Opinião
- 13 de dezembro de 2021
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Canções de Lamento e Justiça, The Porter’s Gate
Por Victoria Emily Jones
Embora eu tenha crescido na igreja, por muito tempo ignorei os vibrantes temas de lamento e justiça que permeiam as Escrituras. Eu aprendi de que os bons cristãos nunca reclamam ou ficam zangados, não questionam Deus, e que "regozijar-se sempre" significa sempre fazer cara de feliz (sentir tristeza seria equivalente a duvidar), e que a justiça social é uma "agenda liberal”, uma distorção do evangelho. Conforme minha fé amadureceu e meu envolvimento com as Escrituras se aprofundou, meus olhos se abriram para a intrincada presença da justiça na narrativa bíblica, e como qualquer falta de justiça é motivo de lamentação.
O livro Justiça generosa: A graça de Deus e a justiça social de Tim Keller foi fundamental para me ajudar a ver como a justiça social é uma expressão do próprio coração de Deus e uma parte importante da missão da igreja, não tangencial ao evangelho, mas uma extensão dele. Minha concepção anterior do evangelho era muito pobre, pois eu a reduzi a nada mais do que uma transação particular entre mim e Deus a respeito do destino eterno de minha alma. Quando comecei a ver, através da leitura das Escrituras, que Deus se preocupa com este mundo, e ele se preocupa com as almas e corpos das pessoas, percebi como o evangelho é abrangente, com implicações reais para o aqui e agora. Podemos estar em um relacionamento correto com Deus, ou pensar que estamos, mas será que estamos em um relacionamento correto com os vizinhos? E, eu acrescentaria, com o resto da criação de Deus? Ou seja, vivemos com justiça, como Deus ordena, o que inclui apoiar políticas que promovam, da melhor forma possível, o desenvolvimento e o bem-estar de todos, não apenas de nós mesmos ou de outros como nós?
Keller mostra como os termos cristãos de "pecado" e "justiça" têm a ver não apenas com moralidade pessoal, mas também com sistemas, e como "justiça" é mais multifacetada do que meramente "punição". Punir infratores e restabelecer direitos é um tipo de justiça, chamada justiça retificadora (ou retributiva), ou mishpat em hebraico. Mas a justiça primária (ou distributiva) garante que os bens e oportunidades sejam distribuídos de forma mais equitativa na sociedade. É proativa. “Justiça primária, ou tzadeqah, é o comportamento que, se prevalecesse no mundo, tornaria desnecessária a justiça retificadora, porque todos estariam vivendo em um relacionamento correto com todos os outros”. Keller diz que quando essas duas palavras hebraicas aparecem juntas na Bíblia, a melhor tradução do conjunto é "justiça social". Assim, por exemplo, quando o Salmo 33:5 diz: “Ele ama a justiça [tzadeqah] e o juízo/direito [mishpat]”, talvez a melhor tradução fosse “O SENHOR ama a justiça social”.
O conceito de “passagem de viagem para o céu”, “eu e Jesus”, é uma compreensão simplória da salvação que aparece em muitas canções de adoração cristã, e que formam, ou deformam, nossa imaginação. Não estou descartando a necessidade de salvação pessoal (que é um componente importante do evangelho!), ou sugerindo que não devemos olhar para a eternidade. O que estou dizendo é que nosso relacionamento com Jesus, incluindo nossa experiência transformadora com seu amor e graça, deve ter um impacto profundo em como nos relacionamos com nossos vizinhos, e nossa concepção do céu deve ser tão grande e gloriosa quanto a Bíblia apresenta (o mundo inteiro renovado e em harmonia sob a liderança de Cristo) – e devemos começar a viver nessa visão AGORA, enquanto aguardamos a volta de Cristo. Muitas vezes me pergunto: se tivesse ouvido mais canções bíblicas voltadas para a justiça durante minha infância, será que minha profunda mágoa pela maldade no mundo, e meu senso de responsabilidade social cristã, teriam se desenvolvido mais cedo?
>> Projeto de Adoração “The Porter’s Gate”
Fundado em 2017 por Isaac e Megan Wardell, The Porter’s Gate é um projeto musical cuja missão é ser um "porteiro" para a igreja cristã – alguém que olha para fora das portas da igreja e recebe os convidados. Seu primeiro álbum, Work Songs (2017), explorou o conceito de vocação, tanto na esfera pública quanto na privada. Em seguida Neighbor Songs (2019) foi centrado no aspecto comunitário da vida cristã e do futuro com Deus, e o amor corporificado no coração do evangelho.
Em 2020, foram lançados dois álbuns complementares: Lament Songs e Justice Songs. Gravado por um grupo diversificado de músicos, os álbuns entrelaçam fragmentos dos Salmos com profecias bíblicas e apocalipses, bênçãos, histórias do Evangelho e cantos de protesto, elaborando uma robusta teologia do reino que promove um envolvimento construtivo com questões contemporâneas e um olhar em direção à reconciliação de todas as coisas em Cristo. “Nós lutamos pelas vitórias que sabemos que Tu irás conquistar” (da canção “Justicia”) é uma boa síntese.
Temas como corrupção política, brutalidade policial, racismo, prisões superlotadas, violência sexual, exploração econômica e guerra, todos são abordados, implícita ou explicitamente, como formas de opressão que precisam ser derrubadas, pois são uma afronta a Deus.
Cheias de tristeza e esperança, as músicas estão me guiando para fora da minha tendência ao cinismo e me ajudando a recuperar a beleza da visão de Deus para o mundo. Elas estão enraizadas na linguagem bíblica. Um antídoto para a teologia do escapismo muito presente no repertório musical cristão, elas mobilizam a igreja para chorar com aqueles que estão chorando (Romanos 12:15), para carregar os fardos dos outros (Gálatas 6: 2), e para participar da obra de renovação de Deus no mundo. Deus não nos redimiu para esperarmos ociosamente enquanto o pecado aumenta seu domínio sobre a sociedade. Não, ele nos chama para semear as sementes de seu reino na expectativa de uma colheita abundante. Para andar no poder do Espírito, em lugares escuros, trazendo luz.
