Opinião
- 24 de outubro de 2022
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A unidade da Igreja como mandato de Jesus
Por Valdir Steuernagel
No decorrer dos anos e no exercício do ministério cristão vai-se aprendendo que a fé cristã é relacional, se alimenta de encontros e conversas, e é comunitária, pois ela gosta do outro e torna a vida mais bonita quando se anda em companhia. A fé cristã é gregária por natureza e é marcada e composta por histórias. Histórias que alimentam a alma, enriquecem a vida e nutrem a esperança. Histórias que falam de nossas lutas e dores, bem como de nossas alegrias e esperanças. Histórias que falam da história de Deus conosco e que apontam para o seu amor, sua fidelidade e a vocação com a qual Ele nos alcança.
É nesta perspectiva que eu trago à memória, aqui, três momentos da minha convivência com o Dom Robinson Cavalcanti. Três momentos que apontam para diferentes aspectos vocacionais da igreja, ainda que seja na mesma direção testemunhal, pois é nisso que o Robinson se constituiu: uma pessoa da igreja, de uma igreja comprometida a viver a sua fé em Jesus como testemunho público. Alguém que, como pessoa da igreja, era também comprometido com a busca pela unidade, pois cria que é a unidade que dá consistência ao nosso testemunho. Não uma unidade que aconteça a qualquer preço e de qualquer jeito, mas uma unidade que tenha um centro e um foco. Uma unidade centrada em Jesus Cristo e cujo foco esteja no testemunho do Reino de Deus.
Eu conheci o Robinson e sua esposa Miriam nos inícios de 1970, no contexto da Aliança Bíblica Universitária, e no decorrer dos anos fomos nos encontrando em vários lugares e em diferentes ocasiões. Ele e Miriam foram inspiração e modelo para minha esposa e para mim, quando ainda atuávamos como obreiros no ministério estudantil e nos preparávamos para o nosso matrimônio. Os anos passaram e os nossos caminhos ministeriais nos levaram em direções diferentes e a menos encontros, até que, na primeira década deste milênio, no contexto da formação da Aliança Cristã Evangélica Brasileira, nossos caminhos acabaram se reencontrando.
A semente do Congresso Brasileiro de Evangelização
O primeiro momento que quero registrar foi numa praia em Pattaya, na Tailândia, onde nos encontrávamos para a Consulta sobre Evangelização Mundial (COWE – Consultation on World Evangelization), realizada naquele país entre os dias 16 e 27 de junho de 1980. Era a minha primeira participação num evento daquela natureza fora da América Latina, assim como a minha primeira vez num encontro promovido pelo Movimento de Lausanne, com o qual Robinson já estava bem mais familiarizado, enquanto eu ainda estava muito perdido. Numa das folgas do programa nós acabamos nos encontrando numa das praias que ficavam no circuito do hotel onde estávamos hospedados, e daquela conversa na praia brotou uma semente: seria necessário e importante pensarmos na realização de um evento que tivesse a marca de Lausanne e dos seus propósitos entre nós, no Brasil. Dali se seguiriam outras conversas, com outros mais e em outros momentos e lugares, culminando no que veio a ser o Congresso Brasileiro de Evangelização (CBE), que ocorreu em Belo Horizonte (MG), nos dias 31 de outubro a 5 de novembro de 1983. Este evento, incluindo o seu antes e o seu depois, nos colocou em sintonia com aquilo que John Stott chamou de “Espírito de Lausanne”, que conciliava o compromisso com a evangelização, a busca por um testemunho integral na sociedade e a expressão de uma igreja que quisesse e conseguisse caminhar em sinalização pela busca da sua unidade.
O próprio CBE deixou isso bem claro quando, ao alinhavar os seus objetivos, a palavra “cooperação”, usada na época para o que hoje descreveríamos como sinais de unidade, apareceu no 5º objetivo e dizia assim:
Incentivar a fraternidade e cooperação entre o povo evangélico brasileiro, buscando a manifestação visível do Corpo de Cristo e um melhor aproveitamento dos recursos disponíveis para a expansão do Evangelho.
