Opinião
- 20 de outubro de 2020
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As boas novas da criação
Por Juan Stam
Texto publicado originalmente na edição 378 da revista Ultimato.
A mensagem bíblica da criação é evangelho e nos traz boas novas. O mais comum tem sido pensar na criação como um problema para a fé. A leitura típica de Gênesis 1 costuma armar uma luta de boxe, Moisés versus Darwin, criacionismo versus evolucionismo. Moisés, às vezes, ganha; outras vezes, ganha Darwin, mas é sempre a mesma questão. Entretanto, é uma guerra equivocada. Os “criacionistas” não leram bem sua Bíblia.
A Bíblia não é nem científica nem anticientífica, mas pré-científica; o adversário não é Darwin, mas Marduk e outros “criadores” da cosmovisão mitológica da época. Em uma luta geral entre os deuses babilônios, Marduk despedaça Tiamat e dos pedaços cria a terra, o céu e a humanidade. Outros relatos mitológicos atribuíam a criação a lutas violentas ou, especialmente no Egito, a estranhos e aberrantes atos sexuais. Neste contexto, era uma verdadeira “boa notícia” escutar outra versão, segundo a qual um Deus soberano, qual artista, disse e se fez. Com o prazer do artista, Deus declara boa toda a sua criação e “muito boa” a humanidade (inclusive a sexualidade). Na história intelectual do Ocidente, foi a revelação deste Deus Criador que, depois, tornou possível o nascimento dos métodos historiográficos e das ciências naturais.
O segundo relato (Gn 2.4b–3.23) é totalmente diferente do primeiro. Em vez das cadências litúrgicas, com o marcado paralelismo dos sete dias, temos uma narrativa familiar que traz até humor. O segundo relato emprega o nome próprio de Deus, “Yahweh”, ausente no primeiro capítulo. Enquanto o primeiro relato começa com abundância de águas (1.2), o segundo começa com seca seguida de irrigação da terra (2.5-6). O tema da separação, para ordenar a criação (1.4, 7, 9), não aparece no segundo relato.
Descreve-se, sobretudo, a criação da humanidade de maneira muito diferente. No sexto dia (Gn 1.8) Deus cria primeiro todos os animais e répteis e apenas depois, com um discurso um pouco longo (1.26-30), cria junto o homem e a mulher. O segundo relato quase não tem relação com o primeiro. Do pó Deus esculpiu o corpo de Adão e lhe soprou o fôlego em suas narinas (2.7). Deus plantou, então, um jardim que dava abundantes frutos. Adão era o proprietário e agricultor, embora houvesse duas árvores proibidas (2.9, 16-17). Mas nessa terra de abundância vegetal e mineral (2.10-14) houve um problema muito sério: o senhor “Adão” estava sozinho (2.18). Então Deus, com seu divino senso de humor, criou as aves e os animais como que para preencher esse vazio e designou Adão para nomeá-los (2.19-20). Adão era agora criador de gado, taxonomista e cuidador de um grande zoológico. Mas como era de se esperar, “não se achava uma auxiliadora que lhe fosse idônea” (2.20). Deus cria, então, uma esposa para Adão e o universo estava completo.
Esses dois relatos, com todas as suas diferenças, aparecem lado a lado, sem a menor intenção de harmonização, muito menos de fundir-se em uma só narrativa. A Bíblia começa com duas versões bem diferentes da criação, e por meio de suas páginas aparecem ainda outras versões. Com isso devemos entender que os relatos não são literais, nem pretendem oferecer uma explicação científica da origem do universo. O que oferecem, isso sim, é uma teologia da criação.
Um erro muito comum no estudo do tema da criação é o de considerar apenas os primeiros capítulos de Gênesis e ignorar todo o restante da Bíblia. Os livros poéticos descrevem a criação, às vezes, como uma obra de construção, com a Sabedoria como arquiteta (Pv 8.25-30; Jó 26.7-11; 38.4-7; Sl 104.2-5), ou como uma luta contra os monstros Raabe ou Leviatã (Jó 26.12-14; 7.12; Sl 74.13-17). Além disso, esses livros bíblicos costumam vincular a criação com a salvação (Sl 33; 74.12-17; 89; 136).