The Porter’s Gate procura fornecer canções para adoração corporativa, e todas elas seriam (potencialmente) apropriadas para o momento de culto. Mas, para igrejas que não estão acostumadas com a prática de lamentar ou se envolver em questões de justiça, algum ensino e orientação pastoral serão necessárias. Algumas canções soarão melhor em algumas igrejas do que em outras. Algumas são desafiadoras - e isso é uma coisa boa, pois o desafio tende a nos fazer crescer.
Como seria de se esperar, Deus é invocado nas canções. Veja os títulos das canções:
• Venha, Jesus, venha
• Seja nossa luz
• Expulse a escuridão
• Acabe com toda a violência
• Não se cale
• Esteja perto!
• Ilumine as sombras
• Tenha misericórdia!
• Mantenha o inimigo afastado
• Conforto
• Seja nosso refúgio
• Quebre a opressão
• Faça-me um instrumento
• Ajude-me a restaurar
E Deus é abundantemente louvado, e suas promessas são reivindicadas.
O conteúdo geral e o ethos das canções não são “novos” ou estranhos ao cristianismo. Se você estranhar a ideia de trazer os eventos atuais para a adoração, de cantar uma confissão de pecado estrutural ou de expressar tristeza ou indignação diante de Deus, saiba que os cristãos têm feito isso desde o início, e seu desconforto pode ser porque você não conhece tradições de outras igrejas além da sua. O ecumenismo é um aspecto importante da identidade de The Porter"s Gate, diz Isaac Wardell – um ecumenismo que diz: “Venho com os dons do Espírito da minha tradição, mas também venho com a pobreza da minha tradição, em busca dos carismas e dos dons de tua tradição”. E adoro isso no projeto.
Estou ansiosa para que os outros vejam a base bíblica das canções (o que será óbvio para muitos ao ouvi-las pela primeira vez, mas talvez não para aqueles que são mais seletivos na leitura da Bíblia), e porque sou líder do ministério de adoração que aborda a música de adoração com grande discernimento da teologia que defende, vou apontar apenas algumas das conexões das Escrituras com as músicas.
Reconhecer que o mundo não está certo e lamentar casos específicos dessa injustiça é o primeiro passo no caminho da justiça. É um chamado de lamento. "Por que, Deus?" e “Quanto tempo?". Expressões honestas de angústia não são irreverentes. A Bíblia está repleta dessa linguagem. O fato de esse lamento ser dirigido a Deus significa que a fé não foi abandonada; pelo contrário, o lamento leva a uma confiança renovada em Deus.
A primeira música, “Wake Up, Jesus” [Acorde, Jesus], tem como conceito a história de Jesus acalmando a tempestade depois de ser acordado por seus discípulos assustados, mas é cantada in medias res1, do ponto de vista de quem é pego por uma tempestade que ainda está forte. “Jesus, quando você vai acordar?". Talvez você sempre tenha assumido que esse tipo de franqueza é proibido na oração, mas isto está em perfeita sincronia com a maneira como os salmistas bíblicos se relacionavam com Deus; veja o Salmo 44: “Desperta, Senhor! Por que dormes? Levanta-te! Não nos rejeites para sempre. Por que escondes o teu rosto e esqueces o nosso sofrimento e a nossa aflição?” (vv. 23–24).
Quando a introdução instrumental da segunda música começa, reconhecemos a famosa melodia do coral da Paixão segundo São Mateus, de Bach, e nos preparamos para cantar “Ó fronte ensanguentada...” – mas, em vez disso, ouvimos “O Sacred Neck” [Ó Pescoço Sagrado]. A mudança é chocante. Por que estamos falando sobre o pescoço de Jesus? Então, com a próxima frase, "pressionado por golpes e joelhos", fica clara a referência a vítimas negras da violência policial, como George Floyd, que morreu depois que um policial ajoelhou-se em seu pescoço por quase oito minutos enquanto implorava por sua vida e depois morreu.
Como podemos trazer esse horror diante de Deus? O que a morte de Cristo tem a ver com isso? “O Sacred Neck, Now Wounded” [Ó Sagrado Pescoço, Agora Ferido] alterna entre as descrições do assassinato de Jesus e de homens e mulheres negros desarmados, destacando a sacralidade de cada pescoço, cabeça e corpo, bem como a infeliz continuidade da crueldade da humanidade entre si, desde Caim e Abel. O refrão alude ao primeiro assassinato.
Quando eles estavam no campo, Caim se levantou contra seu irmão Abel e o matou. Então o Senhor disse a Caim: “Onde está Abel, teu irmão?” Ele disse: “Eu não sei; sou eu o guardião do meu irmão? " E o Senhor disse: “O que você fez? A voz do sangue do seu irmão está chorando para mim desde a terra. " (Gênesis 4: 8b-10)
Sim, Caim, nós somos os guardiões de nossos irmãos. E temos feito um péssimo trabalho.
Dizer que a vida humana é sagrada é dizer que todas as pessoas têm um valor intrínseco incondicional. O epíteto “filho de Deus” é aplicado a Floyd não como um título messiânico, mas sim em reconhecimento à paternidade universal de Deus; estejamos reconciliados com Deus ou não, somos sua descendência (Efésios 4:6; Atos 17:28-29), criados à sua imagem (Gênesis 1:26-27). Além disso, ver Cristo espancado é bíblico, pois o próprio Jesus disse que os famintos, os sem-teto ou imigrantes, os enfermos e os presos trazem seu rosto, e a desonra dada a estes é como se fosse a Ele (Mateus 25:31-46).
