arquivadas e registros de igrejas e escolas bíblicas e dados gerais sobre as condições sociopolíticas e econômicas para o período em questão. Lemos romances, assistimos a filmes e ouvimos música daquela época, conversamos com as pessoas que viviam naquele tempo e lugar.
Estudamos a cultura. Qual era a situação econômica, por exemplo? Como era uma refeição normal de uma família? O que era considerado um luxo especial? Quais veículos eram comumente utilizados – carros particulares, bicicletas, ônibus? Que tipo de tecnologia tinham? A quem deveriam sustentar, além da família? Quem poderia ajudá-los numa emergência financeira?
Como na história dos homens cegos que encontraram um elefante, nós nos aproximamos da pessoa de diversos ângulos para que possamos compreender sua vida de forma abrangente. Por exemplo, George Muller era um britânico do século 19 que tinha uma grande consciência social e resgatava crianças das ruas, estabelecendo orfanatos. Às vezes orava por seis horas a fio. Daí abria a porta de sua casa e ali encontrava pão fresco. É verdade. Mas não é toda a verdade. Muller viajou para a América do Norte para divulgar seus orfanatos. Este fato deve ser relatado também.
Em uma de suas biografias dos missionários “quaker”, Ron Stansell ilustra este tratamento a partir de muitos ângulos quando pergunta: O que contribuiu para seu sucesso precoce? Será que a população latina estava desiludida com o catolicismo e procurando algo a mais de Deus? Será que sua persistência ferrenha na implantação de igrejas e no treinamento de liderança estava finalmente produzindo frutos? Será que foi resultado da liderança de um superintendente inteligente e ousado? Ou o trabalho se adaptou melhor às mulheres? Ou será que fatores espirituais, como a oração, o reavivamento da santidade e a submissão à vontade de Deus foi o que trouxe o crescimento?1
Stansell também fala honestamente sobre as tensões, os conflitos e os defeitos. As “picuinhas” da transferência de propriedade e de poder são abertamente discutidas.2
A “triangulação” implica estudar um assunto diversas vezes, de diversos ângulos, talvez empregando pesquisadores diferentes, assim como diferentes métodos, períodos ou arcabouços teóricos. Usando o pseudônimo de Iliam, uma missionária fez uma triangulação no tempo ao escrever o livro “What is That in Your Hand?” [O que é isto em sua mão?] sobre muçulmanos que se converteram a Jesus no Paquistão. Ela descreveu diversas pessoas de dez em dez anos. Alguns dos sujeitos desabrocharam como tempo. Outros voltaram atrás. A triangulação permitiu que ela apresentasse esta comunidade com maior complexidade, aumentando a veracidade de seus relatos.
2. Boas biografias incluem pecados e falhas
Os personagens dos biógrafos não são perfeitos. Eles roncam, suam e cheiram mal, e às vezes perdem as chaves ou seus passaportes ou a paciência. Tomam decisões apressadas, desencadeando décadas de dificuldades subsequentes. São limitados e são pecadores. Se nos lembrarmos disso, nos protegeremos da tentação do triunfalismo.
Num domingo, na Ásia, quando eu estava observando como os cristãos locais eram maravilhosos, meu amigo Amat resolveu jogar um pouco de água fria em mim. “Por vinte anos eu investi em alunos”, ele disse. “Eu os discipulei, chorei com eles, celebrei com eles. Daí, eles se formam e conseguem bons empregos. Depois de dez anos, só falam da casa, do carro, da promoção, das férias e da grande reforma no prédio da igreja. Os pobres continuam a rodeá-los por todos os lados, mas eles já não os enxergam. Isso acontece com geração após geração de alunos.” E ele ficou ali sentado, com os olhos baixos e os ombros caídos, um líder tão talentoso e dedicado. Ajudou a corrigir minha imagem de um mundo cor-de-rosa. Eugene Peterson explica:
Às vezes os missionários não conseguem equilibrar bem ministério e vida familiar. As tensões nessa área são parte da história de muitos líderes cristãos, não raro relatadas com amargura por um de seus filhos. Rosalind Goforth refletiu sobre esse dilema quando seu marido talentoso, Jonathan, anunciou seu plano de evangelizar a China depois da Rebelião Boxer. Assistentes estabeleceriam centros em diversas regiões, ele planejou. A família moraria em cada um dos centros durante um mês. Nesse período fariam reuniões todas as noites. Depois os Goforths se mudariam para o próximo local.
Enquanto ouvia, Rosalind “foi ficando com o coração pesado”. Isso não era bom para uma família. Expor seus filhinhos às doenças infecciosas, tão comuns nos vilarejos, era muito arriscado, e ela não conseguia se esquecer dos “quatro pequenos túmulos” que já haviam deixado para trás no solo chinês. Embora ela não concordasse, ele seguiu adiante com seu plano, convencido de que esta era a vontade de Deus.4
Uma quinta criança morreu, mas dezenas de milhares de chineses aceitaram o Senhor. Como um biógrafo interpreta isto? Ele pode, pelo menos, relatar os fatos.
