Opinião
- 29 de novembro de 2017
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C. S. Lewis – 119 anos
A cada três páginas ele é citado por alguns dos autores mais conhecidos atualmente no meio cristão: John Piper, Timothy Keller e Philip Yancey. Reconhecidamente o maior apologista do século XX, ao lado de G.K. Chesterton, Clive Staples Lewis, popularmente conhecido apenas como C.S. Lewis (1898-1963), completaria 119 anos hoje, 29 de novembro.
A habilidade em ir direto ao ponto nas grandes questões teológicas, atemporais e perenes, fez o legado do autor inglês superar barreiras culturais e a falta do hábito de leitura de boa parte dos brasileiros e reuniu uma legião de fãs no Brasil.
Para celebrar o legado de Lewis, Ultimato entrevistou Gabriele Greggersen, mestre e doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Há mais de 25 anos ela estuda as obras de C.S. Lewis, à quem dedicou sua primeira tese, publicada recentemente como “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa e a Bíblia”. Gabriele fala sobre os desafios para introduzir o autor ao público brasileiro, a atualidade dos escritos de Lewis, entre outras coisas. Confira:
>>> 15 frases para lembrar C. S. Lewis <<<
Ultimato - Podemos afirmar que C. S. Lewis é o escritor cristão mais citado de toda a história?
Gabriele Greggersen – É difícil dizer com toda a segurança. Ouvi de uma pesquisa que fizeram e constataram que ele é o autor mais citado dominicalmente pelos pastores e pregadores em geral. E sei de, pelo menos, três autores muito reconhecidos na atualidade que o citam a cada três páginas mais ou menos: John Piper, Timothy Keller e Philip Yancey. Mas, certamente, alguma citação dele é feita nos grandes livros de teologia da atualidade. Também sei que os livros dele continuam vendendo, mesmo depois de quase 120 anos de seu nascimento.
Também posso dizer, com certeza, que ele é o maior apologista do século XX, ao lado de G.K. Chesterton. Agora, se ele é o escritor cristão mais citado da história acho que só Quem o criou pode dizer com certeza (risos).
Ultimato - Podemos considerá-lo um dos autores mais influentes da atualidade?
GG – Eu não afirmaria isso. Se fosse assim, a realidade seria diferente, em especial, nas igrejas do mundo todo e, particularmente, no Brasil. Há também uma forte oposição a ele, é preciso dizer. A turma do “deixa disso” o critica por conta de suas feiticeiras, faunos e centauros, achando que ele realmente acreditava na existência temporal dessas criaturas. Há quem diga que ele era satanista e que deveria mais é voltar para o quinto dos infernos. Então, não. Não acredito que a influência dele seja das maiores no mundo. E, no Brasil, é ínfima. Um editor, ao negar uma das minhas obras sobre ele e propostas de tradução de Lewis, até me perguntou com ironia “quem é que vai ler Lewis no Brasil”? Mas uma legião de fãs e eu estamos em vias de mudar isso, se Deus continuar nos dando graça. Mas, certamente, ele tem grande influência e relevância nos países de fala inglesa e na Europa em geral, mas não diria que é das maiores, infelizmente.
Ultimato - Qual a relevância dos escritos de Lewis, hoje?
GG – A relevância sem dúvida é a atualidade sempiterna dos seus escritos. Ele tinha uma habilidade tremenda em ir direto ao ponto central nas grandes questões teológicas, que são atemporais e perenes. Lembrando que a atualidade de um autor não se mede pelo seu assentimento e concordância com o pensamento de sua época. Nesse sentido, eu concordo com o que um entrevistador comentou recentemente, que ele “não cola” e está superado para o leitor contemporâneo. Mas atualidade não é isso. A atualidade de um autor/pensador se mede pelo recado que ele dá para a sua geração e as seguintes, as lições que ele proporciona, ou seja, não pelo “sim” que ele diz à sociedade, mas pelo “não” que ele representa para ela.
Se assim não fosse, Santo Agostinho, S. Tomás, Shakespeare e tantos outros estariam igualmente superados. Lewis é sim, um grande clássico e como tal, sua relevância e atualidade nunca se esgota, não importa em que época e lugar.
A atualidade dos escritos de Lewis ainda é mais destacada pelo fato de vivermos em uma era, a pós-modernidade, que, em relação à dele, a modernidade, não inovou em nada, mas apenas aprofundou seus problemas, quais sejam: o materialismo, o individualismo, o subjetivismo, o relativismo, o consumismo e tantos outros “ismos”. Portanto, sua mensagem é ainda mais incisiva hoje do que era na sua época.