“How Long”[Até Quando] é uma adaptação do Salmo 13. “Drive Out the Darkness” [Expuse a Escuridão] capta muito bem a oração do meu coração nesta pandemia. Os vocais de Paul Zach em “In Times of Trouble” [Em tempos de aflição] – oh, que lindo, que nuance de expressão!
“O Jerusalém” expressa o anseio pela Cidade Nova, a mesa de boas-vindas, o coro se afinando.
“Mulher Preciosa” é um lamento pelos maus tratos às mulheres. É suficientemente abrangente para falar sobre diferentes circunstâncias e pode ser usado como um lamento pelo assassinato de Breonna Taylor (médica afro-americana que foi morta pela polícia em seu apartamento em Louisville com a suposição errônea de que ela estava traficando drogas), sobre o silenciamento de sobreviventes de assédio ou agressão sexual, a marginalização de mulheres divorciadas nas igrejas, ou a falta de apoio ou oportunidade para as mulheres exercerem seus dons de liderança.
A canção final, “O Senhor Faça Resplandecer Seu Rosto Sobre Ti”, era para ser uma versão da bênção araônica de Números 6:24-26 com a adaptação de uma oração de Martin Luther King Jr., mas as permissões não chegaram a tempo, e será lançada mais tarde como um single.
Essa bênção ecoa o Salmo 121:7-8: “O SENHOR te guardará de todo mal; protegerá a tua vida. O SENHOR guardará a tua saída e a tua entrada, desde agora e para sempre” – e também nos remete ao penúltimo capítulo da Bíblia, Apocalipse 21:
Não vi templo algum na cidade, pois o Senhor Deus todo-poderoso e o Cordeiro são o seu templo. A cidade não precisa de sol nem de lua para brilharem sobre ela, pois a glória de Deus a ilumina, e o Cordeiro é a sua candeia. As nações andarão em sua luz, e os reis da terra lhe trarão a sua glória. Suas portas jamais se fecharão de dia, pois ali não haverá noite. A glória e a honra das nações lhe serão trazidas. Nela jamais entrará algo impuro, nem ninguém que pratique o que é vergonhoso ou enganoso, mas unicamente aqueles cujos nomes estão escritos no livro da vida do Cordeiro. (vv. 22-27)
“Adoramos um Deus que ama a justiça, cujos caminhos são justos” – na introdução ao álbum. "Deem louvor a Deus por quem Ele é e também clamem para ver a sua justiça aqui na terra". Com um tom geral de confiança ardente, as músicas resistem corajosamente ao mal, afirmando a supremacia de Deus. São juramentos de lealdade a Jesus Cristo, Salvador, Rocha, Libertador – somos patriotas de seu reino!
Justice Songs abre com um chamado e resposta estimulantes, "His Kingdom Now Is Come (Behold! Behold!)" [Seu reino chegou (Vejam!)], que combinam o prólogo do Evangelho de João com uma profecia de Isaías comumente lida durante o Advento:
Uma voz clama: "No deserto preparem o caminho para o Senhor; façam no deserto um caminho reto para o nosso Deus. Todos os vales serão levantados, todos os montes e colinas serão aplanados; os terrenos acidentados se tornarão planos; as escarpas, serão niveladas. A glória do Senhor será revelada, e, juntos, todos a verão. Pois é o Senhor quem fala". (Isaías 40:3-5).
O versículo 4, sincronizado com palmas, relaciona epítetos divinos, como: “Deus de justiça” (Isaías 30:18), “Pai dos órfãos” (Salmo 68:5), “Príncipe da Paz” (Isaías 9:6).
“Ele está movendo a água, e estamos marchando” – uma referência indireta ao negro espiritual “Wade in the Water” [Caminhe sobre a água], sobre a libertação dos israelitas através do mar Vermelho milagrosamente dividido, o paradigmático “dia do Senhor”.
Para os cristãos, Jesus Cristo deve ser o centro de nossa busca pela justiça. “We Believe in the Name” [Nós cremos no Nome] confessa o poder salvador em que colocamos toda a nossa confiança, e inclui uma lista de nomes divinos para apoiar nossos esforços. Nos opomos à injustiça em nome de Jesus, que veio quebrar as correntes da opressão em todas as suas formas (Lucas 4.16-21)!
“We Will Make No Peace with Oppression” [Não pactuaremos com a opressão], é uma forte e convincente declaração de intenções, extraída do Livro de Oração Comum:
Deus Todo-poderoso, quem nos criou à sua imagem: Conceda-nos a graça de lutar contra o mal sem medo e não fazer as pazes com a opressão; e, para que possamos usar reverentemente nossa liberdade, ajude-nos a empregá-la na manutenção da justiça em nossas comunidades e entre as nações, para a glória do seu santo nome; através de Jesus Cristo nosso Senhor, que vive e reina com Deus e o Espírito Santo, um só Deus, agora e sempre. Amém.
Este hino é a música mais cativante do álbum e faz uso do slogan político “No justice, no peace” [Sem justiça, sem paz], que data pelo menos desde o assassinato de Michael Griffith (1986), um imigrante de Trinidad, pelas mãos de uma multidão branca. O sentimento é “não ficaremos quietos até que a justiça seja feita”, mas também pode ser lido como um conjunto: que a justiça e a paz (como em "shalom") andam juntas, e não podemos ter uma sem a outra.
E acrescenta: "Aqueles que empunham a espada, pela espada morrerão" (Mateus 26:52).
