Opinião
- 31 de outubro de 2022
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Adão Negro – o que significa ser herói?
Por Carlos Caldas
[Atenção: contém spoilers]
[Atenção: contém spoilers]
Já está em cartaz o filme Adão Negro (Black Adam), do diretor espanhol Jaume Collet-Serra, que tem como principal atração o super astro Dwayne Johnson, o legendário “The Rock” no papel título. Johnson já trabalhou com Collet-Serra em “Jungle Cruise”, filme no estilo “Sessão da Tarde”. No currículo de Collet-Serra constam muitos filmes de aventura e suspense. Dwayne Johnson esbanja carisma e simpatia, e é um dos atores com mais prestígio em Hollywood atualmente. O roteiro ficou por conta de Adam Sztykiel, que, curiosamente tem em seu currículo mais roteiros de comédias que de filmes de ação ou de aventura.
Antes de prosseguir, cabe uma contextualização para quem não está familiarizado com o mundo da cultura pop no qual o Adão Negro se situa: o personagem pertence ao núcleo do antigo Capitão Marvel, o atual Shazam, da DC Comics, a grande competidora da Marvel. Shazam foi criado no final da década de 1930, e segue um resumo do resumo de sua origem1: há alguns milhares de anos em uma cidade imaginária situada no Oriente Médio, um jovem descobre horrorizado que toda a população de sua aldeia, com sua família incluída, fora chacinada por uma tribo inimiga. O jovem, por nome Jebediah (“amado de Javé”), pede aos deuses que intervenham na situação, mas estes lhe respondem que não é responsabilidade deles se os humanos se matam uns aos outros. Jebediah então pede aos deuses que lhe concedam uma parte dos seus poderes, para que ele se torne um campeão da justiça. O pedido é atendido, e adquire poderes típicos do “combo” de um super-herói, como super força, invulnerabilidade, super velocidade e capacidade de voo. Anos mais tarde Jebediah será sucedido por egípcio chamado Teth Adam, que se corromperá. O mago Shazam2 então faz com que Teth Adam caia em um estado de animação suspensa, no qual permanecerá durante milênios. Enquanto isso, o mago continua a procurar alguém que seja digno de portar os poderes dos deuses para ser um campeão da justiça e batalhar contra os sete pecados capitais e contra demônios provenientes do mundo das trevas. Depois de tanto tempo, o mago entende que um menino, sem o coração maldoso de um adulto, seria o ideal. Ele descobre então um órfão chamado Billy Batson, uma criança, que ao pronunciar o nome do mago – Shazam – se transforma no “mortal mais poderoso do mundo”. Mais tarde Teth Adam, o Adão Negro, despertará de seu sono milenar, e se tornará a nêmese do Capitão Marvel. E, claro, será sempre derrotado, pois o mal não pode vencer o bem.
Pois bem, tendo apresentado a origem do Adão Negro nos quadrinhos, passemos a comentar o filme: por um lado, é muito bem produzido, com efeitos especiais primorosos, e muita ação o tempo todo, tanta, que chega a cansar um pouco. Por outro lado, a narrativa é um pouco confusa, com muitas idas e vindas em flashback e muitas explicações rápidas demais que algumas vezes mais atrapalham que ajudam. Mas o filme tem pontos muito interessantes: um deles, a estreia no cinema da Sociedade da Justiça, a primeira equipe de super seres, mais antiga que a atual Liga da Justiça da própria DC, e que os Vingadores, os X-Men e o Quarteto Fantástico da Marvel. Com isso, vimos na tela grande pela primeira vez Carter Hall, o Gavião Negro (Aldis Hodge, muito bem no papel, literalmente roubando a cena muitas vezes), Kent Nelson, o Senhor Destino, (Pierce Brosnan, que já foi James Bond, o 007, também ótimo em seu papel), um dos personagens mais dramáticos da história das HQs (o Senhor Destino é meio que o Doutor Estranho da DC, mas muito, muito mais trágico), Albert Rothstein, o Esmaga Átomo (Noah Centineo, responsável por alguns dos alívios cômicos da narrativa, mas muito apagado no todo da trama) e Maxine Hunkel (Quintessa Swindell), a Ciclone, também muito apagada – se fossem retirados do filme, não faria diferença nenhuma. A Sociedade da Justiça está sob o comando de Amanda Waller (Viola Davis), a meu ver, a personagem mais psicopata do panteão da DC (eis aí uma “parada torta”: quem é mais psicopata, Amanda Waller ou o Coringa?), o que é uma diferença do filme em relação às HQs, pois nestas ela comanda o Esquadrão Suicida, e não a Sociedade da Justiça.
Esta não é a única diferença conceitual entre o filme e as HQs: a meu ver, a principal diferença é que no roteiro de Sztykiel, Adão Negro deixou de ser o vilão que sempre foi nas HQs para se tornar uma espécie de anti-herói. Esta mudança não é de pequena monta. Qual é a diferença entre um e outro? De maneira rápida e simples, a pergunta pode ser respondida da seguinte maneira: o vilão é o agente da maldade, já o anti-herói um herói que faz a coisa certa do jeito errado. Transformar um vilão em anti-herói é uma tendência recente neste gênero de filmes. Exemplo desta mudança na própria DC é Aves de Rapina – Arlequina e sua emancipação fantabulosa, de 2020. O vilão é detestado, afinal, ele pratica o mal. Já pelo anti-herói pode-se minimamente sentir empatia. É o que o filme de Collet-Serra e Sztykiel fazem (ou tentam fazer) com Adão Negro.