Ultimato - C. S. Lewis trabalha pouco textos devocionais ou narrativas bíblicas na sua obra. Uma exceção é Lendo os Salmos. Por quê?
GG – Muito boa a pergunta. Mas está enganado quem acha que a proposta do livro é fazer teologia ou filosofia em cima da Bíblia, literalmente, ou que a Bíblia seja o tema central. A proposta é uma reflexão sobre boa poesia, que, por acaso, está inserida na Bíblia.
Cito para isso o próprio Lewis: “Para que se possa compreendê-los [os Salmos], é preciso que sejam lidos como poemas, assim como o francês deve ser lido como francês ou o inglês, como inglês. Caso contrário, perderemos o que está neles e pensaremos ver o que não existe.”
Ele também declara explicitamente que quer ajudar aqueles que têm dificuldades em compreender os Salmos, compartilhando as suas próprias dúvidas.
Indiretamente, sim, ele está fazendo teologia, na medida em que “teologia é poesia” – veja o capítulo com esse título em O Peso da Glória, lançado recentemente pela Thomas Nelson. Ele não deixa de falar da Bíblia, mas não propriamente para fazer um estudo bíblico.
Por outro lado, nas demais obras teológicas, ele cita poucos textos da Bíblia diretamente, mas todo bom entendedor da mesma consegue identificar as passagens facilmente. Vou dar um exemplo: quando ele fala, em “Cristianismo puro e simples”, que tem uma boa e uma má notícia: a boa, que todos conhecem a lei moral; a má que ninguém consegue cumpri-la, quem não lembra o trecho de Romanos 7 (v. 18), onde Paulo fala do seu estado desgraçado: “Porque tenho o desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realizá-lo.”?
Poderia citar muitos outros exemplos, mas esse já mostra a relação que há entre as obras de Lewis e a Bíblia. Mesmo que não haja referências diretas, é possível fazer paralelos o tempo todo, e mesmo que se façam referências diretas, elas nunca são leituras “literais”, mas antes, igualmente, “literárias”. Isso mostra a convicção profunda que Lewis tinha de que a Bíblia é, sim, inspirada por Deus e a Palavra Sagrada, mas é também literatura e ele preferiu trata-la como tal nos seus escritos.
Ultimato - Qual é o maior desafio no trabalho de traduzir e introduzir Lewis para o público brasileiro?
GG – Vou falar da introdução, primeiro. E prefiro mesmo falar em desafios do que dificuldade, pois eles estão aí para serem superados. Diria que o maior desafio na introdução de Lewis ao leitor brasileiro é o preconceito. Vi poucos povos até hoje tão preconceituosos quanto o brasileiro. É preconceito de gênero, raça e contra tudo que não cabe na caixinha. Um dos tipos de preconceito é o fanatismo religioso, no qual tudo que não se pareça com o cristianismo (na concepção duvidosa dessas pessoas) é declarado vindo diretamente do diabo. Como já mencionei, deparei-me perguntas do tipo: “o que uma mulher tem a ver com teologia e defendendo um homem que aparentemente nada entendia de mulheres?”; “Qual conteúdo cristão pode ter feiticeiras, faunos e o centauro?” Nem o Papai Noel, que aparece em “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa” escapa do crivo acético dessas pessoas.
Outro desafio, muito ligado ao fanatismo, é a falta de cultura geral e do hábito de leitura do leitor médio brasileiro. A barreira cultural consiste na distância entre o pensamento e cosmovisão britânicos e o nosso, brasileiro. São modos de pensar diferentes, que exigem do leitor certa flexibilidade e adaptação. Ligado a isso está o humor sutil de Lewis e seu uso de metáforas, que requer do leitor uma capacidade de abstração e interpretação mais elaboradas.
O estilo inconfundível de Lewis – ele é muito eclético e cheio de neologismos e idiossincrasias – e o excesso de citações de autores, muitas vezes de um passado longínquo e em línguas clássicas que o tradutor não tem a obrigação de conhecer, é outro desafio no processo de tradução.
Tudo isso torna a tradução difícil e retroalimenta a dificuldade da recepção do autor, pela qualidade das traduções existentes.
Mas não vou falar só de desafios. Quero falar também das facilidades. Os mais de vinte e cinco anos de estudo do autor me ajudaram muito na nova tradução que fiz das obras de Lewis, a convite da Thomas Nelson, cujos livros ficaram de muito bom gosto, qualidade e acessibilidade ao público.
