Opinião
- 06 de setembro de 2018
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Como construir um país mais justo
Por William Lane
Celebrar a independência do Brasil em início de campanha eleitoral, em ambiente de luta contra a corrupção e em meio a graves problemas sociais e econômicos deve nos fazer não só desejar um país mais justo, mas, sobretudo, participar ativamente da construção de uma nação mais justa.
Mas como fazer isso se temos fama e, talvez, orgulho do ‘jeitinho’ brasileiro que, embora possa ser visto como símbolo de criatividade e flexibilidade na solução de problemas difíceis, tem uma conotação negativa como esperteza, malandragem e desrespeito às leis?
De acordo com uma pesquisa de 2013 da Fundação Getúlio Vargas, que lançou o Índice de Percepção do Cumprimento da Lei, 79% dos brasileiros optam pelo ‘jeitinho’ em vez de seguir às leis, apesar de 74% acharem que a lei deva ser cumprida mesmo quando não as consideram corretas.
Essa postura em relação à lei nos leva, paradoxalmente, a esperar altíssimo padrão moral dos outros, mas pouco compromisso pessoal em combater a ilegalidade e a corrupção próximas de nós, ou as nossas próprias práticas ilícitas. Desejamos governantes íntegros e justos desde que não sancionem leis contrárias aos nossos interesses.
No meio cristão, boa parte do debate teológico sobre a lei gira em torno do lugar da lei em nossa justificação perante Deus e, portanto, na oposição da lei à fé, ou das obras da lei à graça do evangelho. O Novo Testamento nos diz que toda a lei se cumpre em Cristo, assim não vivemos mais debaixo da lei e, sim, da graça. Isso, porém, pode nos levar a um antinomianismo, isto é, à ideia de que por meio da graça o cristão não tem mais a obrigação de obedecer às leis do Antigo Testamento ou qualquer outra lei religiosa.
Apesar da forte ênfase na graça e na justificação pela fé, os reformadores do século 16 procuraram evitar o antinomianismo classificando a Lei Mosaica em lei moral, lei cerimonial, e lei civil ou humanitária. A lei cerimonial corresponde a todas as instruções sobre os sacrifícios que apontavam para Cristo. Assim, o sacrifício de Cristo na cruz cumpre toda a finalidade da lei cerimonial. As leis civis são particulares ao contexto histórico dos israelitas desde a saída do Egito até a vida na terra prometida, por isso, também, não se aplicam à sociedade moderna. Por fim, a lei moral contida principalmente nos Dez Mandamentos é válida para todos os tempos, portanto, ainda deve ser obedecida.
Contudo, por mais didática que seja essa classificação, a Bíblia propriamente não faz essa distinção. Não há exatamente uma distinção entre lei civil e lei religiosa na Bíblia. Aliás, todo o Pentateuco, incluindo a narrativa, é chamado Torá, isto é, instrução. Leis de culto, de ordem social, de trato com o próximo e com a propriedade do outro estão associadas à vida santa na terra que Deus dá.
Por isso, vejo dois aspectos das leis do Pentateuco que podem nos auxiliar na construção de uma sociedade mais justa.
O primeiro aspecto é o contexto narrativo das leis. Os Dez Mandamentos e as leis que se seguem são dados ao povo que saiu do Egito pelo “braço forte” do Senhor. A introdução dos Mandamentos declara, “Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão” (Êx 20.2). A lei é dada no contexto da graça, isto é, depois de Deus já manifestar a sua graça tirando o povo da escravidão. A lei é dada para um povo liberto, por isso, tem a função de instruir o povo liberto como viver sob o senhorio de Deus. Mesmo no Antigo Testamento, a lei não tinha a função de tornar alguém justo a fim de receber a salvação ou a promessa de vida abundante. A lei determina como um povo alcançado pela graça irá viver com o seu Deus.
O segundo aspecto que me chama atenção é a abrangência da lei. As leis incluem todas as áreas da vida desde o culto a Deus, os sacrifícios aceitáveis e as obrigações morais, até a dieta, o cuidado pessoal com a saúde e higiene, as relações sociais, o trato com escravos e estrangeiros, o pagamento de dívidas, o cuidado com a terra e a propriedade pessoal e alheia, incluindo como se livrar de mofo da parede e como cultivar e colher frutas e grãos. Essas leis não estão separadas em códigos legais humanitários, de saúde pública, ambientais, dietéticos, sociais, trabalhistas etc. Elas estão todas mescladas e o que as une é a presença de Deus no meio do povo. Elas refletem uma cosmovisão que delimita o tempo, o espaço, os seres vivos e as coisas como sagradas, puras e imundas ou profanas. O espaço, tempo e coisas profanas representam distância de Deus e morte. Tudo que afirma a vida é realizado na presença de Deus e está relacionado ao culto e à aliança com Deus.
