Opinião
- 08 de novembro de 2016
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A roda do tempo
Estávamos apoiados numa espécie de parapeito. Ao longe, um belo vale nevado reluzia, branquíssimo, à luz do frio sol que o iluminava. Mas ninguém via o branco, o brilho ou a luz. Após séculos e séculos de obscuridade, vivíamos, enfim, a época do ápice do conhecimento e da tecnologia. As mentes privilegiadas não tinham mais qualquer desejo, necessidade, medo ou anseio por algo (num passado remoto, dir-se-ia, “alguém”) que lhes fosse superior, maior, sublime ou transcendente. Não! Despontávamos como seres inteiramente livres de superstições ou crendices que aprisionam a verdadeira natureza racional humana.
Éramos dois, mas não se tocavam nossas mãos. Os olhares só olhavam para longe, fixados na racionalidade de projetos, metas e resultados. O enganoso brilho do sucesso nos aprisionava. Não havia tempo, nem mesmo necessidade, de envolvimentos sentimentais, exageros emotivos, preocupações supérfluas chamadas, tempos atrás, “o outro”. A máxima da sobrevivência do mais forte, do mais capaz, do mais habilitado e mais hábil, há muitíssimo tempo já se impusera. Ética e estética já não eram valores a serem perseguidos nessa lógica da eficiência, luxo inconcebível nessa gloriosa era das consequentes disposições preestabelecidas da máxima eficácia e do resultado. Não havia lugar para o fraco, para o desapetrechado, para o carente ou necessitado, mero rol de espécies extintas muito tempo atrás. Lembrança vergonhosa de uma época em que os humanos eram embaraçosos seres, melancólicos, melodramáticos. Tolos, sentimentais.
Habitavam nossos ouvidos os ruídos secos, metálicos, concretos, o som das máquinas a produzir o progresso. Impediam-nos de ouvir o canto dos pássaros que, lá embaixo no branco vale iluminado, cantavam em algazarra alegre, apenas por estarem vivos. Mas ninguém escutava os sons da vida, ninguém via o branco, o brilho ou a luz. O mundo era cinza, sem cores para distrair a atenção de tão bem preparados e obstinados habitantes racionais. Parados no parapeito, somente porque havia sido cientificamente comprovado que o organismo biológico necessita de rápidos intervalos entre seus processos de produção da riqueza, sabíamos que, a bem da produtividade, não se deveria permitir devaneios, leituras ou imaginação.
Imaginação?! De jeito nenhum! Estudos provavam que imaginação liberta mentes. Faz ver, ver o branco, o brilho, a luz. Faz ouvir, ouvir os sons do viver. Assim, sem imaginação, apoiados naquele parapeito, nada víamos, nada sentíamos, não nos tocávamos, nem olhávamos um para o outro. Enfim, a humanidade estava liberta das distrações, superstições e crendices contraproducentes de outrora! Em nosso mundo futuro não existia lugar para o divino, o divino era uma tola invenção distrativa do passado. O digital sinal sonoro soava, anunciando o fim do descanso. Prontos, iniciávamos caminhada para dentro do moderníssimo e equipadíssimo ambiente produtivo.
Todavia, um vento norte soprou suave (eis que o vento sopra onde quer), movendo as pontas dos cabelos dela e posicionando-as em perfeito ângulo de incidência de um raio frio, do frio sol, daquela branca manhã. O raio iluminou aquelas pontas de cabelo com um amarelo dourado que subjugou o cinza dominante da paisagem. Uma nova rajada do vento frio, num arrepio, passou suave por minha coluna. Arrepio outro foi perceber as novas cores refletidas na luz fria e branca daquela exuberante manhã. Por menos de um segundo, todas as certezas cinzas da razão perderam seu sentido. Éramos dois, mas se tocaram, agora, nossas mãos.
No aconchego dessa ligação, racionalidade, projetos, metas e resultados esvaneceram-se, opacos. Distraídos dos objetivos e alvos da produção, ouvimos o som que vinha do vale. O canto dos passarinhos ecoou em nosso interior (algo que antigamente era chamado “alma”). E a melodia daquelas pequenas criaturas, como um laser vermelho que a tudo corta, cortou as entranhas adormecidas dos nossos corações. Música e vida explodiram em nossos ouvidos. O frescor do cheiro de eucalipto, saudade estranha de algo jamais experimentado, entrou por nossas narinas, trazendo uma recordação ancestral de um tempo remotíssimo, quando o mundo era mais colorido, mais diverso, mais solidário.
O vento soprou, a luz brilhou, a mão tocou, o pássaro cantou, o aroma brotou e o coração, dentro do peito, retumbou. O mundo voltou a ter cor e o outro, a estar ao alcance da mão. Mostrou-se o bem, o belo, o bom. A lógica calorosa da criação, outra vez, revelou a estética do Superior, do Maior, do Sublime, do Transcendente Criador, o grande Alguém (ainda que, naquele futuro distante, quisessem dele fazer mero conceito, mera distração, mero “algo”). Não importa quantas vezes gire a roda do tempo, quantas eras passem pela existência humana. A beleza que nasce do coração do Eterno salvará o mundo. Pois os céus proclamam a sua glória e o firmamento anuncia as obras de suas poderosas mãos...
