Opinião
- 19 de junho de 2019
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O homem e a terra: quem precisa de quem?
Por João Leonel
A crise ambiental, com facetas concretas, é mundial e está presente na pauta de organismos internacionais e de grandes economias globais.
A busca por legislações vigorosas quanto à proteção, e dinâmicas quanto a ações preventivas, tornou-se uma pauta constante.
O Brasil, por questões geográficas e territoriais, por sua diversidade ambiental e por conter a maior parte da floresta amazônica, ocupa posição de destaque no quadro geopolítico.
Em meio a uma legislação mutante, enfrentamento de revoltas ambientalistas, pressões do agronegócio e de pecuaristas, o governo assume posturas pouco eficazes, para não dizer contrárias, frente às preocupações mundiais com o planeta.
Inseridos nesse caldeirão fumegante, nós, cristãos, corremos o risco de não discernirmos os tempos e as sendas divinas, caso continuemos insensíveis à voz das Escrituras e daqueles que nos cercam.
A relação do ser humano com a natureza é manifesta nas artes em suas várias facetas. A produção artística revela os sentimentos humanos mais internos, bem como as relações da humanidade com o mundo que a cerca. Considerar a produção artística, em suas variadas vertentes, significa ser sensível à nossa própria voz, posta em outros lábios, por vezes expressando aquilo que não conseguimos articular.
Nesse contexto, refletindo sobre a relação do cristão com a criação, transcrevo abaixo um soneto do poeta árcade brasileiro Claudio Manuel da Costa (1729-1789).
Soneto LXXXI
Junto desta corrente contemplando
Na triste falta estou de um bem, que adoro;
Aqui entre estas lágrimas, que choro,
Vou a minha saudade alimentando.
Do fundo para ouvir-me vem chegando
Das claras hamadríades o coro;
E desta fonte ao murmurar sonoro,
Parece, que o meu mal estão chorando.
Mas que peito há de haver tão desabrido,
Que fuja à minha dor! que serra, ou monte
Deixará de abalar-se a meu gemido!
Igual caso não temo, que se conte;
Se até deste penhasco endurecido
O meu pranto brotar fez uma fonte.
Como todo bom árcade, Cláudio Manuel da Costa tem como tema central o amor à musa. No arcadismo, o amor é comumente ambientado em cenários pastoris, que fornecem o tom agradável e propício para a relação entre os amantes.
No soneto acima, os elementos campestres, além de trazerem o amor ao ambiente ideal, exercem papel ativo, como o de um personagem.
Estão presentes “serra”, “monte”, “penhasco”, “florestas” (representadas pelas hamadríades) e, acima de todos, uma “corrente” (de águas), identificada também como “fonte”.
Os primeiros elementos destacam o deslocamento do cenário ameno para outro, em convulsão, onde serras e montes são abalados pelo gemido do amante. Da mesma forma, o coro das ninfas, vindo da floresta, chega silencioso. E ao ouvir as lamúrias do eu lírico, canta lamentoso.
A corrente/fonte exerce papel central como lugar de águas para onde as lágrimas vertidas pelo amante choroso se dirigem. Mas também atua como nascente que surge a partir das lágrimas saudosas que se depositam no penhasco, fazendo surgir dele uma fonte.
A natureza é testemunha do sofrimento pela ausência da pessoa amada. É necessário que o eu lírico compartilhe sua dor, que a corrente esteja ao seu lado, que as florestas tragam consolo e canto de solidariedade, e que, dessa dor surja a água que irá dessedentar futuros amantes.
Há, no poema, uma parceria delicada, respeitosa, empática entre aquele que sofre de amor e a natureza, sua cúmplice.
Por meio dessa expressão artística e sensível dos sentimentos do coração humano somos remetidos ao texto fundante da fé judaico-cristã de Gênesis 2.
Deus forma (modela) o homem do “pó da terra” (Gn 2.7). O ser humano, adam, é criado a partir da Terra, adamah. Os termos hebraicos compartilham a mesma raiz, cujo sentido básico é “vermelho”.
A terra vermelha precisa ser trabalhada por Deus para que o homem seja criado. Primeiro, para estar em condições de modelá-la, Deus umedece a terra com uma “neblina” (2.6). Após a feitura do homem, Deus cria o jardim do Éden para que seja cultivado e protegido por ele (2.8, 15).
