Opinião
- 17 de abril de 2022
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A paz seja com vocês!
Por Ziel Machado
Vivemos um período de muitas perdas. Algumas dessas perdas são mais fáceis de identificar; outras, de tão profundas, nem sequer nos demos conta. Estas ainda não se transformaram em lágrimas para que possam ser desaguadas. Permanecem ocultas, mas ativas. Algo dentro de nós indica que as coisas não estão como deveriam estar. A partir de conversas com várias pessoas, vou descobrindo os diferentes nomes que têm sido dados a esse sentimento de inadequação: medo, angústia, apreensão. Tenho ouvido pessoas que se sentem ameaçadas, acuadas, abatidas, presas, trancadas por fora e por dentro.
Em meio a essa situação emocional, algumas pessoas vão retornando às suas atividades. Nas igrejas, gradualmente, vemos um retorno cuidadoso aos cultos presenciais, o que nos traz muita alegria pelas possibilidades dos reencontros, e, ao mesmo tempo, vamos descobrindo o tamanho do desafio que esse retorno significa para muitos. Tenho a impressão de que será necessário elaborar uma “teologia pastoral para o retorno”, uma leitura bíblica que seja de companhia, uma “liturgia do regresso”.
A realidade pré-pandemia não exigia de nós muitas explicações para justificar o nosso hábito de frequentarmos as atividades presenciais no templo. Em termos comparativos, os evangélicos têm uma frequência superior às atividades da igreja em relação a outras comunidades de fé. Faz parte de nossa tradição a alegria de “irmos à casa do Senhor”. Hoje se faz necessário explicar as razões que fundamentam nossa participação nos encontros presenciais. Temos o desafio de diferenciar o que é cuidado, precaução, e o que é ansiedade e temor.
Esse retorno está levantando novas questões e apresentando novos desafios. Será necessário um cuidado especial com todo esse processo, pois ele está marcado por outras questões com potencial para desmobilizar a comunidade, desafios situacionais que fazem com que as pessoas repensem seus hábitos de frequência aos cultos e, até mesmo, de filiação religiosa.
No Evangelho de João (20.19-23), vemos uma situação muito semelhante à que estamos vivendo. Após a narrativa dos importantes eventos daquela manhã de domingo, o apóstolo João descreve o que se passou no entardecer daquele dia tão especial. Os discípulos estavam trancados, escondidos, com medo dos líderes judeus. Não sabemos quantos estavam na sala, mas o texto nos permite dizer que Judas e Tomé não estavam presentes. Jesus surge no meio dos discípulos e declara: “Paz seja com vocês!” (Jo 20.19).
É possível imaginar que não somente as portas estavam fechadas; havia medo alimentado por um combo de sentimentos que mantinham o coração dos discípulos também fechados. Considerando o contexto, é possível identificar outros sentimentos presentes naquela situação, tais como frustração, abatimento, fragilidade, tristeza, apreensão. Os discípulos estavam fora do alcance dos líderes judeus, mas não do Cristo ressurreto. Ele entra nesse espaço com sua saudação de paz e muda a realidade. Após o susto vem a surpresa e, em seguida, a alegria.
A presença de Jesus altera o estado de humor dos discípulos: “Eles se encheram de alegria quando viram o Senhor”. A realidade externa não havia mudado, continuava hostil e ameaçadora, mas naquela sala e naqueles corações a realidade era outra. Jesus lhes mostra suas feridas, aquilo que a realidade externa havia produzido em seu corpo. Ali, diante deles, estava o Cristo ressurreto, marcado pela realidade da dor, mas não destruído por ela, e suas cicatrizes agora davam testemunho de sua definitiva vitória. Por que continuar temendo o que os ameaçava do lado de fora? Que poder as ameaças realmente têm de ter a palavra final? Essa visita surpreendente de Jesus Cristo inverteu muito mais do que um estado emocional. Sua presença alterou, de forma definitiva, uma perspectiva da história, recolocou os “pingos nos is”.