Além disso, me ajudou o conhecimento não apenas da obra completa dele, mas também de autores que o influenciaram, como J.R.R. Tolkien, G.K. Chesterton, George MacDonald e Dorothy L. Sayers. À Lewis dediquei minha primeira tese, que foi publicada na edição atual de “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa e a Bíblia”.
Claro que o fato de as obras de Lewis terem sido fundamentais na manutenção e aprofundamento da minha fé e missão pessoal também facilitaram muito a tradução de suas obras.
Ultimato - Como se deu a sua aproximação de C. S. Lewis e por que escolheu o conteúdo dele como foco de seus estudos?
GG – Bom, a história é longa e conhecida da maioria daqueles que já me conhecem de uma forma ou de outra, mas vou tentar resumir. Tive o primeiro contato com Lewis na infância, com o desenho animado de “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa” (Martins Fontes). Eu sempre me emocionava ao assistir, mas não associava à Bíblia ou ao cristianismo, a não ser ao Natal (embora nessa versão a figura do Papai Noel tivesse sido censurada), mesmo já sendo cristã e tendo vindo de lar cristão. Depois, os meus irmãos mais velhos leram as Crônicas no grupo de jovens e eu surrupiei os livros. Anos mais tarde fui reencontrar Lewis no banco do curso de graduação em Pedagogia da USP, com um professor muito eminente de filosofia, Luiz Jean Lauand. Na época o livro citado foi “Cartas de um diabo a seu aprendiz” (Thomas Nelson). Isso rendeu horas a fio de muita conversa e uma amizade que dura até os dias de hoje. Na minha infância, Lewis representava um alento, com seu mundo imaginário, ao mundo já cruel que eu via a meu redor. Na graduação, ele foi minha tábua de salvação contra um mundo igrejeiro que me aconselhava a ter cuidado com a chamada “Teologia da Libertação”, de um tal de Paulo Freire, e que eu não “estudasse demais para não perder minha fé”, por um lado; e um mundo hostil ao cristianismo na faculdade, por outro.
Quando terminei a graduação, procurei o professor Lauand para ser meu orientador de mestrado e ele me disse que só o faria se eu estudasse quem nos havia unido. No mestrado, desisti da empreita de fazer a tradução comentada, equivalente à que Josef Pieper fez no ramo católico. A desistência veio ao me dar conta de quantos livros Lewis tinha escrito e o nível filosófico teológico das obras. Mas Lauand não desistiu de mim e logo foi me desafiando ao doutorado, retomando Lewis, agora em outro nível, assim que saímos da banca de defesa do mestrado. Três anos e meio depois eu defenderia a tese de dissertação “Antropologia filosófica de C.S. Lewis” (Editora Mackenzie), que virou livro e está disponível em forma reduzida pela Editora Prismas, de Curitiba, com o nome de “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa e a Bíblia”.
A tese já tem quase vinte anos. Meu interesse por Lewis não diminui desde então e continuo escrevendo e palestrando sobre ele. Tenho um blog no portal da editora Ultimato, que também tem se empenhado na divulgação e tradução de obras de C.S. Lewis.
Isso porque ele fala diretamente às dúvidas e conflitos que tenho em relação à fé. Lewis não escreveu para cristãos que aceitam tudo com facilidade e não questionam nada. Pelo contrário, ele é para os espíritos inquietos, que não se contentam com pouco, ou com o feijão e arroz; para os que querem uma feijoada encorpada para mastigar e se deliciar.
Ultimato - Qual a lição mais impactante você aprendeu com Lewis?
Essa pergunta é bem difícil, pois perdi a conta de quantas coisas eu aprendi com Lewis. Mas acho que tenho uma principal, que está ligada à pessoa de C.S. Lewis e seu jeito de ser e agir, e que se reflete nos seus escritos. É a simplicidade de encarar as próprias dúvidas com honestidade e sinceridade e buscar a verdade sem medo do que possa achar pela frente. É a forma direta e sincera de enfrentar as questões mais cabeludas da teologia de sua época e de todos os tempos com a singeleza de uma criança, mas a profundidade e maturidade de um adulto, que me fascina tanto. E isso, regado a muito humor. Procuro imitá-lo nisso, nos meus próprios escritos e palestras, mas pergunta se eu consigo (risos).