Uma teologia da criação mais ampla e profunda aparece nos livros proféticos das Escrituras hebraicas. Para Jeremias, diferente das cosmogonias mitológicas, o conceito bíblico da criação não apenas garante a ordem da natureza (Jr 5.24; 14.22; 31.35-37; cf. Gn 8.22) como também confirma a fidelidade de Deus para com seu povo (Jr 33.20). Para a mentalidade hebraica o que hoje chamamos de “leis naturais” eram entendidas como o pacto entre o Criador e sua criação (Gn 9.8-17; Os 2.18). A criação significa também que Deus é dono de toda a terra (Jr 27.5; cf. Sl 24.1; Lv 25.23) e o legítimo soberano de todos os povos e da história, e julga a todas as nações (Zc 12.1-3; Am 1.3–2.16).
Para os profetas, Deus não é apenas o Criador do universo como também o Criador de Israel (Is 43.15) e da justiça e salvação (Is 45.8). Em Isaías 40–66 o profeta faz uma correlação entre a criação, o êxodo e o retorno do exílio, interpretado como um novo êxodo e como um novo ato criador de Deus (numa grande quantidade de passagens: 40.3; 41.17-20; 42.16; 43.2-3, 16-21; 44.27; 48.20-21; 49.10; 51.9-10; 52.11-12; 63.11-14!). E o tema da criação/salvação culmina, neste grande bloco textual, com a surpreendente visão dos “novos céus e nova terra”, onde criação e salvação são uma mesma realidade (Is 65.16b-25).
A criação revela a glória e a grandeza de Deus; é uma linguagem na qual Deus se comunica conosco (Sl 19.1-6; 8.1-9). O Salmo 136 adora a Deus: primeiro, por sua criação (4-9); depois, pelo êxodo (10-23); e, finalmente, pela libertação de seu povo (24) e porque “dá alimento a toda carne” (25). Nas Escrituras, a criação é sempre questão de adoração, gratidão e regozijo, nunca um problema científico. Que os relatos não têm o propósito de explicar literalmente a origem do universo fica claro pela grande diversidade de descrições em toda a Bíblia, inspiradas pelo senso de assombro e maravilhamento diante do vasto universo.
Como era de se esperar, as Escrituras cristãs ampliam o tema dos “novos céus e nova terra” (Ap 21.1-26; 2Pe 3.13; 2Co 5.17; cf. Rm 8.21-23) e de um novo Paraíso (Ap 22.1-5; 2.7) como culminação tanto da criação como da salvação. Introduzem também uma cristologia da criação bem ousada, para afirmar que um ser humano, que eles e elas haviam conhecido e que morreu havia umas poucas décadas, era o criador do universo (Cl 1.16; Jo 1.3; cf. Ef 1.10; Hb 1.3; Ap 5.13).
Nós também somos chamados a adorar o Criador e cuidar bem de sua criação (cf. Gn 2.15). Toda a terra é do Senhor e nós devemos ser seus mordomos fiéis.
Originalmente este texto foi publicado como introdução à edição brasileira do livro As Boas Novas da Criação – Teologia bíblica, meio ambiente e missão, publicado pela Editora Novos Diálogos.
• Juan Stam (1928-2020), norte-americano de nascimento e costa-riquenho por adoção. Formou-se em história pelo Wheaton College, foi professor do Seminário Bíblico Latino-Americano e da Universidade Nacional da Costa Rica e doutor em teologia pela Universidade de Basileia, Suíça. É autor de vários livros, incluindo o comentário sobre o livro de Apocalipse, o Comentário Bíblico Ibero-Americano e centenas de artigos teológicos.
