Opinião
- 21 de outubro de 2015
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Coldplay e o paradoxo criativo da providência
“Fix you” é uma das letras musicais de maior impacto psicológico que a banda Coldplay já cantou. Nela, o paradoxo antropológico da ontologia da neomodernidade se evidencia sem qualquer acanhamento. A experiência finitizante do “eu paradoxal” (Kirk Schneider) figura-se como anteparo de um sistema de crença oxidado, contingenciado pela ambiguidade de um horizonte ontológico pessimista, no qual a percepção “do eu, do mundo e do futuro” se apresenta como refém de um “triângulo das bermudas” capaz de exaurir da vida a alegria do encanto. Esse é o famoso sintoma da “tríade da depressão” sublinhada por Aaron Beck, pai da Terapia Cognitiva. Na canção, reverbera-se, de-sutilmente, o “grito deprimido” de uma geração pandemicamente adoecida em sua dimensão psíquica. E isso não é falso alarme de uma cultura de tendência societária. O horizonte social de crescimento desse distúrbio afetivo parece ser apavorante, segundo a previsão da OMS para um futuro próximo. Ela (depressão) será a epidemia mais comum das próximas décadas. Como efeito cascata da expansão vertiginosa dessa psicopatologia, se deduz o inevitável aumento da prática de auto-negação ôntica (suicídio) em escala industrial.
Por essa razão, a música “Fix You” é cantada com melodia sorumbática, na qual se celebra, intencionalmente, a inapetência da alegria pelo cultivo de uma forma de vida com esperança reluzente. Ela evoca a “epifania do fogo” para contrastar com o “frio da alma” sentido pelo indivíduo deprimido. A euforia do medo está no substrato semântico da letra. A crença do “desamparo ontológico” parece estar escondida no diálogo imaginário “do eu com o tu misterioso”, que se afirma, no epicentro da poesia musical, como telos interior (Paul Tillich) de uma retórica “biografia reclamante”, contingenciada pelos “medos sem nomes” que nascem de cada experiência humana que se tem no mundo da vida. Vive-se para sofrer, e com o sofrimento os indivíduos parecem aprender (precariamente) a resistir o élans impetuoso da pergunta pelo “sentido de tudo”, inclusive o do “nada” também. Não é de admirar que a discussão da metafísica clássica, mesmo a que foi trazida pelas habilidosas palavras do autor de Ensaio de Teodicéia (G. W. Leibniz), tenha se debruçado, apologeticamente, para evitar uma relação de tensionalidade auto excludente das variáveis “fé (pistis) e sofrimento humano (pathos)”.
A percepção da racionalidade operante de “crenças alcalinas”1 (gênero) se precariza no contexto existencial das “experiências páticas”. Falta luz (metáfora usada no Talmud para conotar “compreensão”) nesse espaço ontológico em que a “dor do desencanto” (razão destranscendente) produz baixa mobilidade psíquica do indivíduo. Em termos psicológicos, isso preconiza a ideia de superaquecimento das cognições telodestrutivas (patonoesis). Esse apelo (hermenêutico) também aparece, intencionalmente, na estrutura semiótica da poesia musical cantada por Coldplay em “Fix You”. A luz precisa “guiar/conduzir” quem se sente desamparado na vida; quem se sente travado na existência, caminhando com “algemas nos pés”. É provável que o “cárcere do ego”, reduzido em sua destranscendentalidade imediata, esteja nas reminiscências mal curadas. Ali pode haver um ponto de fixação paranóica. Infelizmente, passado não superado deixa feridas na psicologia do indivíduo, e não cicatrizes. Onde não há esperança, transbordam-se as memórias de autopunitividade. Não olha pra frente quem foi abduzido pelo espelho das “experiências mal significadas” do passado.
