Opinião
- 19 de março de 2014
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Carnavalização da criatividade
Quando se cresce em um lar bilíngue e multicultural como o meu, é inevitável a comparação entre países e culturas. Como missionários vindos da Alemanha nos anos 60 e apaixonados pelo Brasil, meus pais só tinham elogios a fazer ao país no qual passaram a morar, embora também reconhecessem suas limitações.
Uma das características brasileiras mais comentadas em nossa casa é a criatividade. Meus pais diziam que para sobreviver com apenas um salário mínimo (ou até menos) é preciso mesmo ser muito criativo. E o Carnaval era um dos exemplos citados da manifestação suprema da criatividade brasileira. Nestes dias, referindo-se à escola campeã desse ano que teve como tema o piloto Airton Sena e toda a sua sofisticação, meu pai dizia o quanto admirava a criatividade desse povo. Também podemos encontrar esta criatividade nas pequenas coisas do dia a dia, como no batuque do samba no ônibus, nos comerciais de televisão, nas novelas e no cinema nacional.
Mesmo assim, eu me pergunto muitas vezes: o que houve com a criatividade em outros setores, como na política, nas práticas escolares e na ética da “lei de Gérson” e do “jeitinho”? Por que o brasileiro não canaliza todo esse potencial que tem para projetos políticos e sociais, ambientais e de sustentabilidade realmente revolucionários e transformadores para a sociedade? Não quero desmerecer as iniciativas existentes nesse sentido, das quais nos orgulhamos e algumas das quais até foram exportadas para fora. O problema é novamente político: elas não são valorizadas no Brasil.
Nessas horas nos voltamos para a sociedade alemã, com sua sistematicidade e tendência à rotina, ao “certinho”, e ficamos abismados com o que essa nação já contribuiu, sendo vista como uma referência de estabilidade na política e na economia da Europa.
Por que a Alemanha, com criatividade tacanha e recursos naturais limitados, tornou-se um “gigante”, enquanto o Brasil pode ser mais adequadamente chamado de “gigante adormecido”? Por que o brasileiro não consegue reverter a sua criatividade para a dimensão do bem comum?
Bem, eu diria que a resposta que está na ponta da língua de todos os brasileiros é: a política (principalmente a corrupção e a falta de ética dos políticos). Mas o que torna essa resposta reducionista e pouco contributiva é o conceito que se tem geralmente de política. Política são “eles”. Política no Brasil raramente se refere a “nós”. São raras as entidades de classe, que nos autorizam a falar de uma sociedade civil realmente ativa, compromissada e engajada na “res”-pública.
Já o alemão, ele tem um forte senso comunitário e de civilidade. Lá, ai de quem gasta muita água limpando a calçada! Ele será logo advertido pelos vizinhos -- às vezes com palavras duras -- a não gastar de forma tão abusada esse “nosso” bem precioso”.1
Então, o que falta é senso de comunidade (o que é diferente da simples “solidariedade” que o brasileiro tem de sobra). E isso se aprende primeiramente em casa, e depois na escola. Mas a família e a escola já esqueceram ou ignoram que política vem de “polis” (“cidade” em grego) e que tem tudo a ver com a cidadania, ou seja, a capacidade de conviver em uma cidade. Políticos somos todos nós e acusá-los com um dedo em riste significa apontar para nós mesmos com o resto dos dedos.
Essa ignorância ou lapso de memória se deve muito também, a meu ver, ao nosso passado colonialista, patriarcalista e ditatorial: falar em política é algo limitado aos políticos e até, de certa forma, algo “perigoso”.
Então, a ideia de política do brasileiro é: vamos protestar, mas com a clássica falta de compromisso e civilidade, que se traduz em quebradeira e vandalismo; vamos satirizar a política, mas com a clássica alienação; vamos fazer acontecer, mas com a clássica “carnavalização” de amplos setores da sociedade. O negócio é trocar os fins pelos meios: ritualizar a devoção à criatividade somente durante o Carnaval e reprimi-la no resto do ano.
Nota:
1. Isso realmente aconteceu com minha mãe, quando ela resolveu aplicar esse costume brasileiro na Alemanha. Ela foi quase “linchada”.
