Opinião
- 02 de setembro de 2021
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A teologia que Stott estudou
Por José de Segovia
O protestantismo em que fui criado ou era fundamentalista ou liberal, não havia meio termo. Stott me ensinou, sem dúvida, que havia uma "terceira via".
O arcebispo de Canterbury, Robert Runcie, acabava de se aposentar do primaz da Comunhão Anglicana, onde se tornou lord, apesar de enfrentar o governo conservador de Thatcher e o anglo-catolicismo de onde veio, por suas ideias liberais, quando embarcou em um cruzeiro no impressionante transatlântico Queen Elizabeth 2, onde conheceu um embarcador evangélico da Carolina do Norte chamado David Spence, que era amigo de John Stott – e agora seu executor literário. Runcie estudou teologia em Cambridge com Stott, sendo eleito arcebispo no lugar do colega de escola de Stott, Hugh Montefiore. Como líder da Igreja da Inglaterra, Runcie havia concedido o grau de doutor honorário a Stott, pois como disse Spence, “Ele tinha uma mente tão brilhante que foi o melhor estudante da tradição teológica liberal de Cambridge”. Runcie ainda acrescentou: “O problema é que não cria nela”.
O cristianismo evangélico sempre se distinguiu por sua ignorância da teologia moderna, mas quando algum aluno se aproxima academicamente dela, inevitavelmente a assume de maneira acrítica. Quando estudei com Stott no Instituto de Londres para o Cristianismo Contemporâneo, antes de fazer jornalismo na Universidade de Madri e Teologia na Holanda, não conhecia mais que dois tipos de evangélicos: os que não queriam saber de teologia contemporânea e os que estavam tão fascinados por ela que pronunciavam os nomes de cada autor com uma devoção apenas comparável à maneira que repetiam cada uma de suas frases como um papagaio.
O protestantismo em que fui criado era fundamentalista ou liberal, não havia meio termo. Em certo sentido, temo que as coisas não tenham mudado tanto assim. A maioria segue desprezando a teologia ou tem as posturas mais extremas possíveis, mas sempre há uma minoria mais aberta, que acaba absorvendo com suas leituras “todo o pacote” da teologia atual, até ser incapaz de não ver nenhum problema nela. Fui ensinado por Stott, sem dúvida de que havia uma “terceira via”. O problema é que – como ele viveu no final da Segunda Guerra Mundial e, eu mesmo experimentei, uma data tão tardia como o final dos anos 80. Estudar teologia como evangélico em uma universidade que não é evangélica é um caminho solitário, caso queria ser fiel à Bíblia.
Um caminho solitário
Seu amigo, o teólogo metodista Donald English lembra que Stott estava “tão sozinho que era um dos poucos que não via as coisas como eram ensinadas”. Isso, paradoxalmente “o levou a um estudo mais profundo e detalhado da Bíblia”, disse English. Tanto que seu professor liberal mais conhecido, junto ao congregacional C.H. Dodd – Raven dizia que Stott tinha “o recorde do maior número de versículos bíblicos memorizados corretamente na prova final”.
Sttot comparava o que o professor Dodd dizia em suas aulas sobre o Evangelho segundo João, desde o contexto helenístico, com o que o texto dizia. Segundo disse Stott, “o problema não eram tanto os argumentos liberais, mas como olhar para duzentos estudantes que me cercavam, tragando cada palavra que dizia o grande professor”. Se deu conta que “era a única pessoa que não estava de acordo com ele”. Não havia senso crítico. O mais difícil para Stott, segundo seu amigo Oliver Barclay foi a “extraordinária confiança com que assumiam especulações do momento como a óbvia verdade”.
Dodd estava no auge de sua carreira acadêmica e, apesar de não ser anglicano, Cambridge havia dado a cátedra para ele fazia sete anos. Era o primeiro professor do contexto que os anglicanos chamam “igrejas livres”, já que era congregacionista. Stott lembra que falava bem e escutava extraordinariamente bem. Era pequeno como um pássaro, agudo e lúcido, preciso e encantador. Sempre me lembro da frase de Dick Lucas, outro grande pregador anglicano de Londres que dizia que todos os hereges são encantadores. Assim falava Stott em suas observações: “falava com autoridade e segurança, qualidades que irritavam aqueles que pensávamos de sua aproximação aos evangelhos estava fundamentalmente equivocada”.