A elpiterapia (inspirada no indicativo logoterapêutico de Viktor Frankl), como proposta de tratamento psíquico para superação do medo do futuro na vida, pode ser um problema para quem se afixou no “histórico do imaginário” (contingenciamento psíquico). As experiências acumuladas ao longo da vida produzem um “estoque de conhecimento” (Alfred Schütz), só que enviesado negativamente. A depressão é o status quo de uma realidade psíquica que deixa de fertilizar a “ontologia do presente” com perspectiva à transcendência da promessa (a vida pode mudar, sempre – mesmo quando não se acredita tanto). Nesse sentido, a esperança tem sentido escatológico (hypomoné), pois ela carrega consigo a habilidade de finalizar cada parágrafo escrito, de uma carta autobiográfica, sempre com “reticência”, e nunca com “ponto final”. O futuro (boas expectativas) condiciona a percepção do presente nela. Assim, o já-agora ganha conotação de um “continuum”. Do “Fix You”, portanto, se deduz a potencialidade de uma realidade de vida que sugere “mobilidade ontológica”. De cada experiência que se vive, uma “metamorfousthe” (realidade de autotransformação) é esperada.
A banda Coldplay parece querer expressar com essa letra musical a crença matricial de uma expansão contínua da psicologia do indivíduo acontecendo no mundo, mesmo quando sujeita às estruturas de intersubjetividade que foram duramente contingenciadas pelos processos sociais/culturais. O ponto nevrálgico da canção aparece no retumbante “Fix You” (consertar você). Sua fenomenologia hermenêutica desvela a existência de “mobilidades terapêuticas” ocorrendo na psicologia de um indivíduo que pode estar paralisado na vida por conta de adventos inesperados como os transtornos psíquicos. O “fix” sugere “movimento fertilizante” com vista à alteração do “funcionamento psíquico” de um ente-pessoa que se tornou precário, patológico. A ideia de evolução, na psicologia clínica, evoca o sentido de superação que a “mudança” produz na vida de um indivíduo. Mudar é sujeitar a estagnação da indiferença a um “movimento teloterapêutico” que pode deslocar a atenção do desencanto para o foco da esperança. Desse funcionamento do capital esperante se infere a afirmação (ontogeracional) de uma psicoterapia acontecendo.
Mas “consertar algo” sugere vicejar outra realidade também: o “paradoxo da providência” (Paul Tillich). A reparação de um defeito só é factível quando uma coisa ou realidade sofre algum tipo de dano ou disfunção. As crenças disfuncionais, de que nos fala Aaron Beck, são realidades psíquicas que diminuem ou comprometem a operacionalidade das “mobilidades terapêuticas” de um sistema de crença, o qual deveria funcionar normalmente a fim de tornar o indivíduo apto para enfrentar e superar seus próprios medos. A depressão, enquanto processo psíquico de estagnação da mobilidade do sistema de crenças, interfere diretamente na autopercepção do indivíduo, e o precariza funcionalmente. Quando depressivo, a sensação que este último tem é a de uma disfuncionalidade operacional de suas “crenças alcalinas” capitais, o que implica assumir a condição de insuperabilidade funcional autoimposta pela consciência. Afugentar-se, na maioria dos casos, pode ser o único modo de “invisibilizar” do outro a autopercepção de fracasso na vida que o ego desenvolve então. Da metáfora: “os meus ossos envelheceram” (Salmos 32, 3), oriunda da poesia hebraica, se infere a fisiologia de uma crença oxidativa, com função patogeracional, produzindo uma desorizontalização radical do presente vivido.
Um sistema de crença “estragado” deporta o indivíduo do paraíso para as regiões sombrias mais insustentáveis da vida, sem qualquer horizonte de existência pensável. A paradoxalização implica, nesse sentido, o aumento da quantidade de problemas existentes em uma forma de vida, sem que haja perspectivas de solução ou enfrentamento para se propor a qualquer um deles. Dessa forma, o desespero figura-se quando a morte (disfuncionalidade ontológica) acontece antes do fim da vida (Soren Kierkegaard). Existir com sistema de crença estragado é caminhar para o futuro com uma sensação de precarização operacional da vida; é caminhar sendo empurrado para um labirinto gigantesco, onde a única placa sinalizadora que existe é a do “sem saída”. O “fim das possibilidades” é o marco contingencial do paradoxo da providência. A perda de “um horizonte além do agora” é o ponto de afirmação ontológica das insuficiências operacionais da psicologia humana.