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Uma das características brasileiras mais comentadas em nossa casa é a criatividade. Meus pais diziam que para sobreviver com apenas um salário mínimo (ou até menos) é preciso mesmo ser muito criativo. E o Carnaval era um dos exemplos citados da manifestação suprema da criatividade brasileira. Nestes dias, referindo-se à escola campeã desse ano que teve como tema o piloto Airton Sena e toda a sua sofisticação, meu pai dizia o quanto admirava a criatividade desse povo. Também podemos encontrar esta criatividade nas pequenas coisas do dia a dia, como no batuque do samba no ônibus, nos comerciais de televisão, nas novelas e no cinema nacional.
Mesmo assim, eu me pergunto muitas vezes: o que houve com a criatividade em outros setores, como na política, nas práticas escolares e na ética da “lei de Gérson” e do “jeitinho”? Por que o brasileiro não canaliza todo esse potencial que tem para projetos políticos e sociais, ambientais e de sustentabilidade realmente revolucionários e transformadores para a sociedade? Não quero desmerecer as iniciativas existentes nesse sentido, das quais nos orgulhamos e algumas das quais até foram exportadas para fora. O problema é novamente político: elas não são valorizadas no Brasil.
Nessas horas nos voltamos para a sociedade alemã, com sua sistematicidade e tendência à rotina, ao “certinho”, e ficamos abismados com o que essa nação já contribuiu, sendo vista como uma referência de estabilidade na política e na economia da Europa.
Por que a Alemanha, com criatividade tacanha e recursos naturais limitados, tornou-se um “gigante”, enquanto o Brasil pode ser mais adequadamente chamado de “gigante adormecido”? Por que o brasileiro não consegue reverter a sua criatividade para a dimensão do bem comum?
Bem, eu diria que a resposta que está na ponta da língua de todos os brasileiros é: a política (principalmente a corrupção e a falta de ética dos políticos). Mas o que torna essa resposta reducionista e pouco contributiva é o conceito que se tem geralmente de política. Política são “eles”. Política no Brasil raramente se refere a “nós”. São raras as entidades de classe, que nos autorizam a falar de uma sociedade civil realmente ativa, compromissada e engajada na “res”-pública.
Já o alemão, ele tem um forte senso comunitário e de civilidade. Lá, ai de quem gasta muita água limpando a calçada! Ele será logo advertido pelos vizinhos -- às vezes com palavras duras -- a não gastar de forma tão abusada esse “nosso” bem precioso”.1
Então, o que falta é senso de comunidade (o que é diferente da simples “solidariedade” que o brasileiro tem de sobra). E isso se aprende primeiramente em casa, e depois na escola. Mas a família e a escola já esqueceram ou ignoram que política vem de “polis” (“cidade” em grego) e que tem tudo a ver com a cidadania, ou seja, a capacidade de conviver em uma cidade. Políticos somos todos nós e acusá-los com um dedo em riste significa apontar para nós mesmos com o resto dos dedos.
Essa ignorância ou lapso de memória se deve muito também, a meu ver, ao nosso passado colonialista, patriarcalista e ditatorial: falar em política é algo limitado aos políticos e até, de certa forma, algo “perigoso”.
Então, a ideia de política do brasileiro é: vamos protestar, mas com a clássica falta de compromisso e civilidade, que se traduz em quebradeira e vandalismo; vamos satirizar a política, mas com a clássica alienação; vamos fazer acontecer, mas com a clássica “carnavalização” de amplos setores da sociedade. O negócio é trocar os fins pelos meios: ritualizar a devoção à criatividade somente durante o Carnaval e reprimi-la no resto do ano.
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1. Isso realmente aconteceu com minha mãe, quando ela resolveu aplicar esse costume brasileiro na Alemanha. Ela foi quase “linchada”.
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É mestre e doutora em educação (USP) e doutora em estudos da tradução (UFSC). É autora de O Senhor dos Anéis: da fantasia à ética e tradutora de Um Ano com C.S. Lewis e Deus em Questão. Costuma se identificar como missionária no mundo acadêmico. É criadora e editora do site www.cslewis.com.br
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