Ao redigir o seu manifesto de saída, que foi intitulado “Compromisso de Belo Horizonte”, era necessário voltar a este assunto. Isto se fez explicitando o compromisso nº 10: “buscar a unidade fraterna da Igreja, no testemunho e no trabalho, conforme a oração de Jesus: ‘a fim de que todos sejam um . . . para que o mundo creia’ (Jo 17:21)”.
A busca da visibilidade da “unidade fraterna da Igreja” em torno do compromisso e da prática da evangelização tem sido uma das marcas do Movimento de Lausanne no decorrer de décadas de sua existência. Robinson, bem cedo nesta caminhada, cerrava fileira com este objetivo e procurava dar-lhe visibilidade e consistência, modelando esse jeito de viver a fé junto a jovens como eu e outros que o escutávamos com respeito e atentividade.
O Congresso Brasileiro de Missões
O segundo momento que aqui registro reporta o meu último encontro presencial com o Robinson, que ocorreu em Caldas Novas (GO), por ocasião do VI Congresso Brasileiro de Missões, entre os dias 10 e 14 de outubro de 2011. Estava às portas o Fórum que iria formalizar estatutariamente a construção da Aliança Cristã Evangélica, e foi esta a razão de um almoço no qual estava também o Carlos Queiroz. Conta a minha memória, que é tão distraída nos detalhes, que esta foi a última vez que estivemos juntos, face a face: num almoço, como ele gostava. Nessas ocasiões o Robinson brilhava com as suas histórias, anedotas e profundas frases de efeito.
Naquele Congresso, que tinha como tema central “A Missão Transformadora diante da Realidade Mundial”, o Robinson iria tratar da “Singularidade de Cristo no centro da missão”, enquanto eu iria abrir o evento abordando o tema “Buscando a unidade como modelo de missão”. É significativo que ambos os temas estivessem aninhados num evento que focava o desafio missionário da igreja brasileira e dava amplo espaço de testemunho para experiências que se estavam gestando em muitos e diferentes lugares a partir do viés de uma missão com enfoque transcultural. Esta era, e assim queria ser afirmada, uma missão centrada em Cristo e que se sabia oriunda e comprometida com uma igreja que buscava sinalizar a sua unidade. Ambas as dimensões, aliás, continuam sendo absolutamente básicas e centrais no que se tem chamado de “o campo de atuação missionária”.
Naquele congresso eu destaquei o que entendia ser uma nota distintiva do evento: estabelecer uma íntima relação entre unidade e missão, ao mesmo tempo em que se afirmava a unidade como modelo de missão. Aliás, o próprio Jesus já estabelecera esta relação ao destacar que tanto uma quanto a outra eram mandatos seus para a sua igreja, como veremos mais adiante. Estes mandatos são para ser obedecidos e não se prestam a ser objetos de discussão e ou de escolha. Ou seja, assim como a missão não é uma questão de opção para a igreja, tampouco a unidade o é, e ambas estão no cerne da vida de oração de Jesus. O evangelista João dá um espaço nobre para aquela que é identificada como “A oração sacerdotal de Jesus” e se espalha por todo o capítulo 17 do seu Evangelho. Aliás, esta oração faz parte de um grande complexo que, no Evangelho de João (13 a 17), aponta para a missão de Jesus e o papel do Espírito Santo, enquanto desenha o papel dos discípulos e deixa transparecer uma profunda unidade, assim como uma relação intensa e carinhosa, entre Jesus, o filho, e Deus, o seu pai. Ao apontar para essa intimidade entre ele e o seu Pai, Jesus integra os seus discípulos de todos os tempos e lugares a esta relação e, numa linguagem intercessória, roga ao Pai que estes venham a se constituir numa comunidade que desperta no mundo o desejo de crer no Deus que “tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16). E assim Jesus ora:
Assim como me enviaste ao mundo, eu os enviei ao mundo. Em favor deles eu me santifico, para que também eles sejam santificados pela verdade. Minha oração não é apenas por eles. Rogo também por aqueles que crerão em mim, por meio da mensagem deles, para que todos sejam um, Pai, como tu estás em mim e eu em ti. Que eles também estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste. Dei-lhes a glória que me deste, para que eles sejam um, assim como nós somos um: eu neles e tu em mim. Que eles sejam levados à plena unidade, para que o mundo saiba que tu me enviaste, e os amaste como igualmente me amaste (Jo 17.18-23).