Bons pregadores ou escritores podem ser maus administradores ou até maus colegas. Veja Mary Slessor. Ao chegar à Nigéria, na década de 1880, ela salvou centenas de crianças e mulheres abandonadas na selva. Por ter conseguido chegar mais longe no interior africano do que qualquer outra pessoa, ela foi nomeada a primeira mulher vice-cônsul do Império Britânico. Por considerar os africanos como filhos de Deus tanto quanto europeus, ela morava, viajava, comia, dormia e se divertia com eles. Eles a chamavam de “Mãe de todos os Povos”. Entretanto, seus colegas missionários não gostavam de trabalhar com ela. Ela não tinha paciência com tolices. Não fazia parte do time. Para seus colegas, Mary era “difícil”.
No campo missionário, o discernimento dos pontos fortes e fracos de cada um é essencial. Por exemplo, alguns não lidam bem com o dinheiro. Não são bons de matemática ou são muito impulsivos. Pode ser que mudem algum dia, podemos até ter esperança. Mas, enquanto isso não acontece, seria um desastre colocá-los como tesoureiros do grupo. Assim como na vida, ao escrever uma biografia não deveríamos encorajar a cegueira diante das falhas.
Na história da igreja, a idealização dos ensinamentos de um líder já levou a muitas brigas e divisões desnecessárias. Os escritores devem reconhecer que nenhum líder tem ensinamentos perfeitos. Sempre seguimos as pisadas de outros, mas isto significa que só vemos um pouco além. Ainda há progresso pela frente. “Os herdeiros precisam tomar cuidado com os erros”, um aluno de teologia uma vez me disse.
Com a cultura da celebridade tão disseminada, alguns leitores preferem livros que idolatram heróis. No entanto, essa não é a forma cristã de escrever. Com certeza o Espírito Santo nos conduz em triunfo de formas maravilhosas. Porém Paulo e Barnabé brigaram. Pedro precisou de uma repreensão de Paulo. Todos nós ainda somos “vasos de barro”. Entre os louvores, então, precisamos comunicar um senso de humildade.
3. Boas biografias incluem honra e dignidade
“Não falamos de nossos pais assim”, os amigos de Elizabeth lhes disseram. Procurando se preparar para servir no Sudeste Asiático, Elizabeth começou a frequentar uma igreja asiática em Seattle (EUA). Uma noite, durante os testemunhos, ela contou que o sofrimento causado por sua família – um tanto problemática – a tinha levado ao Senhor Jesus. “Isso não é um testemunho. Isso é um desrespeito”, seus amigos lhe disseram delicadamente mais tarde. “Mesmo que sejam malucos ou maldosos, jamais devemos desonrar nossos pais publicamente.”
Da mesma forma, em culturas em que a honra é enfatizada, as biografias não deveriam focalizar as falhas das pessoas. Porém, pode-se dar a entender. Considere dois casos, um de um beduíno e outro de um japonês. No dia a dia, os beduínos egípcios admiram a dureza, o autocontrole e a honra. Eles não falam de suas feridas. Somente em suas músicas “ghinnawa” aparecem a vulnerabilidade, o sentimento e a sensibilidade. Os símbolos em suas músicas comunicam o que ele jamais admitiriam abertamente.
No outro caso, a antropóloga Takie Sugiyama Lebra argumenta que, entre os japoneses, só os mal-educados precisam de uma mensagem verbal direta e explícita. Uma pessoa refinada faz suas observações de forma mais indireta, velada, usando eufemismos ou metáforas. Por exemplo, imagine que uma mulher japonesa tenha tido um dia difícil com sua sogra, com quem ela mora. Como comunicaria isso ao seu marido? Talvez deixasse um vaso na porta de entrada de forma desorganizada. Ele veria as flores desarrumadas, perceberia que sua esposa está no limite e seria mais tolerante naquela noite.5 Em culturas assim, as biografias deveriam criticar de forma indireta e oblíqua.
A privacidade é outra questão. Quem tem o direito de contar os defeitos de outra pessoa? No dia a dia, os cristãos comuns não precisam expor seus pecados ou vulnerabilidades na frente dos outros. Contamos para parceiros de oração confiáveis, para um pequeno grupo ou somente para Deus. Isso muda quando uma pessoa é martirizada ou colocada em uma situação de intenso sofrimento? De repente, precisamos contar tudo para que a verdade seja dita, quando a pessoa se torna notícia de jornal?
Com certeza as pessoas podem manter certa privacidade se desejarem, tanto para seu próprio bem quanto para o bem dos outros que sofreriam com as revelações. O público não tem o direito de conhecer todos os detalhes pessoais.
Por outro lado, uma pessoa pode querer revelar muito. Quando a Dra. Helen Roseweare foi estuprada no Congo, ela incluiu isso na sua biografia. Além das humilhações pessoais e organizacionais, tanto no começo quanto no fim de sua carreira, o estupro violento era mais uma vergonha. Porém, Deus usou suas revelações para o bem. Levada a um campo de concentração, ela pôde encorajar as freiras, especialmente uma mocinha italiana que tinha sido exposta nua antes de ser estuprada por um grupo de homens. Achando que tinha perdido sua pureza, essa moça estava pensando em se matar. Helen a ajudou. Quando ficou mais velha, Helen recebeu muitos convites para falar sobre missões, justamente por sua honestidade.