Mas para ser criativo, o paradoxo da providência tem que ser capaz de gerar “vida do nada” (“ex nihilo”). Nesse caso, consertar uma realidade só é possível quando se admite que ela estragou-se por completo. Na polaridade “estrago e conserto” se têm a epifania de um paradoxo criativo. Não há compreensão de cura sem a afirmação da doença, nem da esperança sem a admissão do desencanto (depressão). As antinomias revelam a linguagem do paradoxo pela via da superação (a “suprassunção”, no pensamento hegeliano). O “Fix You” revela-se, portanto, como uma promessa de “novo encontro”, de “novo sentido”, de “nova criação” (“kainê ktisis”). O fim é o começo de uma outra realidade que se irrompe. Não haveria alvorada sem o crepúsculo do dia. Dramatizar a perda é admitir-se refém de uma racionalidade capitalística, condição que torna difícil a admissão “do estrago” como parte de uma metodologia do paradoxo criativo presente no processo da vida. O “morrendo morrerás”, afirmado na narrativa da segunda criação, transmuta-se, ganhando sua redenção através da linguagem poética do Evangelho da Graça: “(...) quem crê em mim, ainda que morra, viverá”. A ressurreição é, pois, a linguagem do paradoxo criativo da providência na história da salvação. Nela, “o sim e o não” (sic et non) desvenda a “cratofania do novo”, a novidade do antigo que não é condenada ao esquecimento (anacronismo).
Que desdobramento para a psicologia da existência se pode deduzir dessa reflexão? Das muitas possibilidades hermenêuticas existentes, “consertar alguém ou alguma realidade” é, antes de tudo, a promessa de revitalizar uma biografia semi-moribunda, mas não natimorta. Quando se constata que uma vida se estragou em sua contingencialidade, não se deve pensar, de forma dramática, que tudo está perdido (paradoxalização), ou que a existência no mundo está condenada ao esfacelamento ontológico. Não!... A providência não deve ser compreendida apenas como interferência, mas como “polaridade ontológica do ser” (Paul Tillich). Ela é a “capacidade criativa” presente em toda situação vivida. Não age (somente) “sobre”, mas “em” e “a partir” das realidades vivenciadas. Por isso, ela se apresenta de modo paradoxal. Ao se ver afirmado em canção: “Fix You”, se deve apreender dessa sentença que é possível, sim, ver renascer – mesmo para uma vida que sangra (depressão) – a capacidade auto-reparadora da vida ser plenamente recuperada pelo poder (anti-tanatofóbico) da graça divina. O choque de esperança cura qualquer forma de depressão. Esse é um veredicto trans-racional da revelação bíblica. Não há como polemizar filosoficamente com esse axioma revelacional. É como se numa situação limite, de extremo desencanto, se pudesse ouvir, como um sonoro sopro da providência, algo dizendo: “Ei!... Eu renovo tudo, inclusive você... Não importa o que aconteceu até aqui: eu faço novas todas as coisas”... Sempre! (descontingenciamento ontológico).
Nota:
1. Sobre esse tema, sugiro a leitura de PIRES, A. C.. Sistema de Estruturação de Crenças Sócio-interativo: estruturação de crenças, lógicas de interação e processos de contingenciamento. Psicólogo Informação, v. 17, p. 133-191, 2013.
• Anderson Clayton Pires é doutor em sociologia (UFRGS) e doutor em teologia (IEPG-EST). Integra, como professor convidado, o corpo docente do Centro Luterano de Estudos Psicossociológicos e Poimênicos. É casado com Cristina, pai de Diogo e Renata.
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A percepção da racionalidade operante de “crenças alcalinas”1 (gênero) se precariza no contexto existencial das “experiências páticas”. Falta luz (metáfora usada no Talmud para conotar “compreensão”) nesse espaço ontológico em que a “dor do desencanto” (razão destranscendente) produz baixa mobilidade psíquica do indivíduo. Em termos psicológicos, isso preconiza a ideia de superaquecimento das cognições telodestrutivas (patonoesis). Esse apelo (hermenêutico) também aparece, intencionalmente, na estrutura semiótica da poesia musical cantada por Coldplay em “Fix You”. A luz precisa “guiar/conduzir” quem se sente desamparado na vida; quem se sente travado na existência, caminhando com “algemas nos pés”. É provável que o “cárcere do ego”, reduzido em sua destranscendentalidade imediata, esteja nas reminiscências mal curadas. Ali pode haver um ponto de fixação paranóica. Infelizmente, passado não superado deixa feridas na psicologia do indivíduo, e não cicatrizes. Onde não há esperança, transbordam-se as memórias de autopunitividade. Não olha pra frente quem foi abduzido pelo espelho das “experiências mal significadas” do passado.