Deserto espiritual
Comparado com outros professores, Dodd tinha mais base bíblica que muitos outros e representava, em certo sentido, um retorno à ortodoxia. Mas Stott se irritava com a excessiva confiança com que ele falava. Assistiu a todas as suas aulas, diferente dos outros que somente liam seus livros, mas resistiu aos seus argumentos liberais. O professor dos evangelhos sinóticos era B. T. D. Smith, que na juventude foi um fervoroso anglicano católico e agora, havia perdido totalmente sua fé, segundo Stott. Sempre lembrava uma frase do teólogo suíço Oscar Cullman em sua Cristologia do novo testamento (1959) de que pessoas como Smith pareciam ter “um prazer quase sádico em encontrar discrepâncias” nos evangelhos.
Apenas o vice-presidente de Ridley, C. F. D. Moule começava a aula com uma oração. O teólogo observou como “o liberalismo se voltava mais e mais negativo, até chegar numa grande aridez e que estudar teologia era entrar em um deserto espiritual.” Não era apenas uma preparação para o ministério, mas havia se tornado mais do que “um exercício acadêmico filosófico para resolver problemas intelectuais”. Stott passava a maior parte do seu tempo no quarto, ou na sala de leitura da biblioteca universitária. Somente no verão lia no jardim de Trinity.
O sistema universitário britânico se baseia em estudo próprio e nas tutorias mais do que nas aulas. Os estudantes formavam grupos com três ou quatro pessoas com um tutor, que no caso de Stott foi o professor John Barnaby. Ele se lembra do professor como uma pessoa de aspecto melancólico, incapaz de produzir algum entusiasmo ou extremismo. Barnaby havia sido ordenado a pouco tempo e sucedeu a Michael Ramsey em 1952 na prestigiada cátedra de teologia Regius, além de ser ator, músico e cantor de Folk. Stott não concordava com a forma que Barnaby contrapunha a Jesus com a lei de Moises em Mateus 5.
Ânimo na luta
No meio de suas lutas teológicas, encontrou um apoio inesperado em um dos maiores especialistas em línguas antigas que havia em Cambridge. Basil Atkinson tinha em seu cuidado os manuscritos que guardava na universidade como encarregado da biblioteca. Como muitos professores de Oxford e Cambridge era excêntrico como poucos. Solteiro, vivia com sua mãe idosa. Andava de bicicleta pela cidade, como a maioria, entretanto chamava a atenção com suas roupas e chapéus pitorescos. Tinha um vozeirão e pronunciava cada palavra com tanta ênfase que muitos o imitavam.
Atksinson fazia as leituras bíblicas na igreja de São Paulo todo domingo pela manhã e algumas pessoas iam somente para escutar como ele lia. Sempre convidava estudantes para sua casa, e era de fato, o principal apoio acadêmico que o grupo bíblico universitário tinha, era disposto a aconselhar e animar qualquer um que se aproximasse. Um homem de oração, consciente de sua excentricidade. Esteve preso na cadeia por ser objetor de consciência na Primeira Guerra Mundial. Ainda que tenha animado muito, suas raridades o impediam, sem dúvida de poder simpatizar com todos os problemas de Stott.
O mais normal dos professores era o dr. Douglas Johnson, que chegaria a ser secretário dos Grupos Bíblicos Universitários por 37 anos. Todos o chamavam de DJ. Queria ter sido médico missionário, mas ficou na Inglaterra. Estava muito interessado nos estudiosos de Cambridge que haviam revisado a tradução da bíblia em 1881: Lightfoot, Westcott e Hort. Foi DJ que introduziu Stott na vida e obra de Charles Simeon, o pastor de Holy Trinity que há 150 anos atrás havia mantido a pregação evangélica em Cambridge.
O sonho de DJ era promover um movimento na universidade de volta às doutrinas da Reforma e a erudição bíblica que havia caracterizado os evangélicos no passado. DJ acreditava que foi o pietismo o motivo de tornar a teologia tão liberal. Sua influência na Formação do Comitê de Investigação Bíblica nos Grupos Bíblicos Universitários foi a chave para a formação da Comunidade Tyndale para a investigação bíblica que tinha sua base em Cambridge.