4. Boas biografias incluem a semelhança com Cristo
“Gosto de biografias de santos. São uma das coisas que mais gosto de ler”, confessou Alvin. “Por quê?”, fiquei me perguntando, pensando comigo que “biografias de santos” são histórias muito “santificadas”.
O autor de “Taking Your Soul to Work” [Colocando sua alma para trabalhar], Alvin Ung, é da Malásia, casado e pai de filhos, e já foi um dos repórteres internacionais da Associated Press. Também foi o paraninfo em uma das formaturas no Regent College, onde eu sou professora. Alvin me enviou um e-mail com a resposta para meu “Por quê?”. Dizia:
Além disso, leitores ocidentais geralmente presumem que os milagres e os demônios não podem ser reais. Ocidentais estão acostumados com fatos científicos e atribuem qualquer tipo de demonologia a atividade psicológica. Já leitores asiáticos não pensariam o mesmo.
Se pudermos retirar nossas lentes de “suspeita hermenêutica” do século 21 e ler as biografias de forma apreciativa, no estilo da “lectio divina”,6 aprenderemos a arte de viver bem, a arte da conversão contínua, e arte de morrer bem, sugere Alvin. Descobriremos que viver e morrer estão relacionados. “Para mim, o viver é Cristo” (Fp 1.21).
“Porque estamos sobrecarregados de pecado e preocupados com a depravação, achamos que não seja possível viver em união com Deus antes do paraíso”, Alvin continua. Mas considere a vida de Antônio, o egípcio do quarto século que foi o pioneiro da vida monástica. Ao lutar contra temores financeiros, contra a cobiça, a ira, apegos profundos e demônios, ele descobriu que Jesus sempre estivera presente em sua vida, especialmente durante suas lutas mais terríveis. E esta descoberta da presença de Jesus o levou a níveis ainda mais profundos de conversão... Ele viveu uma vida de constante renúncia e, portanto, começou a crescer em virtude... A vida de Antônio nos mostra como um ser humano falho pode se tornar como Cristo. Aos 105 anos de idade, ele demonstrava a inocência espiritual de meu filhinho: uma vida de encantamento, alegria e admiração diante dos dons da vida.
Quem sou eu?
Antes de morrer numa prisão nazista, o pastor Dietrich Bonhoeffer escreveu as seguintes linhas:
“Quem sou eu? Frequentemente me dizem
Que sai da confinação da minha cela
De modo calmo, alegre, firme,
Como um cavalheiro da sua mansão.
Quem sou eu? Frequentemente me dizem
Que falava com meus guardas
De modo livre, amistoso e claro
Como se fossem meus para comandar.
Quem sou eu? Dizem-me também
Que suportei os dias de infortúnio
De modo calmo, sorridente e alegre
Como quem está acostumado a vencer.
Sou, então, realmente tudo aquilo que os outros me dizem?
Ou sou apenas aquilo que sei acerca de mim mesmo?
Inquieto e saudoso e doente, como ave na gaiola,
Lutando pelo fôlego, como se houvesse mãos apertando minha garganta,
Ansiando por cores, por flores, pelas vozes das aves,
Sedento por palavras de bondade, de boa vizinhança,
Conturbado na expectativa de grandes eventos,
Tremendo, impotente, por amigos a uma distância infinita,
Cansado e vazio ao orar, ao pensar, ao agir,
Desmaiando, e pronto para dizer adeus a tudo isto?
Quem sou eu? Este, ou o outro?
Sou uma pessoa hoje, e outra amanhã?
Sou as duas ao mesmo tempo? Um hipócrita diante dos outros,
E diante de mim, um fraco, desprezivelmente angustiado?
Ou há alguma coisa ainda em mim como exército derrotado,
Fugindo em debanda da vitória já alcançada?
Quem sou eu? Estas minhas perguntas zombam de mim na solidão.
Seja quem for eu, Tu sabes, ó Deus, que sou Teu!” 7
Muito bem
Em 2002, Dale Stock, um missionário de segunda geração no Paquistão, estava relaxando num lago com sua família e alguns amigos. “Socorro!” – alguém gritou da água. Dale mergulhou e salvou o nadador, mas ele mesmo se afogou.
Enquanto escrevo este capítulo, estou ouvindo um lindo coral cantando a música que o irmão de Dale, Paul, compôs. Chama-se “Muito bem”:
Quão santificadas devem ser as biografias? Quanta tristeza deve se equilibrar com a glória? Contexto, pecado e falhas, honra e dignidade, todas essas coisas precisam ser levadas em conta. E podemos esperar que, no fim, as pessoas cujas histórias contamos sejam, pelo menos, um quarto de Jesus.
Questões para reflexão
1. Todo relato escrito é seletivo, não importa quão objetivos os autores procurem ser. Por que, então, nos preocuparmos com os relatos que enfatizam só o lado positivo? De acordo com Adeney, como isso pode desanimar os leitores?
2. Qual é a imagem que as Escrituras apresentam dos servos de Deus? Como podemos permanecer humildes, transparentes e glorificar somente ao nosso Senhor?