De C. S. Lewis, Ultimato publicou Até que Tenhamos Rostos, Surpreendido pela Alegria, Lendo os Salmos, Leituras Diárias de Crônicas de Nárnia e Um Ano com C. S. Lewis.
Leia mais
O valor dos clássicos segundo C. S. Lewis
A relação de C. S. Lewis com a morte
A habilidade em ir direto ao ponto nas grandes questões teológicas, atemporais e perenes, fez o legado do autor inglês superar barreiras culturais e a falta do hábito de leitura de boa parte dos brasileiros e reuniu uma legião de fãs no Brasil.
Para celebrar o legado de Lewis, Ultimato entrevistou Gabriele Greggersen, mestre e doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Há mais de 25 anos ela estuda as obras de C.S. Lewis, à quem dedicou sua primeira tese, publicada recentemente como “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa e a Bíblia”. Gabriele fala sobre os desafios para introduzir o autor ao público brasileiro, a atualidade dos escritos de Lewis, entre outras coisas. Confira:
>>> 15 frases para lembrar C. S. Lewis <<<
Ultimato - Podemos afirmar que C. S. Lewis é o escritor cristão mais citado de toda a história?
Gabriele Greggersen – É difícil dizer com toda a segurança. Ouvi de uma pesquisa que fizeram e constataram que ele é o autor mais citado dominicalmente pelos pastores e pregadores em geral. E sei de, pelo menos, três autores muito reconhecidos na atualidade que o citam a cada três páginas mais ou menos: John Piper, Timothy Keller e Philip Yancey. Mas, certamente, alguma citação dele é feita nos grandes livros de teologia da atualidade. Também sei que os livros dele continuam vendendo, mesmo depois de quase 120 anos de seu nascimento.
Também posso dizer, com certeza, que ele é o maior apologista do século XX, ao lado de G.K. Chesterton. Agora, se ele é o escritor cristão mais citado da história acho que só Quem o criou pode dizer com certeza (risos).
Ultimato - Podemos considerá-lo um dos autores mais influentes da atualidade?
GG – Eu não afirmaria isso. Se fosse assim, a realidade seria diferente, em especial, nas igrejas do mundo todo e, particularmente, no Brasil. Há também uma forte oposição a ele, é preciso dizer. A turma do “deixa disso” o critica por conta de suas feiticeiras, faunos e centauros, achando que ele realmente acreditava na existência temporal dessas criaturas. Há quem diga que ele era satanista e que deveria mais é voltar para o quinto dos infernos. Então, não. Não acredito que a influência dele seja das maiores no mundo. E, no Brasil, é ínfima. Um editor, ao negar uma das minhas obras sobre ele e propostas de tradução de Lewis, até me perguntou com ironia “quem é que vai ler Lewis no Brasil”? Mas uma legião de fãs e eu estamos em vias de mudar isso, se Deus continuar nos dando graça. Mas, certamente, ele tem grande influência e relevância nos países de fala inglesa e na Europa em geral, mas não diria que é das maiores, infelizmente.
Ultimato - Qual a relevância dos escritos de Lewis, hoje?
GG – A relevância sem dúvida é a atualidade sempiterna dos seus escritos. Ele tinha uma habilidade tremenda em ir direto ao ponto central nas grandes questões teológicas, que são atemporais e perenes. Lembrando que a atualidade de um autor não se mede pelo seu assentimento e concordância com o pensamento de sua época. Nesse sentido, eu concordo com o que um entrevistador comentou recentemente, que ele “não cola” e está superado para o leitor contemporâneo. Mas atualidade não é isso. A atualidade de um autor/pensador se mede pelo recado que ele dá para a sua geração e as seguintes, as lições que ele proporciona, ou seja, não pelo “sim” que ele diz à sociedade, mas pelo “não” que ele representa para ela.
Se assim não fosse, Santo Agostinho, S. Tomás, Shakespeare e tantos outros estariam igualmente superados. Lewis é sim, um grande clássico e como tal, sua relevância e atualidade nunca se esgota, não importa em que época e lugar.
A atualidade dos escritos de Lewis ainda é mais destacada pelo fato de vivermos em uma era, a pós-modernidade, que, em relação à dele, a modernidade, não inovou em nada, mas apenas aprofundou seus problemas, quais sejam: o materialismo, o individualismo, o subjetivismo, o relativismo, o consumismo e tantos outros “ismos”. Portanto, sua mensagem é ainda mais incisiva hoje do que era na sua época.