Não há como separar vida religiosa de vida secular. Esse aspecto será lembrado pelos profetas que condenam uma vida espiritual alienada da responsabilidade social. A Bíblia A Mensagem expressa bem a queixa de Deus em Isaías 1.13-17, “Chega de joguinhos religiosos! Não suporto mais essa encenação. Conferências mensais, agenda sabática, encontros especiais, reuniões, reuniões e mais reuniões – não aguento ouvir falar em reunião … Estou cansado de religião, de tanta religião, enquanto vocês continuam pecando … Sabem por quê? Porque vocês têm trucidado pessoas, e suas mãos estão cheias de sangue”.
O problema de classificar as leis do Pentateuco em cerimoniais, civis ou humanitárias e morais é que nos faz pensar que apenas as leis morais permanecem válidas. No entanto, as leis cerimoniais e humanitárias representam a aplicação da lei moral. Assim, Êxodo 20.1-21 contém os Dez Mandamentos. Logo em seguida, de Êxodo 20.22 até 23.33 há diversas instruções que refletem como os Dez Mandamentos devem ser aplicados. E tudo isso está dentro do contexto do estabelecimento da aliança de Deus com o seu povo iniciado no capítulo 19 e finalizado no capítulo 24. Ainda que as leis retratem uma sociedade agrária antiga, o princípio delas ainda é pertinente e válido para a sociedade moderna, sobretudo, pelo fato de serem abrangentes e estarem interligadas à relação com Deus.
Se quisermos um país mais justo, precisamos ter uma visão holística da vida. Como cristãos, precisamos entender, sim, que a vida religiosa e a vida civil caminham juntas, por isso, construir um país justo implica em praticar a justiça e a santidade em todas as dimensões da vida.
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Celebrar a independência do Brasil em início de campanha eleitoral, em ambiente de luta contra a corrupção e em meio a graves problemas sociais e econômicos deve nos fazer não só desejar um país mais justo, mas, sobretudo, participar ativamente da construção de uma nação mais justa.
Mas como fazer isso se temos fama e, talvez, orgulho do ‘jeitinho’ brasileiro que, embora possa ser visto como símbolo de criatividade e flexibilidade na solução de problemas difíceis, tem uma conotação negativa como esperteza, malandragem e desrespeito às leis?
De acordo com uma pesquisa de 2013 da Fundação Getúlio Vargas, que lançou o Índice de Percepção do Cumprimento da Lei, 79% dos brasileiros optam pelo ‘jeitinho’ em vez de seguir às leis, apesar de 74% acharem que a lei deva ser cumprida mesmo quando não as consideram corretas.
Essa postura em relação à lei nos leva, paradoxalmente, a esperar altíssimo padrão moral dos outros, mas pouco compromisso pessoal em combater a ilegalidade e a corrupção próximas de nós, ou as nossas próprias práticas ilícitas. Desejamos governantes íntegros e justos desde que não sancionem leis contrárias aos nossos interesses.
No meio cristão, boa parte do debate teológico sobre a lei gira em torno do lugar da lei em nossa justificação perante Deus e, portanto, na oposição da lei à fé, ou das obras da lei à graça do evangelho. O Novo Testamento nos diz que toda a lei se cumpre em Cristo, assim não vivemos mais debaixo da lei e, sim, da graça. Isso, porém, pode nos levar a um antinomianismo, isto é, à ideia de que por meio da graça o cristão não tem mais a obrigação de obedecer às leis do Antigo Testamento ou qualquer outra lei religiosa.
Apesar da forte ênfase na graça e na justificação pela fé, os reformadores do século 16 procuraram evitar o antinomianismo classificando a Lei Mosaica em lei moral, lei cerimonial, e lei civil ou humanitária. A lei cerimonial corresponde a todas as instruções sobre os sacrifícios que apontavam para Cristo. Assim, o sacrifício de Cristo na cruz cumpre toda a finalidade da lei cerimonial. As leis civis são particulares ao contexto histórico dos israelitas desde a saída do Egito até a vida na terra prometida, por isso, também, não se aplicam à sociedade moderna. Por fim, a lei moral contida principalmente nos Dez Mandamentos é válida para todos os tempos, portanto, ainda deve ser obedecida.