O homem também necessitou ser trabalhado. Após ser moldado, ele era um boneco de barro estático, sem vida. Foi preciso que Deus soprasse nas suas narinas o “fôlego da vida” (2.7).
Ambos, homem e terra, são dependentes de Deus. Vêm à existência pelas mãos poderosas do criador e são mantidos por seu cuidado. Ao mesmo tempo, há uma dependência mútua. A terra precisa que o homem a cultive e a proteja. Este, igualmente, necessita de seu espaço, de suas plantas e frutos para sobreviver.
Na cena da criação vemos o princípio fundamental de interdependência entre natureza e ser humano tão necessário para a consciência de participação responsável de cada um de nós na preservação e recuperação do planeta onde vivemos.
O tema não é central apenas no Gênesis. Ele continua em toda a Bíblia, constituindo uma tradição e uma linha teológica fundamental que se estende até o último livro do cânon – o Apocalipse.
Após os embates da Igreja e o Cordeiro contra o Dragão, as bestas e a Babilônia, vemos a restauração final. Ela é descrita a partir do “novo céu e nova terra” (Ap 21.1) e da “Nova Jerusalém” que desce do céu (Ap. 21.2), tendo como ponto central uma praça e, no centro dela, a “árvore da vida” (Ap 22.2).
De forma explícita esta é uma referência à árvore da vida do Gênesis (2.9), que remete à relação de unidade e dependência ente natureza e humanidade. Adam protege e defende adamah. Esta, por sua vez, dá a ele o fruto que o mantém vivo.
Como o soneto propõe, a natureza é um sujeito no plano das ações planetárias. Ela é nossa parceira, nossa testemunha, dependente de nós e, pelo que presenciamos atualmente, testemunha de acusação contra nossos pecados diante de Deus.
Nós somos filhos da adamah, e como filhos temos a responsabilidade de cuidar dela. Assim como Deus criou e zelou da natureza, nós, adam, o representamos em tal empreitada.
Exploração predatória, destruição de recursos naturais, produção indiscriminada de várias formas de lixo, assim como outras ações, constituem matricídio, pelo qual a humanidade e nós, cristãos, já pagamos um preço excessivamente alto.
A busca por legislações vigorosas quanto à proteção, e dinâmicas quanto a ações preventivas, tornou-se uma pauta constante.
O Brasil, por questões geográficas e territoriais, por sua diversidade ambiental e por conter a maior parte da floresta amazônica, ocupa posição de destaque no quadro geopolítico.
Em meio a uma legislação mutante, enfrentamento de revoltas ambientalistas, pressões do agronegócio e de pecuaristas, o governo assume posturas pouco eficazes, para não dizer contrárias, frente às preocupações mundiais com o planeta.
Inseridos nesse caldeirão fumegante, nós, cristãos, corremos o risco de não discernirmos os tempos e as sendas divinas, caso continuemos insensíveis à voz das Escrituras e daqueles que nos cercam.
A relação do ser humano com a natureza é manifesta nas artes em suas várias facetas. A produção artística revela os sentimentos humanos mais internos, bem como as relações da humanidade com o mundo que a cerca. Considerar a produção artística, em suas variadas vertentes, significa ser sensível à nossa própria voz, posta em outros lábios, por vezes expressando aquilo que não conseguimos articular.
Nesse contexto, refletindo sobre a relação do cristão com a criação, transcrevo abaixo um soneto do poeta árcade brasileiro Claudio Manuel da Costa (1729-1789).
Soneto LXXXI
Junto desta corrente contemplando
Na triste falta estou de um bem, que adoro;
Aqui entre estas lágrimas, que choro,
Vou a minha saudade alimentando.
Do fundo para ouvir-me vem chegando
Das claras hamadríades o coro;
E desta fonte ao murmurar sonoro,
Parece, que o meu mal estão chorando.
Mas que peito há de haver tão desabrido,
Que fuja à minha dor! que serra, ou monte
Deixará de abalar-se a meu gemido!
Igual caso não temo, que se conte;
Se até deste penhasco endurecido
O meu pranto brotar fez uma fonte.
Como todo bom árcade, Cláudio Manuel da Costa tem como tema central o amor à musa. No arcadismo, o amor é comumente ambientado em cenários pastoris, que fornecem o tom agradável e propício para a relação entre os amantes.
No soneto acima, os elementos campestres, além de trazerem o amor ao ambiente ideal, exercem papel ativo, como o de um personagem.