“Illuminate the Shadows” [Ilumine as trevas] é uma frase evocativa com dois significados. "Deus, ilumine nossas trevas", traga cura para o nosso sofrimento. Mas em outros versos é usada para pedir a Deus que sonde e exponha a escuridão de nossos próprios corações e dos sistemas que construímos, ou dos quais nos beneficiamos. “Deus, revela-nos o mal que precisa ser erradicado” – em nossas vidas e em nossa nação. Ajude-nos a identificar as idolatrias que cometemos por nossa lealdade inquestionável e adoração efetiva de, por exemplo, um partido político, um documento nacional ou uma identidade ou herança cultural.
Ilumine as trevas
Até que cada ídolo seja pisoteado
Ilumine as trevas
Até que cada estátua seja derrubada
Isso poderia ser considerado tanto literalmente quanto metaforicamente. Devemos avaliar o que entesouramos – seja em pedra, em papel ou nas redes sociais, ou em nossa fala e comportamento – e, o que for incompatível com o caráter de Deus, derrubar.
“Expulsar o governante malvado de seu trono” pode ser interpretado como uma afronta a um determinado presidente... mas, novamente, é extraído da Bíblia. As Escrituras estão cheias de situações em que Deus traz julgamento contra os ímpios, especialmente aqueles em posições de poder. Faraó foi lançado ao mar, junto com seu exército, porque não ouviu quando o povo de Deus clamou: “Injustiça!”; ele não estava disposto a fazer qualquer mudança política, e isso foi sua ruína. No Magnificat, Maria, a mãe de Jesus, canta como Deus destitui governantes corruptos: “Ele realizou poderosos feitos com seu braço; dispersou os que são soberbos no mais íntimo do coração. Derrubou governantes dos seus tronos...” (Lucas 1: 51-52a). Em um salmo de lamentação, Deus é chamado a reivindicar sua justiça fazendo com que o mal de certas autoridades governantes caia sobre suas próprias cabeças:
Poderá um trono corrupto estar em aliança contigo?, um trono que faz injustiças em nome da lei? Eles planejam contra a vida dos justos e condenam os inocentes à morte. Mas o SENHOR é a minha torre segura; o meu Deus é a rocha em que encontro refúgio. Deus fará cair sobre eles os seus crimes, e os destruirá por causa dos seus pecados; o SENHOR, o nosso Deus, os destruirá! (Salmo 94: 20-23)
Menciono essas passagens porque muitas vezes elas são ofuscadas na imaginação cristã – pelo menos quando um político favorito está no cargo – por passagens como Romanos 13, que exige submissão aos governantes. O mal sancionado pelo Estado é real, e lhes damos maior poder ao recusarmos a reconhecer isso em contextos contemporâneos ao redor do globo, e ao deixarmos de ir diante de Deus em oração contra isso.
Protestar contra a injustiça não é apenas um dever cívico, mas cristão. O refrão da canção “Justicia” invoca o canto popular de pergunta e resposta nas linhas de frente das marchas e manifestações de hoje: “O que queremos? Justiça! Quando queremos? Agora!". Sua demanda direta e o senso de urgência são algo que os cristãos, que são zelosos pela glória de Deus, devem abraçar. Queremos ver a vontade de Deus feita na terra como no céu.
A próxima música, “Instrumento de Paz”, é um cenário da chamada Oração de São Francisco (provavelmente uma atribuição errônea). É algo que oro regularmente e agradeço agora ter esta melodia para cantá-la.
“A Canção de Zaqueu” está na voz de um cobrador de impostos que extorquiu dinheiro dos pobres e, após um encontro com Jesus que mudou sua vida, pagou indenizações além do valor roubado e foi então reconciliado com aqueles que ele havia prejudicado (Lucas 19:1-10).
“A salvação chegou hoje nesta casa”, disse Jesus. Nesta história do Evangelho, arrependimento e desculpas são acompanhados por ações e programas concretos de reparação – um modelo que as pessoas privilegiadas fariam bem em seguir, como diz Jennifer Harvey em seu livro Dear White Christians: For Those Still Longing for Racial Reconciliation [Caros Cristãos Brancos: Para Aqueles que Ainda Anseiam por Reconciliação Racial]:
“Nós somos chamados a descobrir todas as maneiras pelas quais estamos em dívida por termos nos beneficiado de situações raciais/imperiais injustas, e a descer da árvore. Somos chamados a retribuir àqueles com quem convivemos há muito tempo e continuamos a conviver numa vida estrutural totalmente inter-relacionada”.
A história de Zaqueu tem alguns ensinamentos: porque ele renuncia à riqueza que roubou, devolvendo às partes injustiçadas, e o final é feliz: seu pecado é perdoado, a justiça de Deus é feita, e a relação de Zaqueu com a sua comunidade é restaurada.
"All of Your Ways Are Peace" [Todos os seus caminhos são de paz] é um consolo ao lembrar que o Deus a quem servimos é um Deus de paz, verdade e justiça, e embora nesta vida esses ideais nunca sejam perfeitamente realizados, vale a pena lutar por eles a todo custo, porque onde se enraízam, proclamam quem é Deus e o telos para o qual está movendo o mundo.
Nota
1. Expressão latina que significa "no meio das coisas". Técnica narrativa literária que consiste em relatar os acontecimentos da história, não a partir do seu início, mas pelo momento crucial e pelo meio da ação, como forma de cativar a atenção do leitor.
• Victoria Emily Jones é formada em jornalismo e literatura inglesa e especialização em música; fez alguns cursos de pós-graduação em adoração e artes no Regent College, Vancouver. Agora, trabalha como freelancer editorial e desenvolve pesquisas independentes sobre o cristianismo e as artes, com um interesse especial em artes visuais que se envolvem com narrativas bíblicas, especialmente a partir do século 20 e/ou de culturas não ocidentais.
Traduzido por Oséas Heckert
Publicado originalmente em inglês no site ArtandTheology.org. Reproduzido com permissão.