3. De acordo com a autora, podemos nos perguntar quem tem o direito de falar sobre os defeitos de alguém. No dia a dia, os cristãos comuns não precisam expor seus pecados e vulnerabilidades na frente dos outros. Por que isso mudaria quando uma pessoa está passando por um intenso sofrimento? Como a apresentação de fraquezas e medos pode ajudar outros a crescer?
Notas:
1. STANSELL, 2009, p. 99.
2. Idem, p. 238.
3. PETERSON, 1988, p. 51, 55.
4. TUCKER, 2004, p. 204.
5. LEBRA, 1976, p. 47.
6. “Lectio divina”, ou Leitura Orante, é um método de oração, reflexão e contemplação
nascido nos mosteiros católicos, no terceiro século. Consiste de quatro
passos básicos – Lectio (Leitura); Meditatio (Meditação); Oratio (Oração) e
Contemplatio (Contemplação) – e seu objetivo é promover a comunhão com
Deus e aumentar o conhecimento da Palavra de Deus. (N.E.)
7. BONHOEFFER, 1953, p. 173. Tradução de José R. M. Prado.
8. STOCK, 2002.
• Miriam Adeney é antropóloga e missióloga, trabalha na Seattle Pacific University e no Regent College. Desde seu envolvimento como jovem com a Intervarsity Christian Fellowship (Aliança Bíblica Universitária) nas Filipinas, Miriam retorna regularmente ao Sudeste Asiático. Tem vários livros publicados, entre eles, Rookmaaker – Arte e Mente Cristã (Ultimato, 2012). Além de dar aulas em seminários, ela dirige cursos para escritores cristãos que trabalham em suas próprias línguas no Oriente Médio, na América Latina, na África e na Ásia.
-- Este artigo foi publicado originalmente no livro Sangue, Sofrimento e Fé, com o título “Quão santificadas deveriam ser as biografias?”
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Quão santificadas deveriam ser as biografias?
“O Henry é 1/4 Jesus”, disse Joel com seriedade, mastigando um sanduíche de manteiga de amendoim. Ele tinha acabado de brincar com Henry, de sete anos, o filho mais velho de uma família cristã. Hoje, Joel já tem quase trinta anos de idade, mas essa frase me marcou. “Um quarto de” Jesus. Por muito tempo tenho me perguntado: “Será que alguém me descreveria dessa forma?”
Por muito tempo também tenho sido edificada por biografias cristãs. A vida de Catherine Booth, Lilyas Trottere, Henrietta Mears. Sem essas histórias de seguidoras de Cristo, minha vida teria sido diferente. Eu não teria ousado ou perseverado tanto.
Entretanto, as biografias “santificadas” têm sido criticadas. Se os sujeitos parecem ser anjos, com poucas dúvidas, dores, impaciência ou raiva, os leitores acabam se perguntando: “Será que essa história é verdadeira?”
Todo escrito é seletivo, não importa quão objetivos os autores procurem ser. Então por que nos preocuparmos com os relatos que enfatizam só o lado positivo? Por diversas razões. Em primeiro lugar, as pessoas são falhas. Com certeza os vizinhos conhecem os defeitos da pessoa. Se uma história reconhece esses defeitos, terá maior credibilidade. Em segundo lugar, relatos idealizados podem desencorajar. Outras pessoas que passam por sofrimentos podem se indagar: “Por que estou sempre sofrendo? Será que estou fora da vontade de Deus? Por que não tenho esta confiança gloriosa e a serenidade dessa pessoa sobre quem estou lendo?”
Em vista dessas preocupações, aqui estão quatro sugestões que podem nos ajudar a escrever biografias melhores.
1. Boas biografias incluem o contexto
Em 2007, vinte e três missionários coreanos de curto prazo estavam viajando em um ônibus no Afeganistão quando acabaram sendo raptados. Durante quarenta e dois dias, ficaram no cativeiro. Dois morreram e, embora vinte e um tenham sido libertos, todos ficaram traumatizados.
Para conseguir a libertação, o governo da Coréia do Sul negociou diretamente com terroristas do Talibã. De repente, em vez de ser visto como um bando de marginais, o Talibã foi elevado a uma condição importante na esfera mundial, digno de realizar uma negociação internacional. Como parte do acordo, o grupo exigiu que todos os coreanos – trabalhadores cristãos, assistentes sociais e forças pacificadoras – deixassem o Afeganistão. Enquanto isso, na Coreia, o pastor sênior da igreja enviadora pediu desculpas à nação e se demitiu do seu pastorado. Embora mais tarde ele tenha sido restituído, o trabalho missionário ficou com a imagem manchada em todo o país.
Será que este sofrimento foi simplesmente causado por homens maus e por poderes satânicos? Ou será que fatores contextuais contribuíram? Nesse caso, outros grupos coreanos já haviam enviado milhares de missionários de curto prazo para o Afeganistão durante o ano anterior. Esses missionários realizavam campanhas de evangelização em massa em Kabul, jogavam folhetos nos quintais das pessoas e confrontavam estranhos no mercado com seu testemunho. A mídia afegã protestou, assim como missionários de longo prazo no país, até mesmo os coreanos. Finalmente, o governo afegão deportou as testemunhas afoitas, mas o mal já estava feito. No ano seguinte, outros sofreram as consequências.
