Opinião
- 07 de novembro de 2018
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Bíblia como literatura?
Por João Leonel
A pergunta do título ainda gera desconfiança, ou, pelo menos, certo desconforto em alguns círculos religiosos.
Afinal, a expressão “a Bíblia é a palavra de Deus” constitui-se na afirmação máxima, totalizante e excludente da forma como as Escrituras têm sido definidas e recebidas por comunidades religiosas no decorrer de séculos.
Tal oposição, no entanto, não é necessária. Convém constituir um diálogo que contribua para entendimentos e desarmamentos.
Quando se afirma a “Bíblia como literatura” não se está dizendo que ela é definida como uma ficção ou como um romance. Não se quer dizer que a Bíblia não é verdadeira, ou, em outras palavras, que ela se constitui de inverdades (mentiras). Não se está, oculta e intencionalmente, querendo minar a autoridade das Escrituras.
Não é disso que se trata.
Ao aplicar à Bíblia o complemento “como literatura”, pretende-se reconhecer que ela foi escrita a partir de princípios de construção textual que privilegiam técnicas de comunicação visando o convencimento de seus leitores.
Por isso, há um ponto de contato com a literatura universal – o uso de técnicas literárias para a construção de sua mensagem –, mas também um distanciamento com tal literatura, uma vez que a ficção, em sua maior parte, busca o prazer estético e o reconhecimento da arte literária pelo leitor, enquanto a Bíblia usa tais recursos para gerar resposta nos receptores.
De forma geral, a literatura produz prazer, espanto, reflexão e deleite. A Bíblia, também de forma geral, busca reação e ação.
Posto isso, devemos observar que no interior da própria Bíblia temos autores atuando por meio de recursos literários. É o caso dos capítulos 1 e 2 de Gênesis, que apresentam perspectivas diferenciadas da criação, buscando reações distintas. Igualmente o livro de Crônicas, fazendo uso de textos dos livros de Samuel e de Reis, faz acréscimos, inclui explicações, mas também exclui textos, opera silenciamentos.
O mesmo pode ser dito a respeito do Novo Testamento. Os evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), que boa parte dos estudiosos propõe serem escritos a partir do modelo da biografia greco-romana, trazem um intenso processo literário de remodelamento de textos anteriores visando à atualização.
Mateus e Lucas, a partir de Marcos, ora ampliam os textos de origem, ora os omitem. Por vezes deslocam de lugar textos marcanos, criando novas unidades narrativas. Em outros momentos, acrescentam novos blocos, como as narrativas da infância etc.
Talvez o livro bíblico que mais opera relações intertextuais com outros livros da Bíblia, produzindo novos sentidos, seja o Apocalipse. Ele faz uso constante de textos do Antigo Testamento, reinterpretando-os, fundindo-os e gerando novas imagens que atualizam suas fontes.
A hermenêutica e a crítica bíblica reconheceram tais processos literários.
Manuais de hermenêutica discutem questões ligadas à linguagem bíblica – figuras de linguagem, denotação/conotação, gêneros literários etc. A crítica bíblica do final do século 19 e durante boa parte do século 20 desenvolveu a História das Tradições, das Fontes, das Formas, da Redação, que, de modos variados, tratavam de aspectos literários.
Tanto a hermenêutica quanto a crítica bíblica, no entanto, são fundamentadas em perspectiva histórica. A hermenêutica bíblica ainda focaliza questões históricas como centrais, por exemplo, discutindo o contexto histórico de autores e receptores. Do mesmo modo, a crítica bíblica utiliza a literatura para um fim maior: a reconstrução crítica de contextos, autores e comunidades receptoras dos textos.
Embora tais elementos sejam relevantes, a abordagem mais recente da Bíblia como literatura privilegia o texto e seus mecanismos comunicativos. Aspectos contextuais são estudados, mas como dados que são internalizados com vistas à construção do sentido dos textos.
Para tanto, são utilizadas teorias literárias e linguísticas que são aplicadas à interpretação de textos bíblicos específicos.
Escreverei sobre esses elementos no próximo artigo.
• João Leonel é graduado em Teologia e Letras. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pós-doutor em História da Leitura pela Universidade Nova de Lisboa, Portugal. Professor no Seminário Presbiteriano do Sul, Campinas (SP), e na graduação e pós-graduação em Letras, Universidade Presbiteriana Mackenzie, SP. É autor dos e-books Perguntas de Quem Sofre: uma leitura do Livro de Jó, Apocalipse para Hoje: aplicação e atualidade da Revelação e, em parceria com Gladir Cabral, O Menino e o Reino: meditações diárias para o Natal, todos pela Editora Ultimato.