Olhando para a vivência da nossa igreja denominada evangélica, nestas últimas décadas, é inegável que esta encontrou o caminho da presença e da prática evangelizadora, até se constituir, mediante um crescimento consistente e progressivo, num significativo segmento da sociedade brasileira no decorrer de umas poucas décadas. Mas também é necessário reconhecer que o que não aprendemos e se constitui num dos nossos maiores déficits é a vivência em unidade no universo da igreja, deixando a sociedade órfã de tal testemunho. Nós sabemos, sim, como praticar a divisão; e não nos damos conta de, ao agirmos assim, estamos negando o próprio evangelho que anunciamos. Pois, como fica evidente na própria oração de Jesus, não há outro evangelho a não ser aquele que nos convoca a vivenciar uma igreja una e santa. Não há outro evangelho senão aquele que, no seguimento a Jesus, o encontra orando para que sejamos um como ele e o Pai o são, “para que o mundo creia” (Jo 17.21c).
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo: A Trindade como modelo
Como este artigo tem um tom coloquial creio que posso ser transparente e dizer, em tom de confissão, que quanto à Trindade eu sou um ignorante. Mas sou um ignorante encantado. Não apenas porque tenho muito a aprender no que se refere a Deus como Pai, Filho e Espírito Santo e a convivência deles em comunidade, mas também porque a Trindade não é uma realidade para ser meramente absorvida no nível cognitivo, pois ela é um convite à adoração. A lógica da Trindade convida à adoração. Diante dela reagimos em balbucio e até tomamos emprestadas as palavras da Maria quando ela diz: “Sou serva do Senhor; que aconteça comigo conforme a tua palavra” (Lc 1.38). Maria se entrega ao Senhor e deixa-se possuir pelo Senhor para ser dele e servir a ele. Assim é com a Trindade. Ela nos possui e nós, balbuciando, entramos nela em resposta ao convite de Jesus para que a integremos na intensidade da relação entre Pai e Filho, vindo a vivenciar uma experiência que gera em nós um profundo sentimento de pertença ao Eterno e uns aos outros. Uma pertença coletiva, de comunidade. A comunidade do Eterno a se estender para a comunidade do Corpo de Cristo.
A Trindade, como comunidade do divino, nos coloca em contato com a realidade de Deus e sua presença no todo da vida. Sua presença é criadora, e como tal, o seu sopro faz brotar e sustentar a própria vida. A Trindade cobre toda a terra com a realidade da glória criadora e amorosa de Deus. Sua presença é inspiradora e pelo Espírito Santo, como “o primeiro missionário”, Deus está presente em todos os lugares e em todo o tempo. O Espírito Santo é esse missionário de Deus que sopra livre e abundantemente no anseio de colocar no coração das pessoas a sede e a necessidade de pertencimento ao próprio Deus, bem como o desejo de viver na comunidade onde o outro é criado à imagem de Deus e onde a própria natureza é expressão da natureza do Deus trino.