Leia mais
» Juan Stam (1928-2020): a influência e o legado de um pioneiro
» Cuidado com a criação – e Deus viu que era bom
Texto publicado originalmente na edição 378 da revista Ultimato.
A mensagem bíblica da criação é evangelho e nos traz boas novas. O mais comum tem sido pensar na criação como um problema para a fé. A leitura típica de Gênesis 1 costuma armar uma luta de boxe, Moisés versus Darwin, criacionismo versus evolucionismo. Moisés, às vezes, ganha; outras vezes, ganha Darwin, mas é sempre a mesma questão. Entretanto, é uma guerra equivocada. Os “criacionistas” não leram bem sua Bíblia.
A Bíblia não é nem científica nem anticientífica, mas pré-científica; o adversário não é Darwin, mas Marduk e outros “criadores” da cosmovisão mitológica da época. Em uma luta geral entre os deuses babilônios, Marduk despedaça Tiamat e dos pedaços cria a terra, o céu e a humanidade. Outros relatos mitológicos atribuíam a criação a lutas violentas ou, especialmente no Egito, a estranhos e aberrantes atos sexuais. Neste contexto, era uma verdadeira “boa notícia” escutar outra versão, segundo a qual um Deus soberano, qual artista, disse e se fez. Com o prazer do artista, Deus declara boa toda a sua criação e “muito boa” a humanidade (inclusive a sexualidade). Na história intelectual do Ocidente, foi a revelação deste Deus Criador que, depois, tornou possível o nascimento dos métodos historiográficos e das ciências naturais.
O segundo relato (Gn 2.4b–3.23) é totalmente diferente do primeiro. Em vez das cadências litúrgicas, com o marcado paralelismo dos sete dias, temos uma narrativa familiar que traz até humor. O segundo relato emprega o nome próprio de Deus, “Yahweh”, ausente no primeiro capítulo. Enquanto o primeiro relato começa com abundância de águas (1.2), o segundo começa com seca seguida de irrigação da terra (2.5-6). O tema da separação, para ordenar a criação (1.4, 7, 9), não aparece no segundo relato.
Descreve-se, sobretudo, a criação da humanidade de maneira muito diferente. No sexto dia (Gn 1.8) Deus cria primeiro todos os animais e répteis e apenas depois, com um discurso um pouco longo (1.26-30), cria junto o homem e a mulher. O segundo relato quase não tem relação com o primeiro. Do pó Deus esculpiu o corpo de Adão e lhe soprou o fôlego em suas narinas (2.7). Deus plantou, então, um jardim que dava abundantes frutos. Adão era o proprietário e agricultor, embora houvesse duas árvores proibidas (2.9, 16-17). Mas nessa terra de abundância vegetal e mineral (2.10-14) houve um problema muito sério: o senhor “Adão” estava sozinho (2.18). Então Deus, com seu divino senso de humor, criou as aves e os animais como que para preencher esse vazio e designou Adão para nomeá-los (2.19-20). Adão era agora criador de gado, taxonomista e cuidador de um grande zoológico. Mas como era de se esperar, “não se achava uma auxiliadora que lhe fosse idônea” (2.20). Deus cria, então, uma esposa para Adão e o universo estava completo.
Esses dois relatos, com todas as suas diferenças, aparecem lado a lado, sem a menor intenção de harmonização, muito menos de fundir-se em uma só narrativa. A Bíblia começa com duas versões bem diferentes da criação, e por meio de suas páginas aparecem ainda outras versões. Com isso devemos entender que os relatos não são literais, nem pretendem oferecer uma explicação científica da origem do universo. O que oferecem, isso sim, é uma teologia da criação.
Um erro muito comum no estudo do tema da criação é o de considerar apenas os primeiros capítulos de Gênesis e ignorar todo o restante da Bíblia. Os livros poéticos descrevem a criação, às vezes, como uma obra de construção, com a Sabedoria como arquiteta (Pv 8.25-30; Jó 26.7-11; 38.4-7; Sl 104.2-5), ou como uma luta contra os monstros Raabe ou Leviatã (Jó 26.12-14; 7.12; Sl 74.13-17). Além disso, esses livros bíblicos costumam vincular a criação com a salvação (Sl 33; 74.12-17; 89; 136).