Ultimato - C. S. Lewis trabalha pouco textos devocionais ou narrativas bíblicas na sua obra. Uma exceção é Lendo os Salmos. Por quê?
GG – Muito boa a pergunta. Mas está enganado quem acha que a proposta do livro é fazer teologia ou filosofia em cima da Bíblia, literalmente, ou que a Bíblia seja o tema central. A proposta é uma reflexão sobre boa poesia, que, por acaso, está inserida na Bíblia.
Cito para isso o próprio Lewis: “Para que se possa compreendê-los [os Salmos], é preciso que sejam lidos como poemas, assim como o francês deve ser lido como francês ou o inglês, como inglês. Caso contrário, perderemos o que está neles e pensaremos ver o que não existe.”
Ele também declara explicitamente que quer ajudar aqueles que têm dificuldades em compreender os Salmos, compartilhando as suas próprias dúvidas.
Indiretamente, sim, ele está fazendo teologia, na medida em que “teologia é poesia” – veja o capítulo com esse título em O Peso da Glória, lançado recentemente pela Thomas Nelson. Ele não deixa de falar da Bíblia, mas não propriamente para fazer um estudo bíblico.
Por outro lado, nas demais obras teológicas, ele cita poucos textos da Bíblia diretamente, mas todo bom entendedor da mesma consegue identificar as passagens facilmente. Vou dar um exemplo: quando ele fala, em “Cristianismo puro e simples”, que tem uma boa e uma má notícia: a boa, que todos conhecem a lei moral; a má que ninguém consegue cumpri-la, quem não lembra o trecho de Romanos 7 (v. 18), onde Paulo fala do seu estado desgraçado: “Porque tenho o desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realizá-lo.”?
Poderia citar muitos outros exemplos, mas esse já mostra a relação que há entre as obras de Lewis e a Bíblia. Mesmo que não haja referências diretas, é possível fazer paralelos o tempo todo, e mesmo que se façam referências diretas, elas nunca são leituras “literais”, mas antes, igualmente, “literárias”. Isso mostra a convicção profunda que Lewis tinha de que a Bíblia é, sim, inspirada por Deus e a Palavra Sagrada, mas é também literatura e ele preferiu trata-la como tal nos seus escritos.
Ultimato - Qual é o maior desafio no trabalho de traduzir e introduzir Lewis para o público brasileiro?
GG – Vou falar da introdução, primeiro. E prefiro mesmo falar em desafios do que dificuldade, pois eles estão aí para serem superados. Diria que o maior desafio na introdução de Lewis ao leitor brasileiro é o preconceito. Vi poucos povos até hoje tão preconceituosos quanto o brasileiro. É preconceito de gênero, raça e contra tudo que não cabe na caixinha. Um dos tipos de preconceito é o fanatismo religioso, no qual tudo que não se pareça com o cristianismo (na concepção duvidosa dessas pessoas) é declarado vindo diretamente do diabo. Como já mencionei, deparei-me perguntas do tipo: “o que uma mulher tem a ver com teologia e defendendo um homem que aparentemente nada entendia de mulheres?”; “Qual conteúdo cristão pode ter feiticeiras, faunos e o centauro?” Nem o Papai Noel, que aparece em “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa” escapa do crivo acético dessas pessoas.
Outro desafio, muito ligado ao fanatismo, é a falta de cultura geral e do hábito de leitura do leitor médio brasileiro. A barreira cultural consiste na distância entre o pensamento e cosmovisão britânicos e o nosso, brasileiro. São modos de pensar diferentes, que exigem do leitor certa flexibilidade e adaptação. Ligado a isso está o humor sutil de Lewis e seu uso de metáforas, que requer do leitor uma capacidade de abstração e interpretação mais elaboradas.
O estilo inconfundível de Lewis – ele é muito eclético e cheio de neologismos e idiossincrasias – e o excesso de citações de autores, muitas vezes de um passado longínquo e em línguas clássicas que o tradutor não tem a obrigação de conhecer, é outro desafio no processo de tradução.
Tudo isso torna a tradução difícil e retroalimenta a dificuldade da recepção do autor, pela qualidade das traduções existentes.
Mas não vou falar só de desafios. Quero falar também das facilidades. Os mais de vinte e cinco anos de estudo do autor me ajudaram muito na nova tradução que fiz das obras de Lewis, a convite da Thomas Nelson, cujos livros ficaram de muito bom gosto, qualidade e acessibilidade ao público.
