Opinião
- 20 de abril de 2012
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A umbanda music e o samba sem farofa
A música sacra afro-brasileira - utilizada especificamente nos cultos aos orixás - foi, no entendimento dos estudiosos do samba, a engrenagem desse estilo musical que ainda hoje é chamado de ‘o ritmo do Brasil’; esse som brasileiro tem na dança religiosa dos negros sua grande matriz. Bantos e iorubás (principais povos africanos trazidos para cá), de acordo com Reginaldo Prandi, só formaram de fato uma religião própria a partir da segunda metade do século 19. Nessa mesma época chegaram os primeiros missionários protestantes ao Brasil, quando também foram se organizando as igrejas históricas (congregacional, presbiteriana, metodista e batista). O Protestantismo Tupiniquim e o Candomblé, portanto, fazem aniversário no mesmo tempo. Lá se vão cento e sessenta anos!
Muito tem sido investigado sobre a “contribuição evangélica à cultura brasileira”. Gedeon Alencar, cientista da religião e escritor, nos provocou recentemente a respeito desse tema. Logo que comecei a escrever sobre a nossa brasilidade, suas inquietações emergiram dessas águas misteriosas por onde navego enquanto descubro esse mar de informações. Para Alencar, o nosso protestantismo atual é “ambíguo, pluralista, intermediário, carnavalesco, sincrético... nem branco nem preto. Protestantismo Tupiniquim Mulato”. Mas, antes de se construir esse jeito evangélico, essa atitude antropofágica em relação à cultura, onde tudo que é mundano vira gospel, “lavando e santificando” os ritmos, esportes, TV’s, rádios, cinemas e etc, antes disso, a classe média branca e católica deu uma outra resposta ao samba de terreiro logo no início de tudo; lá nós temos de Pixinguinha e Donga (frequentadores dos terreiros), nesse tempo, já existia Noel Rosa, Braguinha e Almirante com um projeto: fazer um samba sem farofa.
A filha carioca do Candomblé - a Umbanda - e também o samba, surgem quase que ao mesmo tempo, “nos anos 20 e 30 do século passado, ambos frutos do mesmo processo de valorização da mestiçagem que caracterizou aqueles anos e de construção de uma identidade mestiça para o Brasil” (Prandi) . Esse mesmo autor aqui citado catalogou e publicou 761 letras da MPB com referência a orixás e outros elementos das religiões afro-brasileiras. Entre o nascimento do samba e os dias de hoje (passe o olho na nova geração da chamada música popular) existe uma grande quantidade de termos explícitos da confissão mística do candomblé, o que chamo, em contraste ao gospel brasileiro, de umbanda music.
Vinícius de Morais, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Clara Nunes, Ivete Sangalo, Jorge Ben Jor, Lenine, Céu, Maria Betânia, Elis Regina, Ivan Lins, Maria Gadú, Seu Jorge, Roberta Sá, para não falar dos sambistas Martinho da Vila, Arlindo Cruz e Lecy Brandão, e artistas da música erudita como Villa Lobos, Carlos Alberto Pinto da Fonseca. Todos eles e muitos outros do rock nacional também se renderam à uma confissão religiosa, a saber a Umbanda e o Candomblé. Não é a toa que acho muito estranho chamarmos de “religiosa” somente a música de confissão cristã. Não é a toa que acho esquisito chamarmos uma confissão específica (a que exalta o panteão afro) de tipicamente brasileira, enquanto a outra de “gospel”, uma coisa a parte. Você não acha?
Mas como já disse anteriormente, lá no início já havia gente que não se sentia a vontade com a temática ou a visão de mundo da umbanda music e nem por isso foram lançados para fora da cultura, criando um segmento ‘confessional’ por não reproduzirem o canto dos terreiros. Em algum momento de suas carreiras, estes artistas cantaram outro universo diferente daquele cantado pela grande maioria da MPB. Entre eles podemos citar, além de Noel Rosa, Braguinha e Almirante, o nosso sambista realista Nelson do Cavaquinho, Tom Jobim, Milton Nascimento e a turma do Clube da Esquina, Los Hermanos, Legião Urbana e o mais famoso deles, Roberto Carlos. Se o pesquisador Reginaldo Prandi se utilizou de recursos públicos e de uma equipe de colaboradores para fazer uma lista de composições com referências à poesia afro, por que não fazer o mesmo investigando a marca cristã dentro da música popular brasileira? Estou convencido de que a turma que gasta tempo criticando a própria família da fé daria contribuição mais digna ao reino de Deus empenhando forças nesta direção. No mínimo a nossa cultura seria mais enriquecida com trabalho tão importante. Certamente vamos encontrar muitos e geniais artistas como o grande cantador Elomar cujo lema é “servir a Deus e cantar o sertão”. E o caso do Noel? Ouça aí: “A vila tem um feitiço sem farofa/ Sem vela e sem vintém/Que nos faz bem”.
Em janeiro deste ano, a presidenta Dilma Rousseff sancionou uma lei que altera a famosa Lei Rouanet para estender benefícios da renúncia fiscal à música religiosa. O texto diz: "Para os efeitos desta Lei, ficam reconhecidos como manifestação cultural a música gospel e os eventos a ela relacionados, exceto aqueles promovidos por igrejas." Isso já é um avanço no sentido de atualizar o discurso da nossa identidade brasileira – algo parecido com o que foi feito no início do século passado com relação à mestiçagem e ao negro. Seria absurdo ignorar a força da música evangélica.
Não interessa aqui o esforço político envolvido nessa mudança. No entanto, algo além disso está claro para mim: a nova geração, naturalmente vai construir uma nova música brasileira tendo uma outra matriz para a sua confecção, que não é a umbanda music, nem o pessimismo filosófico do rock oitentista, mas a herança cristã que o jovem e contraditório movimento gospel divulgou e em muitos casos renegou. Não precisa acender sua vela. Essa música já está ai!
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