Opinião
- 19 de dezembro de 2018
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Boas razões para ler e estudar Gálatas
Por William Lane
Em seu livro A neurose da religião (Hagnos, 2009), Tom Hovestol levanta uma série de questionamentos sobre como alcançar autenticidade na vida cristã, e dentre eles indaga a respeito do lugar da liberdade na vida cristã, dizendo: “Por que as regras e regulamentos proliferam na fé que promete liberdade? A liberdade é realmente perigosa?” E observa que “o evangelho que, supostamente, deveria ser a maior força libertadora do mundo, era muitas vezes apreciado por algumas das pessoas mais tensas e reprimidas” (p. 20). Ele procura responder essas questões por meio de um estudo aprofundado do principal grupo religioso de oposição à mensagem de Jesus Cristo: os fariseus. É sabido que o zelo desses indivíduos levava frequentemente ao extremismo religioso distorcendo assim a verdade e autenticidade do evangelho.
Mas não foi somente Jesus que enfrentou esse grupo de pessoas. O apóstolo Paulo muitas vezes teve de lidar com isso. Aliás, ele mesmo foi um fariseu desde a juventude (Fp 3.4-6), e se refere a esse grupo como “a seita mais severa da nossa religião” (At 26.5). Contudo, depois de seu encontro com Cristo compreendeu a mensagem da graça do evangelho e passou a ser um árduo e implacável pregador e propagador da liberdade em Cristo.
Ler a carta de Paulo aos Gálatas implica inevitavelmente em nos depararmos com essa problemática e, consequentemente, com a convicção radical de Paulo da fé como o meio da graça salvadora de Cristo, e da liberdade como objeto da obra de Cristo em nós. Se na carta aos Romanos, mesmo sustentando a justificação pela fé, Paulo ainda procura preservar o valor da história e herança judaica, em Gálatas, o apóstolo argumenta mais categoricamente que a herança judaica e a fé em Cristo são mutuamente exclusivas (Gl 5.2-4), a ponto de chamar o ensinamento da confiança na Lei mosaica como “outro evangelho” (1.6) e uma distorção do evangelho de Cristo.
A mensagem de Paulo é clara: Jesus se entregou para nos “libertar” ou “arrancar” desse mundo de pecado (Gl 1.4). Mas dentre as coisas das quais Jesus nos liberta está também a “escravidão” da Lei. Para os Gálatas significava que depois de experimentar a graça de Cristo eles não deveriam voltar aos “princípios elementares, fracos e sem poder” (4.9, NVI) da Lei mosaica os quais os levariam de volta à “escravidão”. Porém, ainda que essa discussão fosse algo particular que aquela comunidade enfrentava naquele momento, a mensagem da carta de Gálatas é muito atual. Há boas razões para nós lermos, relermos, estudarmos e refletirmos sobre essa carta de Paulo.
Primeiro, Gálatas aponta o caminho para entendermos a essência do autêntico evangelho. Ao confrontar os Gálatas com a boa nova da liberdade em Cristo mediante a fé, Paulo argumenta que submeter-se novamente à Lei é sujeitar-se ao “jugo de escravidão” (5.1). Ao contrário do que se pensa, zelo pelo evangelho não pode ser representado como um zelo por regras e leis. Muitas vezes imaginamos que quanto mais rigorosos somos com normas e regras, mais zelosos somos com o verdadeiro evangelho de Cristo. Lamentável e ironicamente, são essas mesmas regras e leis que nos afastam do autêntico evangelho.
A segunda boa razão para estudarmos Gálatas nos dias de hoje é para entender a liberdade em Cristo. De um lado, Cristo nos liberta da Lei, e querer confiar nas obras da Lei apenas nos levará à escravidão (5.1). Por outro, é preciso entender que a liberdade em Cristo não é libertinagem, não é “dar ocasião à vontade da carne” (5.13, NVI). Essa ênfase de Paulo na liberdade não o torna um defensor de um antinomismo, isto é, da absoluta inutilidade de qualquer lei ou instrução na vida cristã. Paulo defende, sim, que a salvação em Cristo é obra da graça de Deus e que a Lei serviu de tutor para nos conduzir a Cristo, mas já não estamos mais sob o controle da Lei (3.23-25). Além dessa função, a Lei não contribui em nada para obtermos a graça de Cristo. Contudo, a liberdade em Cristo nos leva a viver no amor que é o resumo da Lei (5.14-15), e a viver “pelo Espírito” (5.16).
Para mim sempre foi um desafio pregar em Gálatas. Não pela complexidade da mensagem. Não sei se por não me tornar compreensível ou pela dificuldade do auditório de compreender a simplicidade das palavras de Paulo. Cristo se ofereceu para nos libertar, por isso, não podemos voltar a nos escravizar. Muitas vezes, minha mensagem foi entendida como ‘o pastor liberou geral’, isto é, podemos viver de qualquer jeito. Mas essas experiências também foram proveitosas para me mostrar o quanto nossas comunidades, mesmo as que creem solidamente na salvação pela graça mediante a fé, estão arraigadas às obras, e o quanto a confiança do crente na graça de Cristo tem dependido mais do que ele faz do que o que Cristo fez e continua fazendo na sua vida por meio do Espírito que produz em nós o seu fruto.
Essa mensagem é tão sublime, porém, difícil de digerirmos. Numa época de tanta religiosidade, é difícil aceitar a libertadora mensagem de Gálatas de que Cristo veio para a nossa liberdade. Queremos mensurar o grau de fidelidade dos crentes por meio da obediência a certas regras. Inventamos regras para classificar a intensidade de nossa própria consagração a Cristo e para julgar os que não são tão zelosos quanto nós. Isso nos leva ao farisaísmo, à “seita mais severa da nossa religião” (At 26.5). O triste é que confundimos isso com o verdadeiro evangelho. Paulo foi categórico: quem ensina isso, mesmo que seja um anjo descendo do céu, é maldito (Gl 1.8). Para mim foi, de fato, revelador e libertador entender a mensagem de Paulo aos Gálatas. Se pudermos entender isso, seremos menos religiosos e mais cristãos – semelhantes a Cristo.
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Pastor presbiteriano e doutor em Antigo Testamento, é professor e capelão no Seminário Presbiteriano do Sul, e tradutor de obras teológicas. É autor do livro O propósito bíblico da missão.
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