O pioneiro em missões modernas, Conde von Zinzendorf, fala do agir do Espírito como sendo “a graça precursora” que prepara o campo e os corações para ouvirem acerca do “Cordeiro”. É esta ação do Espírito que a nossa ação missionária procura identificar e servir. E, não por último, a presença da Trindade encarna de forma visível, histórica e geográfica em Jesus de Nazaré. Isto é atestado pelo próprio Pai quando a sua voz ressoa acolhendo este Filho enviado, por ocasião do seu batismo: “Este é o meu filho amado, em quem me agrado” (Mt 3.17). E esta mesma afirmação é repetida por ocasião da transfiguração de Jesus, seguida do convite: “ouçam-no” (Mt 17.5). Ao ouvi-lo e ao segui-lo, nós nos tornamos parte dessa comunidade da Trindade, que não se cansa de convocar-nos a integrar essa comunidade do shalom de Deus, que é expressão viva do convite “para que o mundo creia” (Jo 17.21c).
Senhor, ensina-nos a orar... A oração sacerdotal
A minha caminhada rumo à formação da Aliança Cristã Evangélica, à qual me refiro a seguir, me empurrou, por assim dizer, para dentro da oração sacerdotal de Jesus que, como vimos, soa e ressoa em todo o capítulo 17 do Evangelho de João. Esta oração é de uma beleza e intensidade únicas que carece ser abraçada por nós na reverente atitude de alguém que escuta uma oração do coração. Uma oração que, à medida que a ouvimos de fato, vai nos formando um nó na garganta. O nó que dá testemunho da inefabilidade do Eterno, e aponta para a possibilidade e a necessidade de uma intimidade que gera uma identidade comum e estende o convite para a inclusão daquele outro que, tal como nós, carece do pão, da restauração, da relação e da esperança.
Ainda que eu esteja muito longe de honrar a riqueza do conteúdo desta oração de Jesus, me arrisco a rabiscar três notas distintivas:
1) A palavra-chave com a qual Jesus descreve a sua missão de vida é “glorificar”. Glorificar a Deus pai era a sua missão central, que ele exerceu com zelo, afinco e gratidão e que ele declara ter cumprido até o fim da sua vida: “Eu te glorifiquei na terra, completando a obra que me deste para fazer” (Jo 17. 4). Glorificar a Deus é o objetivo central da igreja, enquanto ela vivencia a sua fé em comunidade e o faz de forma testemunhal.
2) Os discípulos são convidados a entrar nessa “comunidade da Trindade”, na qual Deus é glorificado. É dessa comunidade, como expressão do Corpo de Cristo, que ela extrai a seiva que alimenta o compromisso com a sua vocação, mantendo sempre diante de si o letreiro luminoso que diz “Para que o mundo creia”. Olhando para o outro lado desta afirmação, pode-se dizer que se o mundo não enxergar unidade nessa comunidade, é que ela não está refletindo a Trindade de Deus e não está soletrando, vivencialmente falando, a glória de Deus.
3) A oração de Jesus aponta para o fato de que a unidade dos seus seguidores é fator de missão. Essa unidade é expressa pelo vínculo do amor, que é também modelado pelo amor que há na Trindade, como demonstrado pelo próprio amor de Jesus, dito por ele assim: “Amem-se uns aos outros. Como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros. Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês amarem uns aos outros” (Jo 13.34-35). A unidade no amor, visível no Corpo de Cristo, se transforma em testemunho do amor de Deus. Há uma expressão clássica advinda de Tertuliano, na antiga igreja africana, quando ele relata que os pagãos diziam: “Vejam como eles se amam uns aos outros – vide, inquint, ut invicem se diligant”, apontando para a forma como a comunidade de fé vivia entre si e até como ela cuidava dos de fora.
Precisamos deixar ressoar em nós e entre nós esta oração de Jesus, ao ponto de aprendermos a orar com ela e viver a partir dela, “para que o mundo creia”. E precisamos manter esta oração diante de nós para nunca deixarmos de perguntar como estamos levando o mundo a crer e a encontrar-se com Jesus Cristo, lembrando sempre que o nosso testemunho é a nossa vida e a nossa vida é o nosso testemunho.
