Opinião
- 26 de abril de 2021
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A vida de Stott faz cem anos
Por José de Segovia
Cansado dos pregadores da moda nos Estados Unidos e do fanatismo político de um movimento evangélico cada vez mais extremista, sinto saudade daquele "cristianismo histórico" de que falou Stott.
A memória é sempre seletiva. Recordamos o que queremos. Pouco depois de me dar aulas em Londres, no início dos anos 1980, John Stott (1921-2011) explicou a um amigo em uma carta por que ele não iria escrever suas memórias: “Parece-me que tanto às autobiografias quanto às biografias de pessoas que ainda estão vivas, falta-lhes objetividade e honestidade.”
Quando ele me convidava para comer no apartamento de solteiro onde ele morava, você subia por corredores estreitos cheios de estantes, onde não sabia se parava para olhar um livro, porque ele poderia mandar você levar. Ele era tão generoso e altruísta. Viveu com uma simplicidade e modéstia que não correspondia ao reconhecimento que possuía em todo o mundo.
Para relaxar, Stott olhava livros com fotos e ilustrações de pássaros, mas antes de dormir costumava ler biografias. Ele considerava que "as biografias mais fascinantes são aquelas que não apenas contam a história de alguém, mas descobrem seu segredo". O que procurava nelas era a força ou motivação que explicava a sua vida, “ao que se dedicava e porquê”.
Ao iniciar agora uma longa série de artigos sobre alguns aspectos da biografia de meu pastor e professor, faço isso sabendo que ele preferiria que essas coisas fossem ditas quando não pudesse mais lê-las. Não havia nada que o incomodasse mais do que ouvir algo sobre ele mesmo. Esta é a minha homenagem especial a uma das pessoas com quem mais aprendi na vida …
O “doutor” que não queria ser
Seu amigo Tim Dudley-Smith começa sua monumental biografia de dois volumes com um relatório do administrador e tesoureiro à Crown State Pavement Commission por "reclamações recebidas sobre a conduta insolente de um menino de 9 anos chamado Stott nos Park Square Gardens, pela qual a Comissão escreveu uma carta aos pais”. Imagino o sorriso travesso do “Tio” John (como gostava de ser chamado por todos que gostavam dele, por sua profunda aversão aos títulos e para o escândalo daqueles que se gabavam "doutores" como ele), quando viu esta anedota publicada antes de sua partida.
Se há uma coisa que Stott não queria ser é um santo de gesso. Sua humildade não era fingida, mas real. Sua amabilidade era de uma ternura comovente, mas quando ele tinha que dizer algo, ele dizia. Ele falava com convicção, mas sem o afã pela controvérsia que marca muitos cristãos. Se havia algo que o incomodava, era aquele "odium theologicum" que a religião desperta em muitas pessoas. Não sei o quanto ele “puxou” de seu pai, mas não suportava o tom sarcástico que dizia que ele possuía. Assim, ele tentou evitar isso durante toda a vida.
Seu pai era um médico de prestígio, o Dr. Arnold Stott, cujo credo o pregador descrevia como "humanismo secular". Ele vinha de uma família de origem escandinava, estabelecida em Lancashire no século X (vikings, “Tio” John costumava dizer). Seu pai e seu avô eram especialistas em cardiologia. Haviam introduzido o eletrocardiograma no Hospital de Westminster, após a Primeira Guerra Mundial, pouco depois de ter sido desenvolvido na Holanda. Era comum em Londres que médicos de renome, como seu pai, tivessem um consultório particular na Harley Street, para onde transferiu a família em 1921, ano em que Stott nasceu.
Família de linhagem
Antes dele vir ao mundo, o médico teve três filhas, mas uma delas morreu de meningite aos 3 anos. Aconteceu quando o pai era médico militar durante a guerra na França em 1914. Em casa seu aniversário sempre foi lembrado. A mãe, Lily Holland, nasceu em Antuérpia, mas a avó era uma prussiana casada com um inglês, que acabou sendo gerente do Grand Hotel em Trafalgar Square, em Londres.