A elpiterapia (inspirada no indicativo logoterapêutico de Viktor Frankl), como proposta de tratamento psíquico para superação do medo do futuro na vida, pode ser um problema para quem se afixou no “histórico do imaginário” (contingenciamento psíquico). As experiências acumuladas ao longo da vida produzem um “estoque de conhecimento” (Alfred Schütz), só que enviesado negativamente. A depressão é o status quo de uma realidade psíquica que deixa de fertilizar a “ontologia do presente” com perspectiva à transcendência da promessa (a vida pode mudar, sempre – mesmo quando não se acredita tanto). Nesse sentido, a esperança tem sentido escatológico (hypomoné), pois ela carrega consigo a habilidade de finalizar cada parágrafo escrito, de uma carta autobiográfica, sempre com “reticência”, e nunca com “ponto final”. O futuro (boas expectativas) condiciona a percepção do presente nela. Assim, o já-agora ganha conotação de um “continuum”. Do “Fix You”, portanto, se deduz a potencialidade de uma realidade de vida que sugere “mobilidade ontológica”. De cada experiência que se vive, uma “metamorfousthe” (realidade de autotransformação) é esperada.
A banda Coldplay parece querer expressar com essa letra musical a crença matricial de uma expansão contínua da psicologia do indivíduo acontecendo no mundo, mesmo quando sujeita às estruturas de intersubjetividade que foram duramente contingenciadas pelos processos sociais/culturais. O ponto nevrálgico da canção aparece no retumbante “Fix You” (consertar você). Sua fenomenologia hermenêutica desvela a existência de “mobilidades terapêuticas” ocorrendo na psicologia de um indivíduo que pode estar paralisado na vida por conta de adventos inesperados como os transtornos psíquicos. O “fix” sugere “movimento fertilizante” com vista à alteração do “funcionamento psíquico” de um ente-pessoa que se tornou precário, patológico. A ideia de evolução, na psicologia clínica, evoca o sentido de superação que a “mudança” produz na vida de um indivíduo. Mudar é sujeitar a estagnação da indiferença a um “movimento teloterapêutico” que pode deslocar a atenção do desencanto para o foco da esperança. Desse funcionamento do capital esperante se infere a afirmação (ontogeracional) de uma psicoterapia acontecendo.
Mas “consertar algo” sugere vicejar outra realidade também: o “paradoxo da providência” (Paul Tillich). A reparação de um defeito só é factível quando uma coisa ou realidade sofre algum tipo de dano ou disfunção. As crenças disfuncionais, de que nos fala Aaron Beck, são realidades psíquicas que diminuem ou comprometem a operacionalidade das “mobilidades terapêuticas” de um sistema de crença, o qual deveria funcionar normalmente a fim de tornar o indivíduo apto para enfrentar e superar seus próprios medos. A depressão, enquanto processo psíquico de estagnação da mobilidade do sistema de crenças, interfere diretamente na autopercepção do indivíduo, e o precariza funcionalmente. Quando depressivo, a sensação que este último tem é a de uma disfuncionalidade operacional de suas “crenças alcalinas” capitais, o que implica assumir a condição de insuperabilidade funcional autoimposta pela consciência. Afugentar-se, na maioria dos casos, pode ser o único modo de “invisibilizar” do outro a autopercepção de fracasso na vida que o ego desenvolve então. Da metáfora: “os meus ossos envelheceram” (Salmos 32, 3), oriunda da poesia hebraica, se infere a fisiologia de uma crença oxidativa, com função patogeracional, produzindo uma desorizontalização radical do presente vivido.