Sinais de alerta e chamado à conversão
Na sua memorável participação no III Congresso Internacional de Evangelização Mundial – Lausanne III, Chris Wright nos lembrou que, segundo o impressionante testemunho das Escrituras, “o maior problema para Deus em sua missão redentora no mundo é o próprio povo de Deus.” Em continuação, disse que o que parece entristecer mais a Deus “não é apenas o pecado do mundo, mas o fracasso, a desobediência e a rebelião daqueles que Deus remiu e chamou para ser seu povo, seu povo santo e distinto”. Entre as expressões de desobediência que maculam o povo de Deus está, certamente, a sua constante e infindável divisão e seus inúmeros conflitos internos, a crua competição entre diferentes igrejas e instituições cristãs, a discriminação do outro que não adere ao “meu” credo, além do fato de que tantas de nossas comunidades de fé refletem as mesmas divisões e discriminações que fazem parte da nossa sociedade. No capítulo intitulado “Nós amamos o povo de Deus”, O Compromisso da Cidade do Cabo verbaliza esta vocação para o encontro e a unidade do povo de Deus, bem como o fato de que, muitas vezes, nós apenas refletimos aquilo que é realidade em nossa sociedade. Ele diz assim:
A marca mais convincente da verdade do evangelho é a unidade em amor dos cristãos, superando as divisões crônicas do mundo: barreiras de raça, de cor, classes sociais, privilégios econômicos ou partidarismo político. Entretanto, poucas coisas destroem mais nosso testemunho do que a presença e ampliação dessas mesmas divisões no meio cristão.
O caminho que conduz a igreja rumo a um testemunho marcado pela unidade é longo e até diverso. Essa unidade precisa ter a marca de uma fé comum, de formas institucionais saudáveis que sejam forjadas no decorrer do tempo, de práticas de cuidado mútuo e de uma intencionalidade testemunhal que honra a Deus e acolhe o outro e o diferente. Encontrar e abraçar essas marcas, no tempo e no espaço, é sensível, dinâmico, possível e necessário. A pergunta central é se nós as queremos (o que nem sempre parece ser o caso). Se, no entanto, nossa intencionalidade se movimenta na direção delas estamos nos constituindo em resposta à oração de Jesus para que o mundo creia.
A formação da Aliança Cristã Evangélica Brasileira
É preciso desenhar, neste destaque do terceiro momento, um pouco do cenário da minha última troca de mensagens com o Robinson, não apenas para que a história fique evidente, mas também para deixar ainda mais óbvio quem era o Robinson, com destaque para o seu compromisso com a igreja e a sua unidade. Tanto ele como eu e muitos outros como nós estávamos bem envolvidos na formação da Aliança Cristã Evangélica Brasileira. Este era um novo esforço coletivo para ter entre nós, no Brasil, uma expressão visível da unidade da igreja: uma aliança que fosse evangélica. Já havíamos realizado no dia 30 de novembro de 2010, em São Paulo, um significativo evento que marcara a fundação dessa Aliança, e nela o Robinson havia falado sobre a nossa caminhada histórica e as experiências com expressões de unidade. Mas ainda carecíamos de um evento estatutariamente fundante e este foi marcado para os dias 24 a 26 de novembro de 2011, em Brasília. Neste o Robinson voltaria a falar, abordando a história dos movimentos de unidade, com enfoque no Brasil, o que ele efetivamente fez, com sua usual maestria e profundidade.
Uma vez mais estaríamos juntos, neste evento, mas nunca mais nos encontramos. Nos dias que antecederam este encontro eu estava numa viagem ministerial aos EUA, quando fui acometido de uma séria crise no nervo ciático que resultou numa cirurgia de emergência naquele país, inviabilizando a minha presença no encontro da Aliança. No dia 07/12/11, já de volta ao Brasil e na minha casa, eu lhe escrevi um pequeno e-mail agradecendo a sua significativa palavra naquele Fórum da Aliança:
Meu caro Robinson, ouço da sua participação no Fórum e sorrio com gratidão. A sua presença, sua contribuição e o seu compromisso são fontes de alento para todos nós na Aliança e temos profunda gratidão e respeito por você. Muito obrigado e Deus lhe abençoe. Abraço! Valdir.