Uma teologia da criação mais ampla e profunda aparece nos livros proféticos das Escrituras hebraicas. Para Jeremias, diferente das cosmogonias mitológicas, o conceito bíblico da criação não apenas garante a ordem da natureza (Jr 5.24; 14.22; 31.35-37; cf. Gn 8.22) como também confirma a fidelidade de Deus para com seu povo (Jr 33.20). Para a mentalidade hebraica o que hoje chamamos de “leis naturais” eram entendidas como o pacto entre o Criador e sua criação (Gn 9.8-17; Os 2.18). A criação significa também que Deus é dono de toda a terra (Jr 27.5; cf. Sl 24.1; Lv 25.23) e o legítimo soberano de todos os povos e da história, e julga a todas as nações (Zc 12.1-3; Am 1.3–2.16).
Para os profetas, Deus não é apenas o Criador do universo como também o Criador de Israel (Is 43.15) e da justiça e salvação (Is 45.8). Em Isaías 40–66 o profeta faz uma correlação entre a criação, o êxodo e o retorno do exílio, interpretado como um novo êxodo e como um novo ato criador de Deus (numa grande quantidade de passagens: 40.3; 41.17-20; 42.16; 43.2-3, 16-21; 44.27; 48.20-21; 49.10; 51.9-10; 52.11-12; 63.11-14!). E o tema da criação/salvação culmina, neste grande bloco textual, com a surpreendente visão dos “novos céus e nova terra”, onde criação e salvação são uma mesma realidade (Is 65.16b-25).
A criação revela a glória e a grandeza de Deus; é uma linguagem na qual Deus se comunica conosco (Sl 19.1-6; 8.1-9). O Salmo 136 adora a Deus: primeiro, por sua criação (4-9); depois, pelo êxodo (10-23); e, finalmente, pela libertação de seu povo (24) e porque “dá alimento a toda carne” (25). Nas Escrituras, a criação é sempre questão de adoração, gratidão e regozijo, nunca um problema científico. Que os relatos não têm o propósito de explicar literalmente a origem do universo fica claro pela grande diversidade de descrições em toda a Bíblia, inspiradas pelo senso de assombro e maravilhamento diante do vasto universo.
Como era de se esperar, as Escrituras cristãs ampliam o tema dos “novos céus e nova terra” (Ap 21.1-26; 2Pe 3.13; 2Co 5.17; cf. Rm 8.21-23) e de um novo Paraíso (Ap 22.1-5; 2.7) como culminação tanto da criação como da salvação. Introduzem também uma cristologia da criação bem ousada, para afirmar que um ser humano, que eles e elas haviam conhecido e que morreu havia umas poucas décadas, era o criador do universo (Cl 1.16; Jo 1.3; cf. Ef 1.10; Hb 1.3; Ap 5.13).
Nós também somos chamados a adorar o Criador e cuidar bem de sua criação (cf. Gn 2.15). Toda a terra é do Senhor e nós devemos ser seus mordomos fiéis.
Originalmente este texto foi publicado como introdução à edição brasileira do livro As Boas Novas da Criação – Teologia bíblica, meio ambiente e missão, publicado pela Editora Novos Diálogos.
• Juan Stam (1928-2020), norte-americano de nascimento e costa-riquenho por adoção. Formou-se em história pelo Wheaton College, foi professor do Seminário Bíblico Latino-Americano e da Universidade Nacional da Costa Rica e doutor em teologia pela Universidade de Basileia, Suíça. É autor de vários livros, incluindo o comentário sobre o livro de Apocalipse, o Comentário Bíblico Ibero-Americano e centenas de artigos teológicos.
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