Estão presentes “serra”, “monte”, “penhasco”, “florestas” (representadas pelas hamadríades) e, acima de todos, uma “corrente” (de águas), identificada também como “fonte”.
Os primeiros elementos destacam o deslocamento do cenário ameno para outro, em convulsão, onde serras e montes são abalados pelo gemido do amante. Da mesma forma, o coro das ninfas, vindo da floresta, chega silencioso. E ao ouvir as lamúrias do eu lírico, canta lamentoso.
A corrente/fonte exerce papel central como lugar de águas para onde as lágrimas vertidas pelo amante choroso se dirigem. Mas também atua como nascente que surge a partir das lágrimas saudosas que se depositam no penhasco, fazendo surgir dele uma fonte.
A natureza é testemunha do sofrimento pela ausência da pessoa amada. É necessário que o eu lírico compartilhe sua dor, que a corrente esteja ao seu lado, que as florestas tragam consolo e canto de solidariedade, e que, dessa dor surja a água que irá dessedentar futuros amantes.
Há, no poema, uma parceria delicada, respeitosa, empática entre aquele que sofre de amor e a natureza, sua cúmplice.
Por meio dessa expressão artística e sensível dos sentimentos do coração humano somos remetidos ao texto fundante da fé judaico-cristã de Gênesis 2.
Deus forma (modela) o homem do “pó da terra” (Gn 2.7). O ser humano, adam, é criado a partir da Terra, adamah. Os termos hebraicos compartilham a mesma raiz, cujo sentido básico é “vermelho”.
A terra vermelha precisa ser trabalhada por Deus para que o homem seja criado. Primeiro, para estar em condições de modelá-la, Deus umedece a terra com uma “neblina” (2.6). Após a feitura do homem, Deus cria o jardim do Éden para que seja cultivado e protegido por ele (2.8, 15).
O homem também necessitou ser trabalhado. Após ser moldado, ele era um boneco de barro estático, sem vida. Foi preciso que Deus soprasse nas suas narinas o “fôlego da vida” (2.7).
Ambos, homem e terra, são dependentes de Deus. Vêm à existência pelas mãos poderosas do criador e são mantidos por seu cuidado. Ao mesmo tempo, há uma dependência mútua. A terra precisa que o homem a cultive e a proteja. Este, igualmente, necessita de seu espaço, de suas plantas e frutos para sobreviver.
Na cena da criação vemos o princípio fundamental de interdependência entre natureza e ser humano tão necessário para a consciência de participação responsável de cada um de nós na preservação e recuperação do planeta onde vivemos.
O tema não é central apenas no Gênesis. Ele continua em toda a Bíblia, constituindo uma tradição e uma linha teológica fundamental que se estende até o último livro do cânon – o Apocalipse.
Após os embates da Igreja e o Cordeiro contra o Dragão, as bestas e a Babilônia, vemos a restauração final. Ela é descrita a partir do “novo céu e nova terra” (Ap 21.1) e da “Nova Jerusalém” que desce do céu (Ap. 21.2), tendo como ponto central uma praça e, no centro dela, a “árvore da vida” (Ap 22.2).
De forma explícita esta é uma referência à árvore da vida do Gênesis (2.9), que remete à relação de unidade e dependência ente natureza e humanidade. Adam protege e defende adamah. Esta, por sua vez, dá a ele o fruto que o mantém vivo.
Como o soneto propõe, a natureza é um sujeito no plano das ações planetárias. Ela é nossa parceira, nossa testemunha, dependente de nós e, pelo que presenciamos atualmente, testemunha de acusação contra nossos pecados diante de Deus.
Nós somos filhos da adamah, e como filhos temos a responsabilidade de cuidar dela. Assim como Deus criou e zelou da natureza, nós, adam, o representamos em tal empreitada.
Exploração predatória, destruição de recursos naturais, produção indiscriminada de várias formas de lixo, assim como outras ações, constituem matricídio, pelo qual a humanidade e nós, cristãos, já pagamos um preço excessivamente alto.
• João Leonel é professor no Seminário Presbiteriano do Sul, Campinas (SP), e na graduação e pós-graduação em Letras, Universidade Presbiteriana Mackenzie, SP. É autor dos e-books Perguntas de Quem Sofre: uma leitura do Livro de Jó, Apocalipse para Hoje: aplicação e atualidade da Revelação e, em parceria com Gladir Cabral, O Menino e o Reino: meditações diárias para o Natal, todos pela Editora Ultimato.
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