Critério próprio
O discípulo mais evidente de DJ era Oliver Barclay. Stott se reconhecia mais como seguidor de Bash na obra dos acampamentos para alunos da educação particular exclusiva, que é chamada de pública na Inglaterra. Isto era, em parte pela independência de Stott do grupo de estudantes de CICCU, presidida por Barclay e daria lugar a UCCF* e a IFES*. O mistério pelo qual Stott nunca chegou a ser membro da associação é explicado por seu amigo e biógrafo Dudley-Smith, pois foi uma promessa que fez a seu pai de que nunca se uniria a esse grupo de “fanáticos religiosos”. É verdade que seu pai seguiu pagando seus estudos, bora se recusasse a fazer teologia, mas é difícil pensar que foi por fidelidade a essa promessa, que os apoiava economicamente, mas nunca quis ser membro.
O que está claro é que Stott manteve uma independência, pela qual não só sua fé poderia sobreviver em um ambiente tão hostil, mas ele respondeu criticamente ao que seus professores lhe ensinaram. Deve-se perceber que mesmo no contexto de Ridley Hall – o centro onde se preparou para a ordenação de candidatos evangélicos – Stott criticou sua fixação no passado, a falta de interesse em exegese precisa e o desinteresse por problemas contemporâneos. Fundada em 1881 como “a resposta prática ao ritualismo e à propaganda racionalista”, teve inicialmente o apoio de Lightfoot e Westcott, até que eles o consideraram estritamente evangélico.
Fundado pelo então bispo de Durham, Handley Moule, o diretor por dezessete anos era J.P.S.R. Gibson. Nascido em Paris em 1880, filho de um pastor metodista que se tornou anglicano por sua esposa. Era tão pouco anglicano que quase nunca usava o colar clerical. Como Stott, sempre usava terno, mas com uma flor na lapela e tinha aversão ao ambiente eclesiástico, inclusive havia pensado em fugir do dia da sua ordenação anglicana. Essa aversão de Gibson ao ambiente eclesiástico acredito que influenciou até na indumentária, como se pode comprovar facilmente em suas fotos, pois raramente estava com os trajes clericais. Assim como Gibson, parecia que colocava-os quando não havia mais remédio. Algo que caracterizava também o reitor da All Souls, Earnshaw-Smith, onde Stott serviu como assistente inicialmente em seu ministério. Falaremos dele no próximo artigo.
A identidade evangélica
Este visual quase provocador era típico da geração de John Stott y Dick Lucas. Os jovens que os seguem, depois, têm uma excessiva preocupação por se conformar no meio anglicano e acadêmico. Neste sentido, ainda que tenha agora, por menos, cinquenta professores evangélicos de teologia nas universidades britânicas, acredito que não tinham a radicalidade que vemos em homens como F.F Bruce, que começou sua carreira acadêmica pouco depois.
Os modelos dessa geração eram mestres como C.F.D Moule, conhecido como Charlie, vice-presidente de Ridley até 1944. Moule combinava sua erudição brilhante do Novo Testamento com a humildade, amabilidade e encanto pessoal que Stott mostrava. A teologia evangélica nunca foi uma questão meramente intelectual. Era o caráter que dava o fruto do espírito. De que serve a teologia sem “amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fé, mansidão e domínio próprio”? (Gálatas 5.22-23).
Homens como David Watson, morto precocemente por câncer, pioneiro do movimento carismático anglicano, lembra de seus dias em Ridley como de “Desgosto pelo culto formal da capela e rejeição a tudo que considerava remotamente liberal, te davam respostas teóricas a perguntas que ninguém fez”. Antes de morrer reconheceu que sua pouca paciência poderia ser sinal de “arrogância espiritual e uma atitude excessivamente crítica’. Ele acha que faltava um pouco de humildade e ser mais positivo, mas temo que seja o oposto agora.
É difícil diferenciar no que consiste o evangelho de muitos cristãos que trabalham na academia, mas também, a maioria segue sem entender de que serve estudar teologia contemporânea. Estamos como nos dias de Stott, entre o fundamentalismo e o liberalismo. A opção segue sendo, para mim, a via que representa a teologia evangélica clássica, o que Stott chamava de “a fé cristã histórica”. Para ela, alguns de nós ainda nos sentimos orgulhosos de sermos chamados de evangélicos.
Siglas
IFES: International Fellowship of Evangelical Students. Aliança Internacional dos Estudantes Evangélicos.
UCCF: Universities and Colleges Christian Fellowship. Aliança Cristã das Universidades e Faculdades.
Publicado originalmente no site Protestante Digital. Reproduzido com autorização.
