Opinião
- 07 de novembro de 2022
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A sabedoria grita nas ruas (e nas redes) – poderemos ouvi-la?
Por André Gomes Quirino
Na era das fake news e do radicalismo digital, das guerras culturais e da retórica da destruição, os Provérbios da Escritura permanecem eloquentes. A sabedoria grita nas ruas, e publica nas redes: no ruído dos posts ela convida à inteligência; aos habituados à injustiça, oferece transformação.
Tudo que é dito por não poder ser contido revela já por isso imprudência: certamente não se trata de sabedoria, mas de insensatez (12.23). Em particular, quem não resiste a ridicularizar o outro apenas prova não ser sábio (11.12). Pior, quem assim age perde a plenitude da condição de humano: é mais perigoso encontrar um tolo do que uma ursa que teve filhotes roubados (17.12). Sua violência pode parecer força, mas seria loucura imitá-lo: ele se opõe ao que nos mantém vivos, ao que torna o mundo real – à misericórdia do Criador, de quem se faz inimigo, e com o qual só se demonstra amizade quando se anda em justiça (3.31-32).
Não que o insensato não pense ser justa a sua causa; mas, precisamente, ele se deixa convencer pelo que as coisas lhe parecem, pelas confirmações que seu grupo ou seus ídolos lhe fazem – ao passo que a marca da pessoa sábia é não confiar em autojustificações, é estar genuinamente aberta à correção e ao conselho (12.15). Tudo o que o tolo produz é para si, só o que ele produz é destruição: ele induz a sua própria morte; enquanto isso, o justo gera vida, e a produz para os outros: suas palavras dão sustento a muitos (10.21).
Sem que o saibam, é contra si que os maus armam tocaia (1.18). Pois a maldade que tanto planejam passa a dominá-los, ela os amarra e os transforma em reféns (5.22). Eles tropeçam, falham em seus intentos, mas permanecem incapazes de enxergar o que os fere; estão no escuro, enquanto o caminho da justiça é mais e mais iluminador (4.18). O Criador, que tudo conhece desde o íntimo, tem dentro de nós uma lâmpada: quem exercita o espírito, sendo guiado pela sabedoria, é clareado por Deus (20.27).
Conhece Ele o íntimo humano porque conhece, antes ainda, o íntimo do mundo: diante de Deus, Destruição e Sepultura – cúmulo do insondável, do irreversível – estão abertas (15.11). O espírito é parte da criação, responde ao mesmo Criador; por isso os males e os bens de um coincidem aos males e aos bens da outra. Aquilo que os que vivem em impiedade esperam, aquilo de que dependem para ver realizados seus planos, só se pode concretizar como ira; ao invés disso, o que a sabedoria recomenda é caminhar em justiça, e então ser livre para desejar: a vontade de quem vive assim concretiza-se inevitavelmente como bem (11.23).
Negar este caminho é voluntariamente agredir-se, é optar pela autodestruição: odiar a sabedoria é o mesmo que amar a morte (8.36). O amor à morte nos é possível porque lhe somos próximos – com ela partilhamos, por exemplo, a insaciedade: como o Sheol e a Destruição, também nossos olhos não se satisfazem (27.20), querem tudo abarcar, homogeneizar, possuir. Mantidos tolos, teremos olhos que não se detêm, que vagueiam indefinidamente pela terra; a sabedoria é o ponto de referência possível, um apoio para os olhos descansarem (17.24).
Descanso que por sinal falta aos ímpios, dependentes da violência e do mal como de bebida e comida: eles não dormem enquanto não geram destruição (4.16-17). Obsedar a mente é uma característica do mal, que domina quem por ele se atrai e o afunda em sua vertigem; o resgate desta queda, o encontro revigorante com a fidelidade e o amor, consiste em planejar o bem (14.22). A todos que deslizamos imperceptivelmente para a morte, Deus oferece a intervenção redentora, o caminho de vida que conduz para cima (15.24). Quem o recusa escolhe a insensatez, e, embora hoje se reconforte na própria injustiça, se opõe assim ao Senhor da vida, preparando-se para repousar na companhia dos mortos (21.16). Fonte de vida é o temor do Senhor (14.27): é a honra sincera – que não é apelo oportunista – ao Criador que com amor criou, e ainda sustenta, o universo.