O sofrimento não acontece num vácuo. Fatores geopolíticos podem motivar assassinos a interpretar seus atos como “parte da guerra”. Pessoas inocentes podem ser esmagadas na luta pela terra, na competição entre facções ou na batalha contra um poder imperial exagerado. Ou talvez o mártir possa, ele mesmo, ter se comportado de forma arriscada. Uma história acurada coloca o martírio em seu contexto.
Para pesquisar as circunstâncias de uma história, devemos verificar a internet, jornais e revistas, cartas missionárias, publicações arquivadas e registros de igrejas e escolas bíblicas e dados gerais sobre as condições sociopolíticas e econômicas para o período em questão. Lemos romances, assistimos a filmes e ouvimos música daquela época, conversamos com as pessoas que viviam naquele tempo e lugar.
Estudamos a cultura. Qual era a situação econômica, por exemplo? Como era uma refeição normal de uma família? O que era considerado um luxo especial? Quais veículos eram comumente utilizados – carros particulares, bicicletas, ônibus? Que tipo de tecnologia tinham? A quem deveriam sustentar, além da família? Quem poderia ajudá-los numa emergência financeira?
Como na história dos homens cegos que encontraram um elefante, nós nos aproximamos da pessoa de diversos ângulos para que possamos compreender sua vida de forma abrangente. Por exemplo, George Muller era um britânico do século 19 que tinha uma grande consciência social e resgatava crianças das ruas, estabelecendo orfanatos. Às vezes orava por seis horas a fio. Daí abria a porta de sua casa e ali encontrava pão fresco. É verdade. Mas não é toda a verdade. Muller viajou para a América do Norte para divulgar seus orfanatos. Este fato deve ser relatado também.
Em uma de suas biografias dos missionários “quaker”, Ron Stansell ilustra este tratamento a partir de muitos ângulos quando pergunta: O que contribuiu para seu sucesso precoce? Será que a população latina estava desiludida com o catolicismo e procurando algo a mais de Deus? Será que sua persistência ferrenha na implantação de igrejas e no treinamento de liderança estava finalmente produzindo frutos? Será que foi resultado da liderança de um superintendente inteligente e ousado? Ou o trabalho se adaptou melhor às mulheres? Ou será que fatores espirituais, como a oração, o reavivamento da santidade e a submissão à vontade de Deus foi o que trouxe o crescimento?1
Stansell também fala honestamente sobre as tensões, os conflitos e os defeitos. As “picuinhas” da transferência de propriedade e de poder são abertamente discutidas.2
A “triangulação” implica estudar um assunto diversas vezes, de diversos ângulos, talvez empregando pesquisadores diferentes, assim como diferentes métodos, períodos ou arcabouços teóricos. Usando o pseudônimo de Iliam, uma missionária fez uma triangulação no tempo ao escrever o livro “What is That in Your Hand?” [O que é isto em sua mão?] sobre muçulmanos que se converteram a Jesus no Paquistão. Ela descreveu diversas pessoas de dez em dez anos. Alguns dos sujeitos desabrocharam como tempo. Outros voltaram atrás. A triangulação permitiu que ela apresentasse esta comunidade com maior complexidade, aumentando a veracidade de seus relatos.
2. Boas biografias incluem pecados e falhas
Os personagens dos biógrafos não são perfeitos. Eles roncam, suam e cheiram mal, e às vezes perdem as chaves ou seus passaportes ou a paciência. Tomam decisões apressadas, desencadeando décadas de dificuldades subsequentes. São limitados e são pecadores. Se nos lembrarmos disso, nos protegeremos da tentação do triunfalismo.
Num domingo, na Ásia, quando eu estava observando como os cristãos locais eram maravilhosos, meu amigo Amat resolveu jogar um pouco de água fria em mim. “Por vinte anos eu investi em alunos”, ele disse. “Eu os discipulei, chorei com eles, celebrei com eles. Daí, eles se formam e conseguem bons empregos. Depois de dez anos, só falam da casa, do carro, da promoção, das férias e da grande reforma no prédio da igreja. Os pobres continuam a rodeá-los por todos os lados, mas eles já não os enxergam. Isso acontece com geração após geração de alunos.” E ele ficou ali sentado, com os olhos baixos e os ombros caídos, um líder tão talentoso e dedicado. Ajudou a corrigir minha imagem de um mundo cor-de-rosa. Eugene Peterson explica:
“A igreja é feita de pecadores. As pulgas vêm com o cachorro. Esperamos um exército disciplinado de homens e mulheres comprometidos, que corajosamente façam cerco aos poderes mundanos. Porém, no lugar disso, nos deparamos com algumas pessoas mais preocupadas em acabar com as pragas no jardim. Esperamos uma comunidade de santos que sejam maduros nas virtudes do amor e da misericórdia e nos descobrimos trabalhando num jantar de igreja onde há mais fofoca do que panelas. Esperamos encontrar mentes que sejam informadas e moldadas pelas grandes verdades e ritmos das Escrituras e descobrimos pessoas com uma energia intelectual que mal os leva dos quadrinhos à página de esportes... A fé em Cristo não torna uma pessoa bem articulada ou um companheiro estimulante. [Às vezes você tem que] aguentar um relacionamento entediante com peregrinos sem imaginação.”3
Às vezes os missionários não conseguem equilibrar bem ministério e vida familiar. As tensões nessa área são parte da história de muitos líderes cristãos, não raro relatadas com amargura por um de seus filhos. Rosalind Goforth refletiu sobre esse dilema quando seu marido talentoso, Jonathan, anunciou seu plano de evangelizar a China depois da Rebelião Boxer. Assistentes estabeleceriam centros em diversas regiões, ele planejou. A família moraria em cada um dos centros durante um mês. Nesse período fariam reuniões todas as noites. Depois os Goforths se mudariam para o próximo local.