Um sistema de crença “estragado” deporta o indivíduo do paraíso para as regiões sombrias mais insustentáveis da vida, sem qualquer horizonte de existência pensável. A paradoxalização implica, nesse sentido, o aumento da quantidade de problemas existentes em uma forma de vida, sem que haja perspectivas de solução ou enfrentamento para se propor a qualquer um deles. Dessa forma, o desespero figura-se quando a morte (disfuncionalidade ontológica) acontece antes do fim da vida (Soren Kierkegaard). Existir com sistema de crença estragado é caminhar para o futuro com uma sensação de precarização operacional da vida; é caminhar sendo empurrado para um labirinto gigantesco, onde a única placa sinalizadora que existe é a do “sem saída”. O “fim das possibilidades” é o marco contingencial do paradoxo da providência. A perda de “um horizonte além do agora” é o ponto de afirmação ontológica das insuficiências operacionais da psicologia humana.
Mas para ser criativo, o paradoxo da providência tem que ser capaz de gerar “vida do nada” (“ex nihilo”). Nesse caso, consertar uma realidade só é possível quando se admite que ela estragou-se por completo. Na polaridade “estrago e conserto” se têm a epifania de um paradoxo criativo. Não há compreensão de cura sem a afirmação da doença, nem da esperança sem a admissão do desencanto (depressão). As antinomias revelam a linguagem do paradoxo pela via da superação (a “suprassunção”, no pensamento hegeliano). O “Fix You” revela-se, portanto, como uma promessa de “novo encontro”, de “novo sentido”, de “nova criação” (“kainê ktisis”). O fim é o começo de uma outra realidade que se irrompe. Não haveria alvorada sem o crepúsculo do dia. Dramatizar a perda é admitir-se refém de uma racionalidade capitalística, condição que torna difícil a admissão “do estrago” como parte de uma metodologia do paradoxo criativo presente no processo da vida. O “morrendo morrerás”, afirmado na narrativa da segunda criação, transmuta-se, ganhando sua redenção através da linguagem poética do Evangelho da Graça: “(...) quem crê em mim, ainda que morra, viverá”. A ressurreição é, pois, a linguagem do paradoxo criativo da providência na história da salvação. Nela, “o sim e o não” (sic et non) desvenda a “cratofania do novo”, a novidade do antigo que não é condenada ao esquecimento (anacronismo).
Que desdobramento para a psicologia da existência se pode deduzir dessa reflexão? Das muitas possibilidades hermenêuticas existentes, “consertar alguém ou alguma realidade” é, antes de tudo, a promessa de revitalizar uma biografia semi-moribunda, mas não natimorta. Quando se constata que uma vida se estragou em sua contingencialidade, não se deve pensar, de forma dramática, que tudo está perdido (paradoxalização), ou que a existência no mundo está condenada ao esfacelamento ontológico. Não!... A providência não deve ser compreendida apenas como interferência, mas como “polaridade ontológica do ser” (Paul Tillich). Ela é a “capacidade criativa” presente em toda situação vivida. Não age (somente) “sobre”, mas “em” e “a partir” das realidades vivenciadas. Por isso, ela se apresenta de modo paradoxal. Ao se ver afirmado em canção: “Fix You”, se deve apreender dessa sentença que é possível, sim, ver renascer – mesmo para uma vida que sangra (depressão) – a capacidade auto-reparadora da vida ser plenamente recuperada pelo poder (anti-tanatofóbico) da graça divina. O choque de esperança cura qualquer forma de depressão. Esse é um veredicto trans-racional da revelação bíblica. Não há como polemizar filosoficamente com esse axioma revelacional. É como se numa situação limite, de extremo desencanto, se pudesse ouvir, como um sonoro sopro da providência, algo dizendo: “Ei!... Eu renovo tudo, inclusive você... Não importa o que aconteceu até aqui: eu faço novas todas as coisas”... Sempre! (descontingenciamento ontológico).
Nota:
1. Sobre esse tema, sugiro a leitura de PIRES, A. C.. Sistema de Estruturação de Crenças Sócio-interativo: estruturação de crenças, lógicas de interação e processos de contingenciamento. Psicólogo Informação, v. 17, p. 133-191, 2013.
• Anderson Clayton Pires é doutor em sociologia (UFRGS) e doutor em teologia (IEPG-EST). Integra, como professor convidado, o corpo docente do Centro Luterano de Estudos Psicossociológicos e Poimênicos. É casado com Cristina, pai de Diogo e Renata.
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