Em poucas horas, ele respondeu com um e-mail que não quero esquecer, pois fala muito de quem esse servo do evangelho foi se tornando na caminhada da vida:
Puxa, Valdir, sou apenas um veterano, considerado por alguns como “ultrapassado”, que se sente honrado em estar ao lado de vocês nessa construção. Paz e saúde. Um grande abraço, +Robinson.
“Puxa, Valdir” é a expressão que gravo no coração ao lembrar deste vocacionado que só queria servir a Deus e o fez até o dia 27 de fevereiro de 2012, quando a vida lhe foi tirada.
Para Robinson a unidade da igreja estava vinculada à evangelização, na qual a igreja deveria estar envolvida por dentro e por fora, e ele procurou viver isso. Para ele, a unidade da igreja estava vinculada à sua missão, fosse perto ou longe, desde que apontasse para a centralidade de Jesus e reunisse ao seu redor a comunidade dos seguidores de Jesus.
Puxa, Robinson, eu gostaria de dizer, por que você foi levado tão logo? Nós necessitamos de você, da sua presença, da sua voz e das suas histórias a nos lembrar, sempre de novo, que a busca da unidade é um mandato que Deus nos dá e ao qual só podemos responder com a obediência.
Senhor, dá-nos o dom da Unidade... para que o mundo creia!
No decorrer dos anos procurei me assentar aos pés de James Houston e ele me ensinou que o dom de Deus é radicalmente uma dádiva de Deus. Ou seja, é algo que nunca teríamos por nós mesmos e que só passamos a ter como uma inquestionável dádiva da graça de Deus. O dom é algo que nós carecemos muito, mas não teríamos a mínima possibilidade de adquirir por nós mesmos. É assim com o dom da unidade da igreja: um dom que precisamos desesperadamente, mas que nunca priorizamos por nós mesmos. Aliás, a nossa cultura evangélica não apenas desprioriza e relativiza a unidade da igreja, mas a desconstrói e tende a negá-la. Quando nossas igrejas, denominações e instituições se dividem sem parar; quando nossa cultura evangélica afirma um empreendedorismo excludente e exclusivista como sendo um chamado de Deus; e quando se chega ao ponto de afirmar que dividindo se cresce mais e melhor, estamos projetando em nossa sociedade a percepção de que somos uma igreja cujo divisionismo não tem limites, de que praticamos uma competição feroz ao ponto de invocar o divino como nosso aliado e de que somos arrogantes ao ponto de considerar-nos os escolhidos únicos, sobre quem paira a unção de Deus e a orientação do Espírito. Precisamos do dom da unidade para que nos arrependamos do nosso divisionismo e exclusivismo e nos convertamos Àquele que orou por nós dizendo “para que todos sejam um” (Jo 17.21a). Só vivendo em unidade poderemos nos identificar como seguidores daquele que anunciamos – Jesus Cristo – “para que o mundo creia” (Jo 17.21c).
A nossa oração pelo dom da unidade precisa incluir a intercessão, para que possamos desenvolver também uma teologia que tenha o tamanho do corpo de Cristo, em sua riqueza, sua diversidade e amplitude, e uma teologia que queira se constituir em resposta à oração de Jesus pela unidade do seu povo, superando os pacotes teológicos nos quais há lugar apenas para a conjugação do meu alfabeto doutrinário ou para o meu discurso apologético. A teologia que nasce como resposta à oração de Jesus pela unidade do seu corpo e assim tem lugar para Pedro, para Paulo e para Priscila, sabe se movimentar na Galileia e em Jerusalém, sabe conversar com a “Grécia antiga” e com o panteão dos deuses romanos e sabe gestar uma pastoral na qual há lugar para a viúva pobre, para a criança abandonada e para o refugiado desesperado, citando uns poucos exemplos. Uma teologia que nasce como fruto da oração “para que o mundo creia” e se manifesta na igreja vivendo em unidade.