Boa parte do filme gira em torno dos diálogos e das lutas entre o Gavião Negro e o Adão Negro, o que faz sentido, porque a Sociedade da Justiça foi criada nos anos de 1940, na chamada Era de Ouro das HQs, uma época em que as fronteiras entre o certo e o errado, o bem e o mal estavam nitidamente demarcadas. O Gavião Negro representa bem essa tradição, e é totalmente contrário aos métodos “pouco convencionais”, por assim dizer, do Adão Negro. Dizer que os métodos do Adão Negro são “pouco convencionais” é um eufemismo para se referir ao que o Adão Negro faz: ele assume as funções de juiz, júri e carrasco. Gavião Negro o critica, dizendo que ele não o direito de decidir quem vai viver ou morrer. Adão Negro rebate dizendo que faz o que faz para defender seu povo.
Nesse sentido o filme proporciona uma discussão atual e necessária: se eu tenho poder eu posso eliminar o “outro”, o diferente, que não faz parte do meu grupo, e que eu considero como uma ameaça? É certo agir assim? O regime nazista na Alemanha montou uma máquina de propaganda extremamente eficiente que contou mentiras tantas vezes a ponto de levar a maioria da população a crer que aquelas mentiras eram verdades absolutas que não poderiam ser contestadas. E com isso houve a implementação de um programa nefasto de eliminação do “outro” que passou a ser considerado uma ameaça e, portanto, indigno de viver. No caso da Alemanha nazista o “outro” tinha muitas faces: esquerdistas, eslavos (russos e poloneses), ciganos, pessoas portadoras de qualquer tipo de deficiência, física ou mental e, principalmente, judeus. Nós sabemos o que aconteceu: milhões de pessoas morreram.
O que muita gente não percebe é que isso não aconteceu da noite para o dia. Foi um processo lento, pouco a pouco, gestado sem pressa. Escolheram-se bodes expiatórios, que receberam a culpa de todas as mazelas que o país sofria. E com um aparato militar estatal poderoso, milhões de pessoas inocentes foram torturadas, degradadas e mortas pelo “crime” de serem consideradas como ameaça. Claro que não ameaçavam nada, mas a máquina de propaganda fez com que a maioria do povo acreditasse em discursos de ódio, e muita gente passou a achar normal e natural tirar a vida dos que consideravam como sendo ameaça. Poucos foram aqueles que levantaram suas vozes em protesto contra aquela situação. Dos que tiveram coragem de protestar, muitos pagaram com a própria vida.
É preocupante ouvir discursos moralistas, com aparência piedosa, que levam pessoas a odiarem quem consideram como “ameaças à pátria”, e, por isso, merecedoras da morte. Mais preocupante ainda é tomar conhecimento de notícias que mostram pessoas que não têm superpoderes como o Adão Negro, mas que pensam que podem decidir quem tem ou não o direito de viver.
A pergunta do título desta breve reflexão é: “o que significa ser herói?” A definição clássica de herói é a de usar o que se tem ou o que se sabe, não em benefício próprio, mas em defesa do próximo, que precisa de ajuda. Adão Negro usa seus superpoderes para satisfazer seu senso enviesado do que ele entende ser justiça. E o faz porque sabe que é praticamente invulnerável, o que o torna arrogante e soberbo. Nenhum de nós tem os superpoderes que ele tem. Mas se julgamos que o “outro” é uma ameaça, e se pensamos que podemos decidir se este “outro” tem ou não direito à vida, somos tão maus quanto o Adão Negro.
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A pergunta do título desta breve reflexão é: “o que significa ser herói?” A definição clássica de herói é a de usar o que se tem ou o que se sabe, não em benefício próprio, mas em defesa do próximo, que precisa de ajuda. Adão Negro usa seus superpoderes para satisfazer seu senso enviesado do que ele entende ser justiça. E o faz porque sabe que é praticamente invulnerável, o que o torna arrogante e soberbo. Nenhum de nós tem os superpoderes que ele tem. Mas se julgamos que o “outro” é uma ameaça, e se pensamos que podemos decidir se este “outro” tem ou não direito à vida, somos tão maus quanto o Adão Negro.
- Carlos Caldas, professor no Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC Minas em Belo Horizonte. Líder do Grupo de Pesquisa sobre Protestantismo, Religião e Arte.
Notas:
1- O resumo aqui apresentado segue a descrição feita por Iuri Andreas Reblin em O poder da palavra: magia, mito e religião em Shazam! Revista Espaço Acadêmico. N. 137, 2012, p. 110-111.
2- Shazam é originalmente o nome do mago que vive na Pedra da Eternidade, um lugar onde o tempo e o espaço se encontram. O nome do herói humano que recebe os poderes de seis entidades mítico-religiosas: Salomão, Hércules, Atlas, Zeus, Aquiles e Mercúrio (a primeira letra de cada um destes nomes forma a palavra Shazam) será Capitão Marvel, e assim ele foi conhecido por muitos anos nas histórias em quadrinhos. Originalmente as histórias do Capitão Marvel eram publicadas pela Fawcett Comics, que mais tarde foi comprada pela DC Comics. Após uma batalha judicial por conta do nome “Marvel”, que foi vencida pela competidora homônima, o super-herói passou a ser conhecido apenas como Shazam. Para detalhes, consultar CALDAS, Carlos. Shazam – aspectos teológicos e religiosos do mortal mais poderoso do mundo a propósito dos 80 anos de sua criação. Web Revista Discursividade – Estudos Linguísticos. V. 25, 2020, p. 130-140.
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É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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