Embora eu tenha crescido na igreja, por muito tempo ignorei os vibrantes temas de lamento e justiça que permeiam as Escrituras. Eu aprendi de que os bons cristãos nunca reclamam ou ficam zangados, não questionam Deus, e que "regozijar-se sempre" significa sempre fazer cara de feliz (sentir tristeza seria equivalente a duvidar), e que a justiça social é uma "agenda liberal”, uma distorção do evangelho. Conforme minha fé amadureceu e meu envolvimento com as Escrituras se aprofundou, meus olhos se abriram para a intrincada presença da justiça na narrativa bíblica, e como qualquer falta de justiça é motivo de lamentação.
O livro Justiça generosa: A graça de Deus e a justiça social de Tim Keller foi fundamental para me ajudar a ver como a justiça social é uma expressão do próprio coração de Deus e uma parte importante da missão da igreja, não tangencial ao evangelho, mas uma extensão dele. Minha concepção anterior do evangelho era muito pobre, pois eu a reduzi a nada mais do que uma transação particular entre mim e Deus a respeito do destino eterno de minha alma. Quando comecei a ver, através da leitura das Escrituras, que Deus se preocupa com este mundo, e ele se preocupa com as almas e corpos das pessoas, percebi como o evangelho é abrangente, com implicações reais para o aqui e agora. Podemos estar em um relacionamento correto com Deus, ou pensar que estamos, mas será que estamos em um relacionamento correto com os vizinhos? E, eu acrescentaria, com o resto da criação de Deus? Ou seja, vivemos com justiça, como Deus ordena, o que inclui apoiar políticas que promovam, da melhor forma possível, o desenvolvimento e o bem-estar de todos, não apenas de nós mesmos ou de outros como nós?
Keller mostra como os termos cristãos de "pecado" e "justiça" têm a ver não apenas com moralidade pessoal, mas também com sistemas, e como "justiça" é mais multifacetada do que meramente "punição". Punir infratores e restabelecer direitos é um tipo de justiça, chamada justiça retificadora (ou retributiva), ou mishpat em hebraico. Mas a justiça primária (ou distributiva) garante que os bens e oportunidades sejam distribuídos de forma mais equitativa na sociedade. É proativa. “Justiça primária, ou tzadeqah, é o comportamento que, se prevalecesse no mundo, tornaria desnecessária a justiça retificadora, porque todos estariam vivendo em um relacionamento correto com todos os outros”. Keller diz que quando essas duas palavras hebraicas aparecem juntas na Bíblia, a melhor tradução do conjunto é "justiça social". Assim, por exemplo, quando o Salmo 33:5 diz: “Ele ama a justiça [tzadeqah] e o juízo/direito [mishpat]”, talvez a melhor tradução fosse “O SENHOR ama a justiça social”.
O conceito de “passagem de viagem para o céu”, “eu e Jesus”, é uma compreensão simplória da salvação que aparece em muitas canções de adoração cristã, e que formam, ou deformam, nossa imaginação. Não estou descartando a necessidade de salvação pessoal (que é um componente importante do evangelho!), ou sugerindo que não devemos olhar para a eternidade. O que estou dizendo é que nosso relacionamento com Jesus, incluindo nossa experiência transformadora com seu amor e graça, deve ter um impacto profundo em como nos relacionamos com nossos vizinhos, e nossa concepção do céu deve ser tão grande e gloriosa quanto a Bíblia apresenta (o mundo inteiro renovado e em harmonia sob a liderança de Cristo) – e devemos começar a viver nessa visão AGORA, enquanto aguardamos a volta de Cristo. Muitas vezes me pergunto: se tivesse ouvido mais canções bíblicas voltadas para a justiça durante minha infância, será que minha profunda mágoa pela maldade no mundo, e meu senso de responsabilidade social cristã, teriam se desenvolvido mais cedo?
>> Projeto de Adoração “The Porter’s Gate”
Fundado em 2017 por Isaac e Megan Wardell, The Porter’s Gate é um projeto musical cuja missão é ser um "porteiro" para a igreja cristã – alguém que olha para fora das portas da igreja e recebe os convidados. Seu primeiro álbum, Work Songs (2017), explorou o conceito de vocação, tanto na esfera pública quanto na privada. Em seguida Neighbor Songs (2019) foi centrado no aspecto comunitário da vida cristã e do futuro com Deus, e o amor corporificado no coração do evangelho.
Em 2020, foram lançados dois álbuns complementares: Lament Songs e Justice Songs. Gravado por um grupo diversificado de músicos, os álbuns entrelaçam fragmentos dos Salmos com profecias bíblicas e apocalipses, bênçãos, histórias do Evangelho e cantos de protesto, elaborando uma robusta teologia do reino que promove um envolvimento construtivo com questões contemporâneas e um olhar em direção à reconciliação de todas as coisas em Cristo. “Nós lutamos pelas vitórias que sabemos que Tu irás conquistar” (da canção “Justicia”) é uma boa síntese.
Temas como corrupção política, brutalidade policial, racismo, prisões superlotadas, violência sexual, exploração econômica e guerra, todos são abordados, implícita ou explicitamente, como formas de opressão que precisam ser derrubadas, pois são uma afronta a Deus.
Cheias de tristeza e esperança, as músicas estão me guiando para fora da minha tendência ao cinismo e me ajudando a recuperar a beleza da visão de Deus para o mundo. Elas estão enraizadas na linguagem bíblica. Um antídoto para a teologia do escapismo muito presente no repertório musical cristão, elas mobilizam a igreja para chorar com aqueles que estão chorando (Romanos 12:15), para carregar os fardos dos outros (Gálatas 6: 2), e para participar da obra de renovação de Deus no mundo. Deus não nos redimiu para esperarmos ociosamente enquanto o pecado aumenta seu domínio sobre a sociedade. Não, ele nos chama para semear as sementes de seu reino na expectativa de uma colheita abundante. Para andar no poder do Espírito, em lugares escuros, trazendo luz.