Assim, ao final desta caminhada na qual trago a vida do Robinson e da Miriam à nossa memória, e com isso reavivamos a memória de que fomos chamados para viver na unidade da fé para que o mundo creia, proponho que oremos:
Senhor, dá-nos o dom da unidade!
Dá-nos a unidade no culto para que juntos
te adoremos como Deus Pai, Filho e Espírito Santo!
Dá-nos a unidade da fé que nos reúne ao redor da mesa da comunhão.
Dá-nos a unidade na missão para que juntos
semeemos no outro e em nós o desejo de te conhecer.
Dá-nos a unidade no serviço
para que assim experimentemos o que significa colocar o
interesse do outro acima do nosso.
Senhor, ensina-nos a andar nos passos da tua oração:
para que o mundo creia!
Notas
1- STEUERNAGEL, Valdir (Ed). A Evangelização do Brasil: Uma Tarefa Inacabada. São Paulo: ABU, 1985, p.13.
2- STEUERNAGEL, Valdir (Ed). A Evangelização do Brasil: Uma Tarefa Inacabada. São Paulo: ABU, 1985, p. 15.
3- STEUERNAGEL, Valdir. Obediência Missionária e Prática Histórica. Em Busca de Modelos. São Paulo: ABU, 1993, p. 108.
4- WRIGHT, Chris. Um Caminho a Seguir: humildade, integridade e simplicidade, In: O Deus da Justiça e a Justiça de Deus. STEUERNAGEL, Valdir (Ed). Viçosa: Ultimato, 2020, p. 137.
5- O Compromisso da Cidade do Cabo: uma declaração de fé e um chamado para agir. Curitiba: Encontro Publicações; Viçosa: Ultimato, 2011, p. 60.
Referências
O Compromisso da Cidade do Cabo: uma declaração de fé e um chamado para agir. Curitiba: Encontro Publicações; Viçosa: Ultimato, 2011.
STEUERNAGEL, Valdir. Obediência Missionária e Prática Histórica: Em Busca de Modelos. São Paulo: ABU, 1993.
______ (Ed). A Evangelização do Brasil: Uma Tarefa Inacabada. São Paulo: ABU, 1985.
WRIGHT, Chris. Um Caminho a Seguir: humildade, integridade e simplicidade, In: STEUERNAGEL, Valdir (Ed). O Deus da Justiça e a Justiça de Deus. Viçosa: Ultimato, 2020.
- Valdir Steuernagel, pastor luterano com mestrado e PhD da Lutheran School of Theology em Chicago - EUA. Exerceu ministério com Aliança Bíblica Universitária (ABU), Fraternidade Teológica Latino Americana (FTL) e Visão Mundial Internacional. Cofundador do Centro de Pastoral e Missão, vinculado ao Movimento Encontrão. Exerceu o pastorado em diferentes Comunidades da sua Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Embaixador da Aliança Cristã Evangélica Brasileira e da Visão Mundial. Colunista da revista Ultimato. Publicou livros e artigos na área de missão integral e missão da igreja, em português, espanhol e inglês. Obras recentes: Formação Espiritual (Org); O Deus da Justiça e a Justiça de Deus (Ed); Raízes de um Evangelho Integral (Coeditor com René Padilla).
Artigo originalmente publicado em Robinson Cavalcanti: estudos em homenagem. São Paulo: Fonte Editorial, 2022, p. 119-130. Reproduzido com permissão.
PARA QUE TODOS SEJAM UM – A UNIDADE DA IGREJA É POSSÍVEL? | REVISTA ULTIMATO
Qual a melhor resposta para um mundo cada vez mais dividido e para uma igreja cada vez mais polarizada? Pode parecer estranho, mas a resposta bíblica é óbvia: a Unidade em Cristo. E a pergunta que se segue é: “Que unidade é essa?” Aquela pela qual Jesus orou (Jo 17.23).
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