Tudo isso lhes dará uma ideia da alta classe social a que pertencia Stott. Foi o resultado do que na Inglaterra eles chamam de "escola pública", que é a educação privada mais elitista que podem imaginar. Eles são reconhecidos por seu cuidado com o sotaque e as maneiras requintadas, até os dias de hoje, já que a sociedade britânica continua sendo tremendamente “classista”. Não importa a que partido os governantes pertençam, ou quão popular seja sua arte, a maioria ainda é estudante em Eton ou Rugby, como Stott.
Como ainda é comum nessas famílias, a filha mais velha (Joan era nove anos mais velha que John) foi para um colégio interno, durante a infância de seus irmãos Joy e John. Joy era um ano mais velha do que John, que também foi enviado ao internato, aos 8 anos, para uma escola residencial em Gloucestershire, para se preparar para entrar no seleto Rugby College. Seu pai havia estudado no mesmo colégio, antes de estudar medicina em Trinity, Cambridge.
Joy teve várias babás francesas, mas a que passava mais tempo com ela e John chamava-se Nancy Golden. Iam com ela todos os dias ao parque, o jardim da praça que originou o incidente descrito no princípio deste artigo (um recinto privado, pelo qual pagavam e possuíam as chaves, e ao qual os empregados domésticos só tinham acesso com um membro da família), ou ao Regent"s Park, onde ainda está localizado o zoológico.
Escola dominical
Stott dizia que seu pai era um “secularista científico”. Considerava que “ele acreditava na educação e, como um bom filho do Iluminismo, tinha uma fé cega na razão e na inevitabilidade do progresso que remediaria os males do mundo”. Ele era maçom e participava de trabalhos filantrópicos. Foi um dos primeiros defensores da saúde pública para todos. Não ia à igreja, mas concordava que sua esposa levasse seus filhos enquanto eram pequenos para a “escola dominical” que havia na igreja onde ele permaneceria por toda sua vida, All Souls.
O edifício circular, com uma cúpula culminando em uma torre, que ainda pode ser vista ao lado da artéria comercial no centro de Londres em Oxford Circus, foi construído em 1820 em Langham Place, a praça onde fica a sede da BBC desde 1928. Era obra de um conhecido arquiteto chamado John Nash, para acomodar 1.820 pessoas sentadas. No interior, a única imagem que há é uma imensa pintura do final do século 18, o Ecce Homo de Richard Westall, que mostra um Cristo amarrado com uma coroa de espinhos e um manto roxo, rodeado por sacerdotes e soldados que lhe apontam o dedo.
O nome All Souls não vem, como alguém poderia pensar, das almas dos mortos, mas sim se refere aos moradores pobres da paróquia. A tradição evangélica desta igreja começa com seu segundo pastor, o Reitor Charles Baring, que veio da igreja mais evangélica de Oxford, St. Ebbe. Ele era amigo do conhecido reformador social evangélico Shaftesbury. Quando Stott nasceu, o pregador evangélico que estava na igreja desde 1898 morreu repentinamente. Webster foi atropelado por um carro na Baker Street, quando ia jogar golfe em seu dia de folga. Seu sucessor era muito diferente. Arthur Buxton pertencia ao movimento que se autodenominava "evangélico liberal". Ele falava no rádio e atraiu artistas do West End, como um conhecido casal de atores que se dedicava à comédia musical.
A mãe de Stott teve uma educação luterana, por meio de sua mãe prussiana. Ela ensinou seus filhos a "recitarem suas orações" de um pequeno livro e a ler a Bíblia com uma "porção" de algumas notas devocionais. Frequentemente levava as crianças para o culto no domingo de manhã, que se sentavam na primeira fila da galeria norte. À tarde iam a uma escola dominical organizada para um seleto grupo de filhos de médicos, liderados pela esposa do reitor. Isso acontecia na sala de estar da casa pastoral, que viria a se tornar a residência de Stott durante 25 anos.
A infância perdida
Antes de entrar (como interno) no Oakley Hall College, Stott frequentou a King Arthur"s Nursery School em Kensington, aos 6 anos. Tinham dois meses de férias, quando vinha sua prima Tamara, filha do famoso maestro Albert Coates (por muito tempo, o pequeno John erroneamente acreditou que a sala de concertos Albert Hall se chamava assim por causa de seu tio). O músico era casado com a irmã de Lily. Ele era meio inglês, meio russo. Quando iam a algum concerto, eles podiam vê-lo mais tarde no camarim do maestro. Nos colégios internos que frequentou, diziam que Stott tinha uma boa voz, mas ele só tocava violoncelo na escola e em reuniões familiares.