The Porter’s Gate procura fornecer canções para adoração corporativa, e todas elas seriam (potencialmente) apropriadas para o momento de culto. Mas, para igrejas que não estão acostumadas com a prática de lamentar ou se envolver em questões de justiça, algum ensino e orientação pastoral serão necessárias. Algumas canções soarão melhor em algumas igrejas do que em outras. Algumas são desafiadoras - e isso é uma coisa boa, pois o desafio tende a nos fazer crescer.
Como seria de se esperar, Deus é invocado nas canções. Veja os títulos das canções:
• Venha, Jesus, venha
• Seja nossa luz
• Expulse a escuridão
• Acabe com toda a violência
• Não se cale
• Esteja perto!
• Ilumine as sombras
• Tenha misericórdia!
• Mantenha o inimigo afastado
• Conforto
• Seja nosso refúgio
• Quebre a opressão
• Faça-me um instrumento
• Ajude-me a restaurar
E Deus é abundantemente louvado, e suas promessas são reivindicadas.
O conteúdo geral e o ethos das canções não são “novos” ou estranhos ao cristianismo. Se você estranhar a ideia de trazer os eventos atuais para a adoração, de cantar uma confissão de pecado estrutural ou de expressar tristeza ou indignação diante de Deus, saiba que os cristãos têm feito isso desde o início, e seu desconforto pode ser porque você não conhece tradições de outras igrejas além da sua. O ecumenismo é um aspecto importante da identidade de The Porter"s Gate, diz Isaac Wardell – um ecumenismo que diz: “Venho com os dons do Espírito da minha tradição, mas também venho com a pobreza da minha tradição, em busca dos carismas e dos dons de tua tradição”. E adoro isso no projeto.
Estou ansiosa para que os outros vejam a base bíblica das canções (o que será óbvio para muitos ao ouvi-las pela primeira vez, mas talvez não para aqueles que são mais seletivos na leitura da Bíblia), e porque sou líder do ministério de adoração que aborda a música de adoração com grande discernimento da teologia que defende, vou apontar apenas algumas das conexões das Escrituras com as músicas.
Reconhecer que o mundo não está certo e lamentar casos específicos dessa injustiça é o primeiro passo no caminho da justiça. É um chamado de lamento. "Por que, Deus?" e “Quanto tempo?". Expressões honestas de angústia não são irreverentes. A Bíblia está repleta dessa linguagem. O fato de esse lamento ser dirigido a Deus significa que a fé não foi abandonada; pelo contrário, o lamento leva a uma confiança renovada em Deus.
A primeira música, “Wake Up, Jesus” [Acorde, Jesus], tem como conceito a história de Jesus acalmando a tempestade depois de ser acordado por seus discípulos assustados, mas é cantada in medias res1, do ponto de vista de quem é pego por uma tempestade que ainda está forte. “Jesus, quando você vai acordar?". Talvez você sempre tenha assumido que esse tipo de franqueza é proibido na oração, mas isto está em perfeita sincronia com a maneira como os salmistas bíblicos se relacionavam com Deus; veja o Salmo 44: “Desperta, Senhor! Por que dormes? Levanta-te! Não nos rejeites para sempre. Por que escondes o teu rosto e esqueces o nosso sofrimento e a nossa aflição?” (vv. 23–24).
Quando a introdução instrumental da segunda música começa, reconhecemos a famosa melodia do coral da Paixão segundo São Mateus, de Bach, e nos preparamos para cantar “Ó fronte ensanguentada...” – mas, em vez disso, ouvimos “O Sacred Neck” [Ó Pescoço Sagrado]. A mudança é chocante. Por que estamos falando sobre o pescoço de Jesus? Então, com a próxima frase, "pressionado por golpes e joelhos", fica clara a referência a vítimas negras da violência policial, como George Floyd, que morreu depois que um policial ajoelhou-se em seu pescoço por quase oito minutos enquanto implorava por sua vida e depois morreu.
Como podemos trazer esse horror diante de Deus? O que a morte de Cristo tem a ver com isso? “O Sacred Neck, Now Wounded” [Ó Sagrado Pescoço, Agora Ferido] alterna entre as descrições do assassinato de Jesus e de homens e mulheres negros desarmados, destacando a sacralidade de cada pescoço, cabeça e corpo, bem como a infeliz continuidade da crueldade da humanidade entre si, desde Caim e Abel. O refrão alude ao primeiro assassinato.
Quando eles estavam no campo, Caim se levantou contra seu irmão Abel e o matou. Então o Senhor disse a Caim: “Onde está Abel, teu irmão?” Ele disse: “Eu não sei; sou eu o guardião do meu irmão? " E o Senhor disse: “O que você fez? A voz do sangue do seu irmão está chorando para mim desde a terra. " (Gênesis 4: 8b-10)
Sim, Caim, nós somos os guardiões de nossos irmãos. E temos feito um péssimo trabalho.
Dizer que a vida humana é sagrada é dizer que todas as pessoas têm um valor intrínseco incondicional. O epíteto “filho de Deus” é aplicado a Floyd não como um título messiânico, mas sim em reconhecimento à paternidade universal de Deus; estejamos reconciliados com Deus ou não, somos sua descendência (Efésios 4:6; Atos 17:28-29), criados à sua imagem (Gênesis 1:26-27). Além disso, ver Cristo espancado é bíblico, pois o próprio Jesus disse que os famintos, os sem-teto ou imigrantes, os enfermos e os presos trazem seu rosto, e a desonra dada a estes é como se fosse a Ele (Mateus 25:31-46).