Leia mais
» Para Entender a Bíblia
A pergunta do título ainda gera desconfiança, ou, pelo menos, certo desconforto em alguns círculos religiosos.
Afinal, a expressão “a Bíblia é a palavra de Deus” constitui-se na afirmação máxima, totalizante e excludente da forma como as Escrituras têm sido definidas e recebidas por comunidades religiosas no decorrer de séculos.
Tal oposição, no entanto, não é necessária. Convém constituir um diálogo que contribua para entendimentos e desarmamentos.
Quando se afirma a “Bíblia como literatura” não se está dizendo que ela é definida como uma ficção ou como um romance. Não se quer dizer que a Bíblia não é verdadeira, ou, em outras palavras, que ela se constitui de inverdades (mentiras). Não se está, oculta e intencionalmente, querendo minar a autoridade das Escrituras.
Não é disso que se trata.
Ao aplicar à Bíblia o complemento “como literatura”, pretende-se reconhecer que ela foi escrita a partir de princípios de construção textual que privilegiam técnicas de comunicação visando o convencimento de seus leitores.
Por isso, há um ponto de contato com a literatura universal – o uso de técnicas literárias para a construção de sua mensagem –, mas também um distanciamento com tal literatura, uma vez que a ficção, em sua maior parte, busca o prazer estético e o reconhecimento da arte literária pelo leitor, enquanto a Bíblia usa tais recursos para gerar resposta nos receptores.
De forma geral, a literatura produz prazer, espanto, reflexão e deleite. A Bíblia, também de forma geral, busca reação e ação.
Posto isso, devemos observar que no interior da própria Bíblia temos autores atuando por meio de recursos literários. É o caso dos capítulos 1 e 2 de Gênesis, que apresentam perspectivas diferenciadas da criação, buscando reações distintas. Igualmente o livro de Crônicas, fazendo uso de textos dos livros de Samuel e de Reis, faz acréscimos, inclui explicações, mas também exclui textos, opera silenciamentos.
O mesmo pode ser dito a respeito do Novo Testamento. Os evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), que boa parte dos estudiosos propõe serem escritos a partir do modelo da biografia greco-romana, trazem um intenso processo literário de remodelamento de textos anteriores visando à atualização.
Mateus e Lucas, a partir de Marcos, ora ampliam os textos de origem, ora os omitem. Por vezes deslocam de lugar textos marcanos, criando novas unidades narrativas. Em outros momentos, acrescentam novos blocos, como as narrativas da infância etc.
Talvez o livro bíblico que mais opera relações intertextuais com outros livros da Bíblia, produzindo novos sentidos, seja o Apocalipse. Ele faz uso constante de textos do Antigo Testamento, reinterpretando-os, fundindo-os e gerando novas imagens que atualizam suas fontes.
A hermenêutica e a crítica bíblica reconheceram tais processos literários.
Manuais de hermenêutica discutem questões ligadas à linguagem bíblica – figuras de linguagem, denotação/conotação, gêneros literários etc. A crítica bíblica do final do século 19 e durante boa parte do século 20 desenvolveu a História das Tradições, das Fontes, das Formas, da Redação, que, de modos variados, tratavam de aspectos literários.
Tanto a hermenêutica quanto a crítica bíblica, no entanto, são fundamentadas em perspectiva histórica. A hermenêutica bíblica ainda focaliza questões históricas como centrais, por exemplo, discutindo o contexto histórico de autores e receptores. Do mesmo modo, a crítica bíblica utiliza a literatura para um fim maior: a reconstrução crítica de contextos, autores e comunidades receptoras dos textos.
Embora tais elementos sejam relevantes, a abordagem mais recente da Bíblia como literatura privilegia o texto e seus mecanismos comunicativos. Aspectos contextuais são estudados, mas como dados que são internalizados com vistas à construção do sentido dos textos.
Para tanto, são utilizadas teorias literárias e linguísticas que são aplicadas à interpretação de textos bíblicos específicos.
Escreverei sobre esses elementos no próximo artigo.
• João Leonel é graduado em Teologia e Letras. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pós-doutor em História da Leitura pela Universidade Nova de Lisboa, Portugal. Professor no Seminário Presbiteriano do Sul, Campinas (SP), e na graduação e pós-graduação em Letras, Universidade Presbiteriana Mackenzie, SP. É autor dos e-books Perguntas de Quem Sofre: uma leitura do Livro de Jó, Apocalipse para Hoje: aplicação e atualidade da Revelação e, em parceria com Gladir Cabral, O Menino e o Reino: meditações diárias para o Natal, todos pela Editora Ultimato.
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