Enquanto ouvia, Rosalind “foi ficando com o coração pesado”. Isso não era bom para uma família. Expor seus filhinhos às doenças infecciosas, tão comuns nos vilarejos, era muito arriscado, e ela não conseguia se esquecer dos “quatro pequenos túmulos” que já haviam deixado para trás no solo chinês. Embora ela não concordasse, ele seguiu adiante com seu plano, convencido de que esta era a vontade de Deus.4
Uma quinta criança morreu, mas dezenas de milhares de chineses aceitaram o Senhor. Como um biógrafo interpreta isto? Ele pode, pelo menos, relatar os fatos.
Bons pregadores ou escritores podem ser maus administradores ou até maus colegas. Veja Mary Slessor. Ao chegar à Nigéria, na década de 1880, ela salvou centenas de crianças e mulheres abandonadas na selva. Por ter conseguido chegar mais longe no interior africano do que qualquer outra pessoa, ela foi nomeada a primeira mulher vice-cônsul do Império Britânico. Por considerar os africanos como filhos de Deus tanto quanto europeus, ela morava, viajava, comia, dormia e se divertia com eles. Eles a chamavam de “Mãe de todos os Povos”. Entretanto, seus colegas missionários não gostavam de trabalhar com ela. Ela não tinha paciência com tolices. Não fazia parte do time. Para seus colegas, Mary era “difícil”.
No campo missionário, o discernimento dos pontos fortes e fracos de cada um é essencial. Por exemplo, alguns não lidam bem com o dinheiro. Não são bons de matemática ou são muito impulsivos. Pode ser que mudem algum dia, podemos até ter esperança. Mas, enquanto isso não acontece, seria um desastre colocá-los como tesoureiros do grupo. Assim como na vida, ao escrever uma biografia não deveríamos encorajar a cegueira diante das falhas.
Na história da igreja, a idealização dos ensinamentos de um líder já levou a muitas brigas e divisões desnecessárias. Os escritores devem reconhecer que nenhum líder tem ensinamentos perfeitos. Sempre seguimos as pisadas de outros, mas isto significa que só vemos um pouco além. Ainda há progresso pela frente. “Os herdeiros precisam tomar cuidado com os erros”, um aluno de teologia uma vez me disse.
Com a cultura da celebridade tão disseminada, alguns leitores preferem livros que idolatram heróis. No entanto, essa não é a forma cristã de escrever. Com certeza o Espírito Santo nos conduz em triunfo de formas maravilhosas. Porém Paulo e Barnabé brigaram. Pedro precisou de uma repreensão de Paulo. Todos nós ainda somos “vasos de barro”. Entre os louvores, então, precisamos comunicar um senso de humildade.
3. Boas biografias incluem honra e dignidade
“Não falamos de nossos pais assim”, os amigos de Elizabeth lhes disseram. Procurando se preparar para servir no Sudeste Asiático, Elizabeth começou a frequentar uma igreja asiática em Seattle (EUA). Uma noite, durante os testemunhos, ela contou que o sofrimento causado por sua família – um tanto problemática – a tinha levado ao Senhor Jesus. “Isso não é um testemunho. Isso é um desrespeito”, seus amigos lhe disseram delicadamente mais tarde. “Mesmo que sejam malucos ou maldosos, jamais devemos desonrar nossos pais publicamente.”
Da mesma forma, em culturas em que a honra é enfatizada, as biografias não deveriam focalizar as falhas das pessoas. Porém, pode-se dar a entender. Considere dois casos, um de um beduíno e outro de um japonês. No dia a dia, os beduínos egípcios admiram a dureza, o autocontrole e a honra. Eles não falam de suas feridas. Somente em suas músicas “ghinnawa” aparecem a vulnerabilidade, o sentimento e a sensibilidade. Os símbolos em suas músicas comunicam o que ele jamais admitiriam abertamente.
No outro caso, a antropóloga Takie Sugiyama Lebra argumenta que, entre os japoneses, só os mal-educados precisam de uma mensagem verbal direta e explícita. Uma pessoa refinada faz suas observações de forma mais indireta, velada, usando eufemismos ou metáforas. Por exemplo, imagine que uma mulher japonesa tenha tido um dia difícil com sua sogra, com quem ela mora. Como comunicaria isso ao seu marido? Talvez deixasse um vaso na porta de entrada de forma desorganizada. Ele veria as flores desarrumadas, perceberia que sua esposa está no limite e seria mais tolerante naquela noite.5 Em culturas assim, as biografias deveriam criticar de forma indireta e oblíqua.