>> Conheça a série O Cristão Contemporâneo, de John Stott
Leia mais:
» John Stott, 100 anos. O quê, quando e como tudo aconteceu
O protestantismo em que fui criado ou era fundamentalista ou liberal, não havia meio termo. Stott me ensinou, sem dúvida, que havia uma "terceira via".
O arcebispo de Canterbury, Robert Runcie, acabava de se aposentar do primaz da Comunhão Anglicana, onde se tornou lord, apesar de enfrentar o governo conservador de Thatcher e o anglo-catolicismo de onde veio, por suas ideias liberais, quando embarcou em um cruzeiro no impressionante transatlântico Queen Elizabeth 2, onde conheceu um embarcador evangélico da Carolina do Norte chamado David Spence, que era amigo de John Stott – e agora seu executor literário. Runcie estudou teologia em Cambridge com Stott, sendo eleito arcebispo no lugar do colega de escola de Stott, Hugh Montefiore. Como líder da Igreja da Inglaterra, Runcie havia concedido o grau de doutor honorário a Stott, pois como disse Spence, “Ele tinha uma mente tão brilhante que foi o melhor estudante da tradição teológica liberal de Cambridge”. Runcie ainda acrescentou: “O problema é que não cria nela”.
O cristianismo evangélico sempre se distinguiu por sua ignorância da teologia moderna, mas quando algum aluno se aproxima academicamente dela, inevitavelmente a assume de maneira acrítica. Quando estudei com Stott no Instituto de Londres para o Cristianismo Contemporâneo, antes de fazer jornalismo na Universidade de Madri e Teologia na Holanda, não conhecia mais que dois tipos de evangélicos: os que não queriam saber de teologia contemporânea e os que estavam tão fascinados por ela que pronunciavam os nomes de cada autor com uma devoção apenas comparável à maneira que repetiam cada uma de suas frases como um papagaio.
O protestantismo em que fui criado era fundamentalista ou liberal, não havia meio termo. Em certo sentido, temo que as coisas não tenham mudado tanto assim. A maioria segue desprezando a teologia ou tem as posturas mais extremas possíveis, mas sempre há uma minoria mais aberta, que acaba absorvendo com suas leituras “todo o pacote” da teologia atual, até ser incapaz de não ver nenhum problema nela. Fui ensinado por Stott, sem dúvida de que havia uma “terceira via”. O problema é que – como ele viveu no final da Segunda Guerra Mundial e, eu mesmo experimentei, uma data tão tardia como o final dos anos 80. Estudar teologia como evangélico em uma universidade que não é evangélica é um caminho solitário, caso queria ser fiel à Bíblia.
Um caminho solitário
Seu amigo, o teólogo metodista Donald English lembra que Stott estava “tão sozinho que era um dos poucos que não via as coisas como eram ensinadas”. Isso, paradoxalmente “o levou a um estudo mais profundo e detalhado da Bíblia”, disse English. Tanto que seu professor liberal mais conhecido, junto ao congregacional C.H. Dodd – Raven dizia que Stott tinha “o recorde do maior número de versículos bíblicos memorizados corretamente na prova final”.
Sttot comparava o que o professor Dodd dizia em suas aulas sobre o Evangelho segundo João, desde o contexto helenístico, com o que o texto dizia. Segundo disse Stott, “o problema não eram tanto os argumentos liberais, mas como olhar para duzentos estudantes que me cercavam, tragando cada palavra que dizia o grande professor”. Se deu conta que “era a única pessoa que não estava de acordo com ele”. Não havia senso crítico. O mais difícil para Stott, segundo seu amigo Oliver Barclay foi a “extraordinária confiança com que assumiam especulações do momento como a óbvia verdade”.
Dodd estava no auge de sua carreira acadêmica e, apesar de não ser anglicano, Cambridge havia dado a cátedra para ele fazia sete anos. Era o primeiro professor do contexto que os anglicanos chamam “igrejas livres”, já que era congregacionista. Stott lembra que falava bem e escutava extraordinariamente bem. Era pequeno como um pássaro, agudo e lúcido, preciso e encantador. Sempre me lembro da frase de Dick Lucas, outro grande pregador anglicano de Londres que dizia que todos os hereges são encantadores. Assim falava Stott em suas observações: “falava com autoridade e segurança, qualidades que irritavam aqueles que pensávamos de sua aproximação aos evangelhos estava fundamentalmente equivocada”.