“How Long”[Até Quando] é uma adaptação do Salmo 13. “Drive Out the Darkness” [Expuse a Escuridão] capta muito bem a oração do meu coração nesta pandemia. Os vocais de Paul Zach em “In Times of Trouble” [Em tempos de aflição] – oh, que lindo, que nuance de expressão!
“O Jerusalém” expressa o anseio pela Cidade Nova, a mesa de boas-vindas, o coro se afinando.
“Mulher Preciosa” é um lamento pelos maus tratos às mulheres. É suficientemente abrangente para falar sobre diferentes circunstâncias e pode ser usado como um lamento pelo assassinato de Breonna Taylor (médica afro-americana que foi morta pela polícia em seu apartamento em Louisville com a suposição errônea de que ela estava traficando drogas), sobre o silenciamento de sobreviventes de assédio ou agressão sexual, a marginalização de mulheres divorciadas nas igrejas, ou a falta de apoio ou oportunidade para as mulheres exercerem seus dons de liderança.
A canção final, “O Senhor Faça Resplandecer Seu Rosto Sobre Ti”, era para ser uma versão da bênção araônica de Números 6:24-26 com a adaptação de uma oração de Martin Luther King Jr., mas as permissões não chegaram a tempo, e será lançada mais tarde como um single.
Essa bênção ecoa o Salmo 121:7-8: “O SENHOR te guardará de todo mal; protegerá a tua vida. O SENHOR guardará a tua saída e a tua entrada, desde agora e para sempre” – e também nos remete ao penúltimo capítulo da Bíblia, Apocalipse 21:
Não vi templo algum na cidade, pois o Senhor Deus todo-poderoso e o Cordeiro são o seu templo. A cidade não precisa de sol nem de lua para brilharem sobre ela, pois a glória de Deus a ilumina, e o Cordeiro é a sua candeia. As nações andarão em sua luz, e os reis da terra lhe trarão a sua glória. Suas portas jamais se fecharão de dia, pois ali não haverá noite. A glória e a honra das nações lhe serão trazidas. Nela jamais entrará algo impuro, nem ninguém que pratique o que é vergonhoso ou enganoso, mas unicamente aqueles cujos nomes estão escritos no livro da vida do Cordeiro. (vv. 22-27)
“Adoramos um Deus que ama a justiça, cujos caminhos são justos” – na introdução ao álbum. "Deem louvor a Deus por quem Ele é e também clamem para ver a sua justiça aqui na terra". Com um tom geral de confiança ardente, as músicas resistem corajosamente ao mal, afirmando a supremacia de Deus. São juramentos de lealdade a Jesus Cristo, Salvador, Rocha, Libertador – somos patriotas de seu reino!
Justice Songs abre com um chamado e resposta estimulantes, "His Kingdom Now Is Come (Behold! Behold!)" [Seu reino chegou (Vejam!)], que combinam o prólogo do Evangelho de João com uma profecia de Isaías comumente lida durante o Advento:
Uma voz clama: "No deserto preparem o caminho para o Senhor; façam no deserto um caminho reto para o nosso Deus. Todos os vales serão levantados, todos os montes e colinas serão aplanados; os terrenos acidentados se tornarão planos; as escarpas, serão niveladas. A glória do Senhor será revelada, e, juntos, todos a verão. Pois é o Senhor quem fala". (Isaías 40:3-5).
O versículo 4, sincronizado com palmas, relaciona epítetos divinos, como: “Deus de justiça” (Isaías 30:18), “Pai dos órfãos” (Salmo 68:5), “Príncipe da Paz” (Isaías 9:6).
“Ele está movendo a água, e estamos marchando” – uma referência indireta ao negro espiritual “Wade in the Water” [Caminhe sobre a água], sobre a libertação dos israelitas através do mar Vermelho milagrosamente dividido, o paradigmático “dia do Senhor”.
Para os cristãos, Jesus Cristo deve ser o centro de nossa busca pela justiça. “We Believe in the Name” [Nós cremos no Nome] confessa o poder salvador em que colocamos toda a nossa confiança, e inclui uma lista de nomes divinos para apoiar nossos esforços. Nos opomos à injustiça em nome de Jesus, que veio quebrar as correntes da opressão em todas as suas formas (Lucas 4.16-21)!
“We Will Make No Peace with Oppression” [Não pactuaremos com a opressão], é uma forte e convincente declaração de intenções, extraída do Livro de Oração Comum:
Deus Todo-poderoso, quem nos criou à sua imagem: Conceda-nos a graça de lutar contra o mal sem medo e não fazer as pazes com a opressão; e, para que possamos usar reverentemente nossa liberdade, ajude-nos a empregá-la na manutenção da justiça em nossas comunidades e entre as nações, para a glória do seu santo nome; através de Jesus Cristo nosso Senhor, que vive e reina com Deus e o Espírito Santo, um só Deus, agora e sempre. Amém.
Este hino é a música mais cativante do álbum e faz uso do slogan político “No justice, no peace” [Sem justiça, sem paz], que data pelo menos desde o assassinato de Michael Griffith (1986), um imigrante de Trinidad, pelas mãos de uma multidão branca. O sentimento é “não ficaremos quietos até que a justiça seja feita”, mas também pode ser lido como um conjunto: que a justiça e a paz (como em "shalom") andam juntas, e não podemos ter uma sem a outra.
E acrescenta: "Aqueles que empunham a espada, pela espada morrerão" (Mateus 26:52).