A privacidade é outra questão. Quem tem o direito de contar os defeitos de outra pessoa? No dia a dia, os cristãos comuns não precisam expor seus pecados ou vulnerabilidades na frente dos outros. Contamos para parceiros de oração confiáveis, para um pequeno grupo ou somente para Deus. Isso muda quando uma pessoa é martirizada ou colocada em uma situação de intenso sofrimento? De repente, precisamos contar tudo para que a verdade seja dita, quando a pessoa se torna notícia de jornal?
Com certeza as pessoas podem manter certa privacidade se desejarem, tanto para seu próprio bem quanto para o bem dos outros que sofreriam com as revelações. O público não tem o direito de conhecer todos os detalhes pessoais.
Por outro lado, uma pessoa pode querer revelar muito. Quando a Dra. Helen Roseweare foi estuprada no Congo, ela incluiu isso na sua biografia. Além das humilhações pessoais e organizacionais, tanto no começo quanto no fim de sua carreira, o estupro violento era mais uma vergonha. Porém, Deus usou suas revelações para o bem. Levada a um campo de concentração, ela pôde encorajar as freiras, especialmente uma mocinha italiana que tinha sido exposta nua antes de ser estuprada por um grupo de homens. Achando que tinha perdido sua pureza, essa moça estava pensando em se matar. Helen a ajudou. Quando ficou mais velha, Helen recebeu muitos convites para falar sobre missões, justamente por sua honestidade.
4. Boas biografias incluem a semelhança com Cristo
“Gosto de biografias de santos. São uma das coisas que mais gosto de ler”, confessou Alvin. “Por quê?”, fiquei me perguntando, pensando comigo que “biografias de santos” são histórias muito “santificadas”.
O autor de “Taking Your Soul to Work” [Colocando sua alma para trabalhar], Alvin Ung, é da Malásia, casado e pai de filhos, e já foi um dos repórteres internacionais da Associated Press. Também foi o paraninfo em uma das formaturas no Regent College, onde eu sou professora. Alvin me enviou um e-mail com a resposta para meu “Por quê?”. Dizia:
“Em nossa geração, desconfiamos, apropriadamente, de pessoas cristãs que vivem uma vida de santidade. Já partimos do princípio de que todos temos um lado obscuro. Até mesmo os mais santos, como a Madre Teresa de Calcutá, têm seus críticos, como Christopher Hitchens, que (sem sucesso) tentou acabar com sua reputação no seu livro Missionary Position [Posição missionária]... Acreditamos fundamentalmente que não seja possível vencer o hábito do pecado e dos vícios para nos tornarmos nova criatura – uma pessoa revestida de retidão, uma pessoa que ‘escapou da corrupção’ e ‘participa da natureza divina’ (2Pe 1.4).”
Além disso, leitores ocidentais geralmente presumem que os milagres e os demônios não podem ser reais. Ocidentais estão acostumados com fatos científicos e atribuem qualquer tipo de demonologia a atividade psicológica. Já leitores asiáticos não pensariam o mesmo.
Se pudermos retirar nossas lentes de “suspeita hermenêutica” do século 21 e ler as biografias de forma apreciativa, no estilo da “lectio divina”,6 aprenderemos a arte de viver bem, a arte da conversão contínua, e arte de morrer bem, sugere Alvin. Descobriremos que viver e morrer estão relacionados. “Para mim, o viver é Cristo” (Fp 1.21).
“Porque estamos sobrecarregados de pecado e preocupados com a depravação, achamos que não seja possível viver em união com Deus antes do paraíso”, Alvin continua. Mas considere a vida de Antônio, o egípcio do quarto século que foi o pioneiro da vida monástica. Ao lutar contra temores financeiros, contra a cobiça, a ira, apegos profundos e demônios, ele descobriu que Jesus sempre estivera presente em sua vida, especialmente durante suas lutas mais terríveis. E esta descoberta da presença de Jesus o levou a níveis ainda mais profundos de conversão... Ele viveu uma vida de constante renúncia e, portanto, começou a crescer em virtude... A vida de Antônio nos mostra como um ser humano falho pode se tornar como Cristo. Aos 105 anos de idade, ele demonstrava a inocência espiritual de meu filhinho: uma vida de encantamento, alegria e admiração diante dos dons da vida.
Quem sou eu?
Antes de morrer numa prisão nazista, o pastor Dietrich Bonhoeffer escreveu as seguintes linhas:
“Quem sou eu? Frequentemente me dizem
Que sai da confinação da minha cela
De modo calmo, alegre, firme,
Como um cavalheiro da sua mansão.
Quem sou eu? Frequentemente me dizem
Que falava com meus guardas
De modo livre, amistoso e claro
Como se fossem meus para comandar.
Quem sou eu? Dizem-me também
Que suportei os dias de infortúnio
De modo calmo, sorridente e alegre
Como quem está acostumado a vencer.
Sou, então, realmente tudo aquilo que os outros me dizem?
Ou sou apenas aquilo que sei acerca de mim mesmo?
Inquieto e saudoso e doente, como ave na gaiola,
Lutando pelo fôlego, como se houvesse mãos apertando minha garganta,
Ansiando por cores, por flores, pelas vozes das aves,
Sedento por palavras de bondade, de boa vizinhança,
Conturbado na expectativa de grandes eventos,
Tremendo, impotente, por amigos a uma distância infinita,
Cansado e vazio ao orar, ao pensar, ao agir,
Desmaiando, e pronto para dizer adeus a tudo isto?