Contudo, por mais didática que seja essa classificação, a Bíblia propriamente não faz essa distinção. Não há exatamente uma distinção entre lei civil e lei religiosa na Bíblia. Aliás, todo o Pentateuco, incluindo a narrativa, é chamado Torá, isto é, instrução. Leis de culto, de ordem social, de trato com o próximo e com a propriedade do outro estão associadas à vida santa na terra que Deus dá.
Por isso, vejo dois aspectos das leis do Pentateuco que podem nos auxiliar na construção de uma sociedade mais justa.
O primeiro aspecto é o contexto narrativo das leis. Os Dez Mandamentos e as leis que se seguem são dados ao povo que saiu do Egito pelo “braço forte” do Senhor. A introdução dos Mandamentos declara, “Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão” (Êx 20.2). A lei é dada no contexto da graça, isto é, depois de Deus já manifestar a sua graça tirando o povo da escravidão. A lei é dada para um povo liberto, por isso, tem a função de instruir o povo liberto como viver sob o senhorio de Deus. Mesmo no Antigo Testamento, a lei não tinha a função de tornar alguém justo a fim de receber a salvação ou a promessa de vida abundante. A lei determina como um povo alcançado pela graça irá viver com o seu Deus.
O segundo aspecto que me chama atenção é a abrangência da lei. As leis incluem todas as áreas da vida desde o culto a Deus, os sacrifícios aceitáveis e as obrigações morais, até a dieta, o cuidado pessoal com a saúde e higiene, as relações sociais, o trato com escravos e estrangeiros, o pagamento de dívidas, o cuidado com a terra e a propriedade pessoal e alheia, incluindo como se livrar de mofo da parede e como cultivar e colher frutas e grãos. Essas leis não estão separadas em códigos legais humanitários, de saúde pública, ambientais, dietéticos, sociais, trabalhistas etc. Elas estão todas mescladas e o que as une é a presença de Deus no meio do povo. Elas refletem uma cosmovisão que delimita o tempo, o espaço, os seres vivos e as coisas como sagradas, puras e imundas ou profanas. O espaço, tempo e coisas profanas representam distância de Deus e morte. Tudo que afirma a vida é realizado na presença de Deus e está relacionado ao culto e à aliança com Deus.
Não há como separar vida religiosa de vida secular. Esse aspecto será lembrado pelos profetas que condenam uma vida espiritual alienada da responsabilidade social. A Bíblia A Mensagem expressa bem a queixa de Deus em Isaías 1.13-17, “Chega de joguinhos religiosos! Não suporto mais essa encenação. Conferências mensais, agenda sabática, encontros especiais, reuniões, reuniões e mais reuniões – não aguento ouvir falar em reunião … Estou cansado de religião, de tanta religião, enquanto vocês continuam pecando … Sabem por quê? Porque vocês têm trucidado pessoas, e suas mãos estão cheias de sangue”.
O problema de classificar as leis do Pentateuco em cerimoniais, civis ou humanitárias e morais é que nos faz pensar que apenas as leis morais permanecem válidas. No entanto, as leis cerimoniais e humanitárias representam a aplicação da lei moral. Assim, Êxodo 20.1-21 contém os Dez Mandamentos. Logo em seguida, de Êxodo 20.22 até 23.33 há diversas instruções que refletem como os Dez Mandamentos devem ser aplicados. E tudo isso está dentro do contexto do estabelecimento da aliança de Deus com o seu povo iniciado no capítulo 19 e finalizado no capítulo 24. Ainda que as leis retratem uma sociedade agrária antiga, o princípio delas ainda é pertinente e válido para a sociedade moderna, sobretudo, pelo fato de serem abrangentes e estarem interligadas à relação com Deus.
Se quisermos um país mais justo, precisamos ter uma visão holística da vida. Como cristãos, precisamos entender, sim, que a vida religiosa e a vida civil caminham juntas, por isso, construir um país justo implica em praticar a justiça e a santidade em todas as dimensões da vida.
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Pastor presbiteriano e doutor em Antigo Testamento, é professor e capelão no Seminário Presbiteriano do Sul, e tradutor de obras teológicas. É autor do livro O propósito bíblico da missão.
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