A experiência dos discípulos é análoga à nossa situação nestes tempos de pandemia. Também nós nos trancamos como forma de nos proteger de uma ameaça externa. A descoberta agora é que não apenas nos isolamos fisicamente; nosso coração também foi afetado por esse isolamento, nossas emoções foram alteradas e estamos lutando com vários sentimentos sob a descrição geral de medo.
Assim como era para os discípulos, o nosso entorno continua adverso, com o potencial de ferir, com a possibilidade de matar. É necessário que o Espírito de Cristo, o Espírito Santo, nos visite, para que a alegria e o poder da ressurreição nos façam rever nossa condição e a situação de nosso coração. Sua presença entre nós nos fará reconsiderar a realidade que se encontra por trás das portas fechadas e as realidades trancadas de nosso coração. O nosso entorno, que permanecerá hostil e ameaçador, ainda que mudem a forma e a intensidade da ameaça, não mais será o “dono da situação”. Não seremos mais pautados por ele, vivendo de forma a fazer eco às suas ameaças, pois somos acolhidos e abrigados sob a mesma paz com a qual Jesus saudou os discípulos.
Mas que paz é essa? O mesmo evangelho faz declarações importantes que a descrevem. Nos capítulos 14 e 16 temos algumas revelações: ela é um presente de Deus, é plena e nos protege do medo (14.27); é uma paz que só se encontra em Cristo (16.33); é capaz de produzir uma alegria que nada nem ninguém podem retirar (16.22). Assim como aconteceu com os discípulos, essa paz muda, por completo, nossa disposição emocional, do medo à alegria. Como temos cantado muitas vezes, “não olho as circunstâncias, olho o seu amor. Não me guio por vistas, alegre estou”. E, ainda que levemos em conta as circunstâncias, elas não mais nos pautam. A paz em nossa alma é fruto da presença do Senhor ressurreto.
O texto de João 20.21 relata que o Senhor, uma vez mais, declara aos discípulos: “A paz do Senhor seja com vocês”. Com essa segunda declaração, o Senhor inaugura um outro movimento de mudança. Se na primeira vez ele altera a realidade emocional do grupo de discípulos, agora ele vai mudar a atitude diante do mundo hostil e o lugar de permanência dos discípulos. Com base na mesma paz, ele diz: “Assim como o Pai me enviou, eu os envio” (v. 21). A paz de Cristo não nos motiva a uma fuga da história; ao contrário, ela nos lança no coração da realidade hostil, ela muda nossa atitude na história e permite um reencontro vocacional, com o chamado para fazer a vontade de Deus, seja qual for a circunstância. Somos chamados a ser a presença do Cristo ressurreto em um mundo hostil, não mais temendo essa realidade ameaçadora, mas seguros do poder da ressurreição que encontramos nele. Somos enviados para continuar a proclamar o evangelho do reino e fazer as obras desse reino.
A paz seja com vocês! Foi com essa declaração que Jesus lidou com o medo dos discípulos. Foi com essa declaração que os enviou ao mundo. É com essa mesma paz que o Senhor entra em nossos lugares trancados e nos assegura a sua paz. E com essa mesma paz ele nos envia para seguir na proclamação de seu evangelho e enfrentar a hostilidade do mundo no qual vivemos movidos, inspirados e afiançados na paz do Senhor. Essa paz nos assegura uma nova presença (o Cristo ressurreto), uma nova capacitação (o Espírito Santo) e uma nova perspectiva para lidar com este mundo hostil (a vitória sobre a morte).
A paz seja com vocês!
Imagem: A Aparição de Cristo aos Discípulos, Duccio di Buoninsegna, 1308-1311
Originalmente publicada na edição 394 (março/abril de 2022) de Ultimato.
Originalmente publicada na edição 394 (março/abril de 2022) de Ultimato.
- Ziel Machado é pastor da Igreja Metodista Livre da Saúde, em São Paulo, e vice-reitor no Seminário Servo de Cristo. Por mais de trinta anos serviu na ABUB e na IFES em diferentes funções.
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