“Illuminate the Shadows” [Ilumine as trevas] é uma frase evocativa com dois significados. "Deus, ilumine nossas trevas", traga cura para o nosso sofrimento. Mas em outros versos é usada para pedir a Deus que sonde e exponha a escuridão de nossos próprios corações e dos sistemas que construímos, ou dos quais nos beneficiamos. “Deus, revela-nos o mal que precisa ser erradicado” – em nossas vidas e em nossa nação. Ajude-nos a identificar as idolatrias que cometemos por nossa lealdade inquestionável e adoração efetiva de, por exemplo, um partido político, um documento nacional ou uma identidade ou herança cultural.
Ilumine as trevas
Até que cada ídolo seja pisoteado
Ilumine as trevas
Até que cada estátua seja derrubada
Isso poderia ser considerado tanto literalmente quanto metaforicamente. Devemos avaliar o que entesouramos – seja em pedra, em papel ou nas redes sociais, ou em nossa fala e comportamento – e, o que for incompatível com o caráter de Deus, derrubar.
“Expulsar o governante malvado de seu trono” pode ser interpretado como uma afronta a um determinado presidente... mas, novamente, é extraído da Bíblia. As Escrituras estão cheias de situações em que Deus traz julgamento contra os ímpios, especialmente aqueles em posições de poder. Faraó foi lançado ao mar, junto com seu exército, porque não ouviu quando o povo de Deus clamou: “Injustiça!”; ele não estava disposto a fazer qualquer mudança política, e isso foi sua ruína. No Magnificat, Maria, a mãe de Jesus, canta como Deus destitui governantes corruptos: “Ele realizou poderosos feitos com seu braço; dispersou os que são soberbos no mais íntimo do coração. Derrubou governantes dos seus tronos...” (Lucas 1: 51-52a). Em um salmo de lamentação, Deus é chamado a reivindicar sua justiça fazendo com que o mal de certas autoridades governantes caia sobre suas próprias cabeças:
Poderá um trono corrupto estar em aliança contigo?, um trono que faz injustiças em nome da lei? Eles planejam contra a vida dos justos e condenam os inocentes à morte. Mas o SENHOR é a minha torre segura; o meu Deus é a rocha em que encontro refúgio. Deus fará cair sobre eles os seus crimes, e os destruirá por causa dos seus pecados; o SENHOR, o nosso Deus, os destruirá! (Salmo 94: 20-23)
Menciono essas passagens porque muitas vezes elas são ofuscadas na imaginação cristã – pelo menos quando um político favorito está no cargo – por passagens como Romanos 13, que exige submissão aos governantes. O mal sancionado pelo Estado é real, e lhes damos maior poder ao recusarmos a reconhecer isso em contextos contemporâneos ao redor do globo, e ao deixarmos de ir diante de Deus em oração contra isso.
Protestar contra a injustiça não é apenas um dever cívico, mas cristão. O refrão da canção “Justicia” invoca o canto popular de pergunta e resposta nas linhas de frente das marchas e manifestações de hoje: “O que queremos? Justiça! Quando queremos? Agora!". Sua demanda direta e o senso de urgência são algo que os cristãos, que são zelosos pela glória de Deus, devem abraçar. Queremos ver a vontade de Deus feita na terra como no céu.
A próxima música, “Instrumento de Paz”, é um cenário da chamada Oração de São Francisco (provavelmente uma atribuição errônea). É algo que oro regularmente e agradeço agora ter esta melodia para cantá-la.
“A Canção de Zaqueu” está na voz de um cobrador de impostos que extorquiu dinheiro dos pobres e, após um encontro com Jesus que mudou sua vida, pagou indenizações além do valor roubado e foi então reconciliado com aqueles que ele havia prejudicado (Lucas 19:1-10).
“A salvação chegou hoje nesta casa”, disse Jesus. Nesta história do Evangelho, arrependimento e desculpas são acompanhados por ações e programas concretos de reparação – um modelo que as pessoas privilegiadas fariam bem em seguir, como diz Jennifer Harvey em seu livro Dear White Christians: For Those Still Longing for Racial Reconciliation [Caros Cristãos Brancos: Para Aqueles que Ainda Anseiam por Reconciliação Racial]:
“Nós somos chamados a descobrir todas as maneiras pelas quais estamos em dívida por termos nos beneficiado de situações raciais/imperiais injustas, e a descer da árvore. Somos chamados a retribuir àqueles com quem convivemos há muito tempo e continuamos a conviver numa vida estrutural totalmente inter-relacionada”.
A história de Zaqueu tem alguns ensinamentos: porque ele renuncia à riqueza que roubou, devolvendo às partes injustiçadas, e o final é feliz: seu pecado é perdoado, a justiça de Deus é feita, e a relação de Zaqueu com a sua comunidade é restaurada.
"All of Your Ways Are Peace" [Todos os seus caminhos são de paz] é um consolo ao lembrar que o Deus a quem servimos é um Deus de paz, verdade e justiça, e embora nesta vida esses ideais nunca sejam perfeitamente realizados, vale a pena lutar por eles a todo custo, porque onde se enraízam, proclamam quem é Deus e o telos para o qual está movendo o mundo.
Nota
1. Expressão latina que significa "no meio das coisas". Técnica narrativa literária que consiste em relatar os acontecimentos da história, não a partir do seu início, mas pelo momento crucial e pelo meio da ação, como forma de cativar a atenção do leitor.
• Victoria Emily Jones é formada em jornalismo e literatura inglesa e especialização em música; fez alguns cursos de pós-graduação em adoração e artes no Regent College, Vancouver. Agora, trabalha como freelancer editorial e desenvolve pesquisas independentes sobre o cristianismo e as artes, com um interesse especial em artes visuais que se envolvem com narrativas bíblicas, especialmente a partir do século 20 e/ou de culturas não ocidentais.
Traduzido por Oséas Heckert
Publicado originalmente em inglês no site ArtandTheology.org. Reproduzido com permissão.
- 13 de dezembro de 2021
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