Opinião
- 16 de setembro de 2022
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As mulheres do cinema e as mulheres do Brasil
Por Carlos Caldas
Vivemos em uma época sem precedentes em muitos aspectos, sendo que um, dentre tantos, é o foco de atenção deste pequeno texto: a situação da mulher na sociedade. Por um lado, nunca as mulheres tiveram tantos privilégios e direitos como têm em nossos dias. Por outro lado, ao mesmo tempo, é assustador tomar conhecimento de tantos casos de violência, física ou verbal, contra mulheres como temos visto com tristeza. A violência contra as mulheres tem sido de tal monta no Brasil que uma palavra foi criada para descrever crimes de morte contra humanos do sexo feminino: feminicídio. Este paradoxo pode ser descrito pela frase que inicia Um conto de duas cidades (“A Tale of Two Cities” no original) de Charles Dickens, frase esta que se tornou muito conhecida: “Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos”.
Mas na verdade, sempre foi assim. Infelizmente. Mulheres têm sido vítimas de diferentes tipos de assédio e violência desde a aurora da história. A literatura e o cinema abordam este tema como forma de denúncia de situações de injustiça que tantas mulheres sofreram, estão a sofrer e, infelizmente, sofrerão. Pensando nisso, nas linhas que se seguem dois filmes que denunciam esta situação serão comentados, posto que de maneira breve. Ambos são baseados em fatos. Curiosamente, um é de um contexto ocidental, e o outro, oriental. Um é recente, pois foi lançado no ano passado, e o outro é um pouco mais antigo – 2010 – mas permanece perturbadoramente atual. Comecemos pelo filme mais recente, que tem como pano de fundo um período mais antigo da história (a Idade Média) e depois, o filme mais antigo, que apresenta os nossos dias.
Sou fascinado pela Idade Média. Se eu fosse historiador, queria ser medievalista. Por isso, sempre gostei de filmes com estética medieval, que assisto sempre que posso. O último que vi foi O último duelo, de 2021, dirigido por Ridley Scott, diretor experiente tanto em ficção científica como também em épicos históricos. O filme é baseado em eventos acontecidos na França do século XIV, em plena época da Guerra dos Cem Anos. O elenco é de primeira linha, e é impossível dizer quem está melhor no seu papel, se Matt Damon, como o cavaleiro Jean de Carrouges, ou Adam Driver (o Kylo Ren, da nova trilogia de Star Wars, em ascensão em Hollywood), como o escudeiro Jacques Le Gris, se Ben Affleck, como o conde Pierre D’Alençon, cínico de tudo, ou se a bela Jodie Comer, como Marguerite, a esposa de Carrouges. O filme é dividido em três partes: A verdade de Carrouges, A verdade de Le Gris e A verdade de Marguerite. A narrativa é muito bem montada, porque é praticamente a mesma história contada três vezes, mas na última parte (A verdade de Marguerite) há diferenças que são reveladas pela primeira vez e que definem todo o drama. Carrouges e Le Gris são amigos. Carrouges é fiel ao rei de França e é apresentado como um homem de fé cristã sincera. Le Gris é um sedutor, eloquente, culto (sabe latim) e bem relacionado (é amigo do conde D’Alençon). Aproveitando-se de uma viagem de Carrouges, Le Gris invade a casa do amigo e violenta a esposa dele. Só que ele não contava com o fato que Marguerite iria denunciá-lo e ele, como seria de se esperar, nega a acusação. A vida dela se torna um inferno a partir daí, porque com exceção do marido, todos se voltam contra ela. Carrouges então apela para a lei antiga que lhe dava direito de duelar até a morte com Le Gris. Conforme a crença daquele tempo, quem falasse a verdade venceria o duelo, pois Deus sempre está do lado da verdade. A coragem e a determinação de Marguerite são notáveis: ela enfrenta humilhações pesadas por ter feito a denúncia. O filme de Scott é muito atual e necessário em nossos dias e em nossa sociedade, em que infelizmente casos assim continuam a acontecer. Nos julgamentos a que Marguerite foi submetida houve tentativas de responsabilizá-la pelo ataque e de inocentar totalmente o agressor. Qualquer semelhança com o que acontece com muita frequência no Brasil de hoje em situações assim não é mera coincidência. A recente notícia, totalmente assustadora, do médico que abusou sexualmente de uma parturiente sob efeito de anestesia não pode cair no esquecimento.
Quando tomei conhecimento de notícia tão deprimente eu me lembrei imediatamente Cairo 678, produção egípcia assinada pelo diretor Mohamed Diab. Assisti o filme por ocasião do seu lançamento no Brasil, em 2010, no Reserva Cultural em São Paulo. A narrativa conta a história de três mulheres egípcias, muito diferentes uma da outra em todos os sentidos: uma é rica, a outra é classe média e a terceira é pobre. Uma é muçulmana praticante, as outras duas são nominais. Duas são casadas, a outra está noiva. Mas as três compartilham um ponto – terrível – em comum, pois foram todas vítimas de uma forma ou outra de abuso sexual. A narrativa fílmica é conduzida de maneira muito inteligente por Diab, pois no início do filme elas não se conhecem, mas aos poucos as trajetórias das três se tocam, e elas resolvem fazer o que na sociedade egípcia é virtualmente impensável: denunciar e reagir. Mas é óbvio que este não é um problema só do Egito muçulmano. O Brasil cristão dos “cidadãos de bem” que o diga. “Lá e cá más fadas há”. Apenas um detalhe quanto ao filme: há um delegado de polícia, um homem muito calmo, muito sereno, que é inteligentíssimo, uma espécie de Sherlock Holmes egípcio, que consegue descobrir tudo que está acontecendo, e acaba por ajudar as mulheres em sua luta por justiça. Cairo 678 é um libelo contra uma situação terrível que não pode ser tolerada de modo algum, nem no Egito, nem no Brasil nem em lugar nenhum do mundo.
Cristãos devem repudiar violências de qualquer tipo, especialmente contra quem por um motivo ou por outro se encontra em posição de fragilidade social, emocional, física, financeira ou de qualquer outra natureza. O ideal do reino de Deus é que dramas como os apresentados em O último duelo e Cairo 678 jamais aconteçam. Mas se ou quando acontecerem (pois o reino ainda não se manifestou em sua plenitude) os pacificadores, que serão bem-aventurados e reconhecidos como filhos de Deus, deverão agir como instrumentos de denúncia do mal e cura de mulheres que sofreram, sofrem ou sofrerão agressões de seja lá qual tipo.
OS CRISTÃOS E O BEM COMUM – O QUE FAZ A VIDA SER BOA PARA TODOS? (JR 29.7)
O subtítulo da matéria de capa traz uma pergunta crucial: o que faz a vida ser boa para todos? A pergunta é crucial pelas respostas, mas também – e antes de tudo – por causa daqueles que fazem a pergunta. Quem faz este tipo de pergunta pensa além de si e de sua “tribo”. Quem pensa nos outros e se importa com eles compartilha da natureza de seu Pai misericordioso e justo.
Saiba mais
» COMBO - Vozes Femininas, de Rute Salviano Almeida
» Cinema e Fé Cristã, de Brian Godawa
» Deixem que Elas Mesmas Falem, de Elben Magalhães Lenz César
» A Missão da Mulher, de Paul Tournier
É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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