Quem recebe genuinamente a redenção vê ser ampliado o raio das coisas com as quais se importa. Foi resgatado do mal, de que não se apercebia, por graça daquEle que tudo enxerga; por isso sabe que vale não o que vemos – prejudicado como isto é por preconceitos e por autojustificação –, mas o que Deus vê. Não só faz o bem a quem lhe pede, mas imita o que Deus fez: toma iniciativa e vai ao desvalido. Muitos são levados à morte, caminham trêmulos para a matança – seja por bala, por fome ou, como todos um dia, por insensatez –, e não obteremos desculpa meramente ao dizer “Não sabíamos o que estava acontecendo!”: Deus, que pesa cada coração, os vê, e quem a isto deve a vida não pode senão querer socorrê-los, libertá-los (24.11-12).
O contrário está no âmbito do que Deus odeia: “mãos que derramam sangue inocente, coração que traça planos perversos, pés que se apressam para fazer o mal” – ao que se associam “olhos altivos, língua mentirosa, a testemunha falsa que espalha mentiras e aquele que provoca discórdia entre irmãos” (6.16-19). Desde o trato cotidiano com o próximo até as decisões que impactam a vida comum, coloca-se ante nós a escolha entre agir em consonância à Sabedoria, com que Deus sustenta o mundo, ou contradizer-lhe, como aliados da morte e escarnecedores do trabalho de Deus. Às “balanças desonestas”, cobranças indevidas que perpetuam injustiças, não é indiferente o Criador: Ele as abomina (11.1).
Desonrar a boa-fé alheia, aderir à trapaça, é, também isto, ofender o Deus sábio: “Não planeje o mal contra o seu próximo que confiantemente mora perto de você” (3.29). A razão é que o engano é uma tentativa de parecer o que não se é, de obter o que não lhe cabe, de sustentar enfim o insustentável. Medida de desespero do insensato, a mentira é efêmera, está destinada a perecer; já os lábios verdadeiros são eco da Sabedoria que sustém o mundo: a eles se promete que permanecerão para sempre (12.19). Não só a mentira, também o ódio tem eficácia curta: ele gera separação, produz dissensões momentâneas; mas o amor tem o efeito de unir o que se separa, de neutralizar a discórdia, de “cobrir todos os pecados” (10.12).
Ouve a Sabedoria quem escolhe o amor ao invés do ódio; quem se nega a colaborar com disseminadores de confusão; quem se põe ao lado dos simples e não apoia a violência do forte. A lição final da Sabedoria, descrição mesma do modo como Deus governa o mundo, não é outra – será que a ouviremos?: “o Senhor zomba dos zombadores, todavia concede graça aos humildes” (3.34).
- André Gomes Quirino é mestre em filosofia pela USP, graduando em teologia pelo Mackenzie e membro da Catedral Evangélica de São Paulo.
A SABEDORIA GRITA NAS RUAS – QUEM VAI OUVIR? | REVISTA ULTIMATO
Ser sábio é ser mais semelhante a Cristo e manter-se nele. Quem escolhe permanecer em Jesus – a Videira – tem garantida vida abundante que dá muito fruto. E o fruto é amplo [para todos]: “Pedimos a Deus que lhes conceda pleno conhecimento da sua vontade e também sabedoria e entendimento espiritual. Então vocês viverão de modo a sempre honrar e agradar o Senhor, dando todo tipo de bom fruto e aprendendo a conhecer a Deus cada vez mais” (Cl 1.9-10). A matéria de capa é um convite para que abracemos a Sabedoria.
É disso que trata a matéria de capa da edição de 398 da revista Ultimato. Para assinar, clique aqui.
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