Cayo César Santos, autor de Século I - O Resgate, é casado com Jane e pai de Lucas, Felipe e Rafael. É presbítero da Igreja Presbiteriana do Planalto e membro da diretoria do Centro Cristão de Estudos, em Brasília, DF. É analista e assessor jurídico no Ministério Público Federal.
Leia mais
- Imaginação e autenticidade: C. S. Lewis e as ferramentas da fantasia
- Experimente improvisar: com o que podemos comparar o Reino de Deus?
- Meta-História e a imaginação teológica
Leituras Diárias das Crônicas de Nárnia – Um Ano com Aslam
Éramos dois, mas não se tocavam nossas mãos. Os olhares só olhavam para longe, fixados na racionalidade de projetos, metas e resultados. O enganoso brilho do sucesso nos aprisionava. Não havia tempo, nem mesmo necessidade, de envolvimentos sentimentais, exageros emotivos, preocupações supérfluas chamadas, tempos atrás, “o outro”. A máxima da sobrevivência do mais forte, do mais capaz, do mais habilitado e mais hábil, há muitíssimo tempo já se impusera. Ética e estética já não eram valores a serem perseguidos nessa lógica da eficiência, luxo inconcebível nessa gloriosa era das consequentes disposições preestabelecidas da máxima eficácia e do resultado. Não havia lugar para o fraco, para o desapetrechado, para o carente ou necessitado, mero rol de espécies extintas muito tempo atrás. Lembrança vergonhosa de uma época em que os humanos eram embaraçosos seres, melancólicos, melodramáticos. Tolos, sentimentais.
Habitavam nossos ouvidos os ruídos secos, metálicos, concretos, o som das máquinas a produzir o progresso. Impediam-nos de ouvir o canto dos pássaros que, lá embaixo no branco vale iluminado, cantavam em algazarra alegre, apenas por estarem vivos. Mas ninguém escutava os sons da vida, ninguém via o branco, o brilho ou a luz. O mundo era cinza, sem cores para distrair a atenção de tão bem preparados e obstinados habitantes racionais. Parados no parapeito, somente porque havia sido cientificamente comprovado que o organismo biológico necessita de rápidos intervalos entre seus processos de produção da riqueza, sabíamos que, a bem da produtividade, não se deveria permitir devaneios, leituras ou imaginação.
Imaginação?! De jeito nenhum! Estudos provavam que imaginação liberta mentes. Faz ver, ver o branco, o brilho, a luz. Faz ouvir, ouvir os sons do viver. Assim, sem imaginação, apoiados naquele parapeito, nada víamos, nada sentíamos, não nos tocávamos, nem olhávamos um para o outro. Enfim, a humanidade estava liberta das distrações, superstições e crendices contraproducentes de outrora! Em nosso mundo futuro não existia lugar para o divino, o divino era uma tola invenção distrativa do passado. O digital sinal sonoro soava, anunciando o fim do descanso. Prontos, iniciávamos caminhada para dentro do moderníssimo e equipadíssimo ambiente produtivo.
Todavia, um vento norte soprou suave (eis que o vento sopra onde quer), movendo as pontas dos cabelos dela e posicionando-as em perfeito ângulo de incidência de um raio frio, do frio sol, daquela branca manhã. O raio iluminou aquelas pontas de cabelo com um amarelo dourado que subjugou o cinza dominante da paisagem. Uma nova rajada do vento frio, num arrepio, passou suave por minha coluna. Arrepio outro foi perceber as novas cores refletidas na luz fria e branca daquela exuberante manhã. Por menos de um segundo, todas as certezas cinzas da razão perderam seu sentido. Éramos dois, mas se tocaram, agora, nossas mãos.
No aconchego dessa ligação, racionalidade, projetos, metas e resultados esvaneceram-se, opacos. Distraídos dos objetivos e alvos da produção, ouvimos o som que vinha do vale. O canto dos passarinhos ecoou em nosso interior (algo que antigamente era chamado “alma”). E a melodia daquelas pequenas criaturas, como um laser vermelho que a tudo corta, cortou as entranhas adormecidas dos nossos corações. Música e vida explodiram em nossos ouvidos. O frescor do cheiro de eucalipto, saudade estranha de algo jamais experimentado, entrou por nossas narinas, trazendo uma recordação ancestral de um tempo remotíssimo, quando o mundo era mais colorido, mais diverso, mais solidário.
O vento soprou, a luz brilhou, a mão tocou, o pássaro cantou, o aroma brotou e o coração, dentro do peito, retumbou. O mundo voltou a ter cor e o outro, a estar ao alcance da mão. Mostrou-se o bem, o belo, o bom. A lógica calorosa da criação, outra vez, revelou a estética do Superior, do Maior, do Sublime, do Transcendente Criador, o grande Alguém (ainda que, naquele futuro distante, quisessem dele fazer mero conceito, mera distração, mero “algo”). Não importa quantas vezes gire a roda do tempo, quantas eras passem pela existência humana. A beleza que nasce do coração do Eterno salvará o mundo. Pois os céus proclamam a sua glória e o firmamento anuncia as obras de suas poderosas mãos...
Cayo César Santos, autor de Século I - O Resgate, é casado com Jane e pai de Lucas, Felipe e Rafael. É presbítero da Igreja Presbiteriana do Planalto e membro da diretoria do Centro Cristão de Estudos, em Brasília, DF. É analista e assessor jurídico no Ministério Público Federal.
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Ricardo Barbosa