Além disso, me ajudou o conhecimento não apenas da obra completa dele, mas também de autores que o influenciaram, como J.R.R. Tolkien, G.K. Chesterton, George MacDonald e Dorothy L. Sayers. À Lewis dediquei minha primeira tese, que foi publicada na edição atual de “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa e a Bíblia”.
Claro que o fato de as obras de Lewis terem sido fundamentais na manutenção e aprofundamento da minha fé e missão pessoal também facilitaram muito a tradução de suas obras.
Ultimato - Como se deu a sua aproximação de C. S. Lewis e por que escolheu o conteúdo dele como foco de seus estudos?
GG – Bom, a história é longa e conhecida da maioria daqueles que já me conhecem de uma forma ou de outra, mas vou tentar resumir. Tive o primeiro contato com Lewis na infância, com o desenho animado de “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa” (Martins Fontes). Eu sempre me emocionava ao assistir, mas não associava à Bíblia ou ao cristianismo, a não ser ao Natal (embora nessa versão a figura do Papai Noel tivesse sido censurada), mesmo já sendo cristã e tendo vindo de lar cristão. Depois, os meus irmãos mais velhos leram as Crônicas no grupo de jovens e eu surrupiei os livros. Anos mais tarde fui reencontrar Lewis no banco do curso de graduação em Pedagogia da USP, com um professor muito eminente de filosofia, Luiz Jean Lauand. Na época o livro citado foi “Cartas de um diabo a seu aprendiz” (Thomas Nelson). Isso rendeu horas a fio de muita conversa e uma amizade que dura até os dias de hoje. Na minha infância, Lewis representava um alento, com seu mundo imaginário, ao mundo já cruel que eu via a meu redor. Na graduação, ele foi minha tábua de salvação contra um mundo igrejeiro que me aconselhava a ter cuidado com a chamada “Teologia da Libertação”, de um tal de Paulo Freire, e que eu não “estudasse demais para não perder minha fé”, por um lado; e um mundo hostil ao cristianismo na faculdade, por outro.
Quando terminei a graduação, procurei o professor Lauand para ser meu orientador de mestrado e ele me disse que só o faria se eu estudasse quem nos havia unido. No mestrado, desisti da empreita de fazer a tradução comentada, equivalente à que Josef Pieper fez no ramo católico. A desistência veio ao me dar conta de quantos livros Lewis tinha escrito e o nível filosófico teológico das obras. Mas Lauand não desistiu de mim e logo foi me desafiando ao doutorado, retomando Lewis, agora em outro nível, assim que saímos da banca de defesa do mestrado. Três anos e meio depois eu defenderia a tese de dissertação “Antropologia filosófica de C.S. Lewis” (Editora Mackenzie), que virou livro e está disponível em forma reduzida pela Editora Prismas, de Curitiba, com o nome de “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa e a Bíblia”.
A tese já tem quase vinte anos. Meu interesse por Lewis não diminui desde então e continuo escrevendo e palestrando sobre ele. Tenho um blog no portal da editora Ultimato, que também tem se empenhado na divulgação e tradução de obras de C.S. Lewis.
Isso porque ele fala diretamente às dúvidas e conflitos que tenho em relação à fé. Lewis não escreveu para cristãos que aceitam tudo com facilidade e não questionam nada. Pelo contrário, ele é para os espíritos inquietos, que não se contentam com pouco, ou com o feijão e arroz; para os que querem uma feijoada encorpada para mastigar e se deliciar.
Ultimato - Qual a lição mais impactante você aprendeu com Lewis?
Essa pergunta é bem difícil, pois perdi a conta de quantas coisas eu aprendi com Lewis. Mas acho que tenho uma principal, que está ligada à pessoa de C.S. Lewis e seu jeito de ser e agir, e que se reflete nos seus escritos. É a simplicidade de encarar as próprias dúvidas com honestidade e sinceridade e buscar a verdade sem medo do que possa achar pela frente. É a forma direta e sincera de enfrentar as questões mais cabeludas da teologia de sua época e de todos os tempos com a singeleza de uma criança, mas a profundidade e maturidade de um adulto, que me fascina tanto. E isso, regado a muito humor. Procuro imitá-lo nisso, nos meus próprios escritos e palestras, mas pergunta se eu consigo (risos).
De C. S. Lewis, Ultimato publicou Até que Tenhamos Rostos, Surpreendido pela Alegria, Lendo os Salmos, Leituras Diárias de Crônicas de Nárnia e Um Ano com C. S. Lewis.
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