Deserto espiritual
Comparado com outros professores, Dodd tinha mais base bíblica que muitos outros e representava, em certo sentido, um retorno à ortodoxia. Mas Stott se irritava com a excessiva confiança com que ele falava. Assistiu a todas as suas aulas, diferente dos outros que somente liam seus livros, mas resistiu aos seus argumentos liberais. O professor dos evangelhos sinóticos era B. T. D. Smith, que na juventude foi um fervoroso anglicano católico e agora, havia perdido totalmente sua fé, segundo Stott. Sempre lembrava uma frase do teólogo suíço Oscar Cullman em sua Cristologia do novo testamento (1959) de que pessoas como Smith pareciam ter “um prazer quase sádico em encontrar discrepâncias” nos evangelhos.
Apenas o vice-presidente de Ridley, C. F. D. Moule começava a aula com uma oração. O teólogo observou como “o liberalismo se voltava mais e mais negativo, até chegar numa grande aridez e que estudar teologia era entrar em um deserto espiritual.” Não era apenas uma preparação para o ministério, mas havia se tornado mais do que “um exercício acadêmico filosófico para resolver problemas intelectuais”. Stott passava a maior parte do seu tempo no quarto, ou na sala de leitura da biblioteca universitária. Somente no verão lia no jardim de Trinity.
O sistema universitário britânico se baseia em estudo próprio e nas tutorias mais do que nas aulas. Os estudantes formavam grupos com três ou quatro pessoas com um tutor, que no caso de Stott foi o professor John Barnaby. Ele se lembra do professor como uma pessoa de aspecto melancólico, incapaz de produzir algum entusiasmo ou extremismo. Barnaby havia sido ordenado a pouco tempo e sucedeu a Michael Ramsey em 1952 na prestigiada cátedra de teologia Regius, além de ser ator, músico e cantor de Folk. Stott não concordava com a forma que Barnaby contrapunha a Jesus com a lei de Moises em Mateus 5.
Ânimo na luta
No meio de suas lutas teológicas, encontrou um apoio inesperado em um dos maiores especialistas em línguas antigas que havia em Cambridge. Basil Atkinson tinha em seu cuidado os manuscritos que guardava na universidade como encarregado da biblioteca. Como muitos professores de Oxford e Cambridge era excêntrico como poucos. Solteiro, vivia com sua mãe idosa. Andava de bicicleta pela cidade, como a maioria, entretanto chamava a atenção com suas roupas e chapéus pitorescos. Tinha um vozeirão e pronunciava cada palavra com tanta ênfase que muitos o imitavam.
Atksinson fazia as leituras bíblicas na igreja de São Paulo todo domingo pela manhã e algumas pessoas iam somente para escutar como ele lia. Sempre convidava estudantes para sua casa, e era de fato, o principal apoio acadêmico que o grupo bíblico universitário tinha, era disposto a aconselhar e animar qualquer um que se aproximasse. Um homem de oração, consciente de sua excentricidade. Esteve preso na cadeia por ser objetor de consciência na Primeira Guerra Mundial. Ainda que tenha animado muito, suas raridades o impediam, sem dúvida de poder simpatizar com todos os problemas de Stott.
O mais normal dos professores era o dr. Douglas Johnson, que chegaria a ser secretário dos Grupos Bíblicos Universitários por 37 anos. Todos o chamavam de DJ. Queria ter sido médico missionário, mas ficou na Inglaterra. Estava muito interessado nos estudiosos de Cambridge que haviam revisado a tradução da bíblia em 1881: Lightfoot, Westcott e Hort. Foi DJ que introduziu Stott na vida e obra de Charles Simeon, o pastor de Holy Trinity que há 150 anos atrás havia mantido a pregação evangélica em Cambridge.
O sonho de DJ era promover um movimento na universidade de volta às doutrinas da Reforma e a erudição bíblica que havia caracterizado os evangélicos no passado. DJ acreditava que foi o pietismo o motivo de tornar a teologia tão liberal. Sua influência na Formação do Comitê de Investigação Bíblica nos Grupos Bíblicos Universitários foi a chave para a formação da Comunidade Tyndale para a investigação bíblica que tinha sua base em Cambridge.