Quem sou eu? Este, ou o outro?
Sou uma pessoa hoje, e outra amanhã?
Sou as duas ao mesmo tempo? Um hipócrita diante dos outros,
E diante de mim, um fraco, desprezivelmente angustiado?
Ou há alguma coisa ainda em mim como exército derrotado,
Fugindo em debanda da vitória já alcançada?
Quem sou eu? Estas minhas perguntas zombam de mim na solidão.
Seja quem for eu, Tu sabes, ó Deus, que sou Teu!” 7
Muito bem
Em 2002, Dale Stock, um missionário de segunda geração no Paquistão, estava relaxando num lago com sua família e alguns amigos. “Socorro!” – alguém gritou da água. Dale mergulhou e salvou o nadador, mas ele mesmo se afogou.
Enquanto escrevo este capítulo, estou ouvindo um lindo coral cantando a música que o irmão de Dale, Paul, compôs. Chama-se “Muito bem”:
“Ansiosamente esperei, sabendo que era a hora.
O céu todo se alegrou quando você atravessou a linha da chegada!
Eu o alcancei na água, segurei-o em minha mão.
Agora você está em meus braços, na sua casa.
Não se preocupe com seus amados: eu mesmo enxugarei suas lágrimas.
Em pouco tempo, como minutos, eles nos encontrarão aqui.
As multidões vieram saudá-lo, amados que já haviam partido.
Ouça como aclamam sua chegada!
Muito bem, servo bom e fiel!
Você completou todo o trabalho que ele lhe designou.
Muito bem! Você lhe trouxe glória,
Você brilhará agora como as estrelas e o sol.
A coroa da vida você conquistou, amado.
Bem-vindo ao lar, Dale. Muito bem!”8
O céu todo se alegrou quando você atravessou a linha da chegada!
Eu o alcancei na água, segurei-o em minha mão.
Agora você está em meus braços, na sua casa.
Não se preocupe com seus amados: eu mesmo enxugarei suas lágrimas.
Em pouco tempo, como minutos, eles nos encontrarão aqui.
As multidões vieram saudá-lo, amados que já haviam partido.
Ouça como aclamam sua chegada!
Muito bem, servo bom e fiel!
Você completou todo o trabalho que ele lhe designou.
Muito bem! Você lhe trouxe glória,
Você brilhará agora como as estrelas e o sol.
A coroa da vida você conquistou, amado.
Bem-vindo ao lar, Dale. Muito bem!”8
Quão santificadas devem ser as biografias? Quanta tristeza deve se equilibrar com a glória? Contexto, pecado e falhas, honra e dignidade, todas essas coisas precisam ser levadas em conta. E podemos esperar que, no fim, as pessoas cujas histórias contamos sejam, pelo menos, um quarto de Jesus.
Questões para reflexão
1. Todo relato escrito é seletivo, não importa quão objetivos os autores procurem ser. Por que, então, nos preocuparmos com os relatos que enfatizam só o lado positivo? De acordo com Adeney, como isso pode desanimar os leitores?
2. Qual é a imagem que as Escrituras apresentam dos servos de Deus? Como podemos permanecer humildes, transparentes e glorificar somente ao nosso Senhor?
3. De acordo com a autora, podemos nos perguntar quem tem o direito de falar sobre os defeitos de alguém. No dia a dia, os cristãos comuns não precisam expor seus pecados e vulnerabilidades na frente dos outros. Por que isso mudaria quando uma pessoa está passando por um intenso sofrimento? Como a apresentação de fraquezas e medos pode ajudar outros a crescer?
Notas:
1. STANSELL, 2009, p. 99.
2. Idem, p. 238.
3. PETERSON, 1988, p. 51, 55.
4. TUCKER, 2004, p. 204.
5. LEBRA, 1976, p. 47.
6. “Lectio divina”, ou Leitura Orante, é um método de oração, reflexão e contemplação
nascido nos mosteiros católicos, no terceiro século. Consiste de quatro
passos básicos – Lectio (Leitura); Meditatio (Meditação); Oratio (Oração) e
Contemplatio (Contemplação) – e seu objetivo é promover a comunhão com
Deus e aumentar o conhecimento da Palavra de Deus. (N.E.)
7. BONHOEFFER, 1953, p. 173. Tradução de José R. M. Prado.
8. STOCK, 2002.
• Miriam Adeney é antropóloga e missióloga, trabalha na Seattle Pacific University e no Regent College. Desde seu envolvimento como jovem com a Intervarsity Christian Fellowship (Aliança Bíblica Universitária) nas Filipinas, Miriam retorna regularmente ao Sudeste Asiático. Tem vários livros publicados, entre eles, Rookmaaker – Arte e Mente Cristã (Ultimato, 2012). Além de dar aulas em seminários, ela dirige cursos para escritores cristãos que trabalham em suas próprias línguas no Oriente Médio, na América Latina, na África e na Ásia.
-- Este artigo foi publicado originalmente no livro Sangue, Sofrimento e Fé, com o título “Quão santificadas deveriam ser as biografias?”
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