Seu pai o apresentou a alguns de seus hobbies, como botânica, música, pesca com mosca e a coleção de selos; mas ele só estava interessado em borboletas. De fato, ele levou uma rede para a escola e há fotos dele, muito jovem, com uma rede de caçar borboletas. A história é que em uma de suas muitas brigas com sua irmã, a coleção foi arruinada e seu famoso gosto por pássaros começou. É a paixão que ele manteve por toda a vida. Outro costume que tinha desde criança era ir deitar-se, meia hora depois de comer ao meio-dia. O cochilo que tornou Churchill famoso, também tornou Stott conhecido em todo o mundo.
Em 1929, Stott era um dos mais jovens internos no Oakley Hall College, que não tinha mais do que cinquenta a sessenta alunos. Nas décadas de 1920 e 1930, não era costume os pais visitarem os filhos na escola, exceto em ocasiões especiais. Uma infância vivida assim produziu uma sensação de orfandade em várias gerações da alta classe social britânica, que cresceram com uma deficiência emocional bastante notória. Como veremos, Stott não teve nenhum relacionamento com seu pai por muitos anos. Eles eram completos estranhos.
De volta para casa
Se, como diz o poeta, nossa pátria é a da infância, embora em certo sentido Stott fosse um cidadão do mundo (já que poucos pregadores viajaram tanto quanto ele, por todo o planeta), sempre fiquei impressionado ao pensar que cada vez que regressava a Londres, voltava para o mesmo lugar onde cresceu e passou grande parte de sua vida adulta. Ele estava na igreja e no bairro de sua infância. Eu conheço muito bem aquela região do centro, já que meu pai também gostava muito de ficar por lá, quando estávamos na Inglaterra. Íamos à igreja de Stott e depois estudei no instituto que ele formou no início dos anos 1980, para pensar sobre o significado do cristianismo no mundo contemporâneo.
Estou num momento em que estou cansado dos pregadores da moda nos Estados Unidos, do fanatismo político de um movimento evangélico cada vez mais extremista, e estou nostálgico desse "cristianismo histórico" de que falava Stott. Quando leio seus livros e ouço seus sermões, sinto a emoção desta fé em Jesus Cristo, baseada na autoridade da Bíblia, que não tinha medo de viver no meio do mundo, à luz dessa Palavra que ainda fala comigo através de seu Espírito. Anseio pelo equilíbrio que ele sempre buscava e pela atitude aberta para falar da verdade com amor. Ainda penso como Stott em 1984:
“Alguns cristãos, ansiosos por serem fiéis à revelação de Deus sem concessões, ignoram os desafios do mundo moderno e querem viver no passado. Outros, ansiosos por responder ao mundo que os rodeia, mutilam e distorcem a revelação de Deus em suas tentativas de torná-la atual. Tenho lutado para evitar estas duas armadilhas. Tenho tentado submeter-me completamente à revelação de ontem, mantendo-me, no entanto, imerso na realidade de hoje. Não é fácil combinar lealdade ao passado com sensibilidade ao presente. Porém, nosso chamado é justamente viver no mundo à luz da Palavra”.
• José de Segovia Barrón, pastor da Igreja Evangélica do bairro de San Pascual em Madrid. Professor da Faculdade Internacional de Teologia IBSTE de Castelldefels, do Centro Evangélico de Estudios Bíblicos (CEEB) de Barcelona, da Faculdade de Teologia UEBE (FTUEBE) de Alcobendas (Madrid) e da Escola de Estudos Bíblicos e Teológicos de Welwyn (Inglaterra). Autor dos livros Entrelíneas, Ocultismo, Historias Extrañas Sobre Jesús, El Príncipe Caspian y La Fe de C. S. Lewis, Marcas del Cristianismo en el Cine e El Asombro del perdón. É casado com Anna, e tem quatro filhos: Lluvia, Natán, Noé e Edén.
Publicado originalmente no site Protestante Digital. Reproduzido com autorização.
Traduzido por Reinaldo Percinoto Jr.
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