Critério próprio
O discípulo mais evidente de DJ era Oliver Barclay. Stott se reconhecia mais como seguidor de Bash na obra dos acampamentos para alunos da educação particular exclusiva, que é chamada de pública na Inglaterra. Isto era, em parte pela independência de Stott do grupo de estudantes de CICCU, presidida por Barclay e daria lugar a UCCF* e a IFES*. O mistério pelo qual Stott nunca chegou a ser membro da associação é explicado por seu amigo e biógrafo Dudley-Smith, pois foi uma promessa que fez a seu pai de que nunca se uniria a esse grupo de “fanáticos religiosos”. É verdade que seu pai seguiu pagando seus estudos, bora se recusasse a fazer teologia, mas é difícil pensar que foi por fidelidade a essa promessa, que os apoiava economicamente, mas nunca quis ser membro.
O que está claro é que Stott manteve uma independência, pela qual não só sua fé poderia sobreviver em um ambiente tão hostil, mas ele respondeu criticamente ao que seus professores lhe ensinaram. Deve-se perceber que mesmo no contexto de Ridley Hall – o centro onde se preparou para a ordenação de candidatos evangélicos – Stott criticou sua fixação no passado, a falta de interesse em exegese precisa e o desinteresse por problemas contemporâneos. Fundada em 1881 como “a resposta prática ao ritualismo e à propaganda racionalista”, teve inicialmente o apoio de Lightfoot e Westcott, até que eles o consideraram estritamente evangélico.
Fundado pelo então bispo de Durham, Handley Moule, o diretor por dezessete anos era J.P.S.R. Gibson. Nascido em Paris em 1880, filho de um pastor metodista que se tornou anglicano por sua esposa. Era tão pouco anglicano que quase nunca usava o colar clerical. Como Stott, sempre usava terno, mas com uma flor na lapela e tinha aversão ao ambiente eclesiástico, inclusive havia pensado em fugir do dia da sua ordenação anglicana. Essa aversão de Gibson ao ambiente eclesiástico acredito que influenciou até na indumentária, como se pode comprovar facilmente em suas fotos, pois raramente estava com os trajes clericais. Assim como Gibson, parecia que colocava-os quando não havia mais remédio. Algo que caracterizava também o reitor da All Souls, Earnshaw-Smith, onde Stott serviu como assistente inicialmente em seu ministério. Falaremos dele no próximo artigo.
A identidade evangélica
Este visual quase provocador era típico da geração de John Stott y Dick Lucas. Os jovens que os seguem, depois, têm uma excessiva preocupação por se conformar no meio anglicano e acadêmico. Neste sentido, ainda que tenha agora, por menos, cinquenta professores evangélicos de teologia nas universidades britânicas, acredito que não tinham a radicalidade que vemos em homens como F.F Bruce, que começou sua carreira acadêmica pouco depois.
Os modelos dessa geração eram mestres como C.F.D Moule, conhecido como Charlie, vice-presidente de Ridley até 1944. Moule combinava sua erudição brilhante do Novo Testamento com a humildade, amabilidade e encanto pessoal que Stott mostrava. A teologia evangélica nunca foi uma questão meramente intelectual. Era o caráter que dava o fruto do espírito. De que serve a teologia sem “amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fé, mansidão e domínio próprio”? (Gálatas 5.22-23).
Homens como David Watson, morto precocemente por câncer, pioneiro do movimento carismático anglicano, lembra de seus dias em Ridley como de “Desgosto pelo culto formal da capela e rejeição a tudo que considerava remotamente liberal, te davam respostas teóricas a perguntas que ninguém fez”. Antes de morrer reconheceu que sua pouca paciência poderia ser sinal de “arrogância espiritual e uma atitude excessivamente crítica’. Ele acha que faltava um pouco de humildade e ser mais positivo, mas temo que seja o oposto agora.
É difícil diferenciar no que consiste o evangelho de muitos cristãos que trabalham na academia, mas também, a maioria segue sem entender de que serve estudar teologia contemporânea. Estamos como nos dias de Stott, entre o fundamentalismo e o liberalismo. A opção segue sendo, para mim, a via que representa a teologia evangélica clássica, o que Stott chamava de “a fé cristã histórica”. Para ela, alguns de nós ainda nos sentimos orgulhosos de sermos chamados de evangélicos.
Siglas
IFES: International Fellowship of Evangelical Students. Aliança Internacional dos Estudantes Evangélicos.
UCCF: Universities and Colleges Christian Fellowship. Aliança Cristã das Universidades e Faculdades.
Publicado originalmente no site Protestante Digital. Reproduzido com autorização.
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» John Stott, 100 anos. O quê, quando e como tudo aconteceu
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