Opinião
- 04 de novembro de 2024
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A liturgia da certeza
Uma abordagem literária do Salmo 98
Por Délio Porto Fassoni
Uma liturgia se faz necessária para expressar a certeza do que foi e a certeza do que virá. Uma que evidencie a força do passado e do futuro a moldar o presente. A esta liturgia acrescente-se um cântico novo, que celebre em novidade de letra e de música aquilo que há tanto tempo se conhece sobre a vitória de Deus. Que seja uma voz acima das vozes do mundo a anunciar que “Deus fez notória a sua salvação”. Uma liturgia que abra os olhos dos acomodados e tranquilize os que se prepararam para dizer “amém”.
O Salmo 98, abordado de uma perspectiva literária, revela-se uma peça litúrgica bem adornada e engenhosa. Está apresentado abaixo em forma de poema de duas estrofes (versão NAA). O personagem que fala no texto (o eu lírico) lembra-nos o maestro de uma ópera, a coordenar cantores e músicos e a associá-los a figurantes que representam a comunidade, a natureza, a história, as nações e as expectativas futuras. Esses elementos, tão diversos entre si, surgem habilmente orquestrados num texto poético curto. Tudo nesta poesia responde, como expressão litúrgica, ao sentimento de pertencimento a um Senhor. Tudo é exaltação da parte do povo e da terra, enquanto ficam ocultas as aspirações individuais e as aflições pessoais.
Salmo 98 – A justiça de Deus
Salmo.
1 Cantem ao Senhor um cântico novo,
porque ele tem feito maravilhas;
a sua mão direita e o seu braço santo
lhe alcançaram a vitória.
2 O Senhor fez notória a sua salvação;
manifestou a sua justiça diante dos olhos das nações.
3 Lembrou-se da sua misericórdia
e da sua fidelidade para com a casa de Israel;
todos os confins da terra
viram a salvação do nosso Deus.
4 Celebrem com júbilo ao Senhor,
todos os moradores da terra;
gritem de alegria, exultem e cantem louvores.
5 Cantem com harpa louvores ao Senhor,
com harpa e voz de canto;
6 com trombetas e ao som de buzinas,
exultem diante do Senhor, que é rei.
7 Ruja o mar e a sua plenitude,
o mundo e os que nele habitam.
8 Os rios batam palmas,
e juntos cantem de júbilo os montes,
9 na presença do Senhor,
porque ele vem julgar a terra;
julgará o mundo com justiça
e os povos, com retidão.
Além da teatralidade colocada a serviço da mensagem, há um significativo arranjo numérico dos elementos textuais. São sete verbos no imperativo: cantar, celebrar, gritar, exultar, tocar (harpa), ressoar (rugir) e aplaudir. São sete formas diferentes de louvar: canto coral, grito, harpa, trombeta, o barulho do mar, o som dos rios e a voz dos montes. São sete ações de Deus: fazer, alcançar, revelar, manifestar, lembrar, vir e julgar. São sete resultados: maravilhas, vitória, salvação, vindicação (justiça), benignidade (misericórdia), firmeza (fidelidade), correção (justiça) e retidão (equidade). O conjunto expressa perfeição.
Para compreender a mensagem é necessário atentar para o modo como o tempo está fluindo nas imagens poéticas. Isso é evidenciado na divisão das estrofes. Na primeira, o tempo oscila entre o presente e o passado e, na segunda estrofe, entre o presente e o futuro. Tal variação orienta a busca do significado.
Um cântico novo é a primeira convocação – uma canção fresca, recém composta – destinada a anunciar em caráter de boas novas as maravilhas do passado. Deus é comparado ao heroi guerreiro de braços fortes que mudou o curso de uma batalha. Seu feito é notório e evidente, gravado na memória nacional. Os olhos que viram aquilo não se enganaram. Até as nações envolvidas perceberam que o feito estava além do ordinário. Mas o acontecimento necessita de uma roupa nova, de um brilho novo, da expressão em uma canção inédita. Um cântico que resgate do passado as coisas seguras e confiáveis que podem moldar o presente. O eu lírico convoca a todos a olhar o passado e a celebrar a salvação trazida por Deus, a fim de encontrarem significado e relevância no presente. Pede que recordem a justiça, a misericórdia e a estabilidade das promessas divinas, a fim de que esses valores alimentem a sua autocompreensão como povo de Deus frente aos outros povos. O povo precisa lembrar que é a representação e o guardião da memória de um feito notável.
O louvor prossegue na segunda estrofe. A ópera avança para a apoteose trazendo gritos, canto coral e som instrumental. A atmosfera é ensurdecedora. A natureza esmera-se em completar a sonorização do espetáculo. As trombetas anunciam a chegada iminente do Rei, o Deus triunfante. Será o fim (para alguns) e o começo de uma fase para a alegria dos que são oprimidos. Nesta estrofe o eu lírico convida a celebrar o futuro por antecipação. A garantia de que a vida será melhor é afirmada num cântico novo.
Esta é uma liturgia da certeza: recorda a certeza do que Deus fez no passado e celebra o que Deus certamente fará no futuro. É uma liturgia zelosa em ajudar os acomodados, para que sacudam o seu torpor. Igualmente atenciosa para com os que aguardam a justiça como se dela tivessem fome e sede, os que se prepararam para dizer amém diante do alívio que se aproxima.
É uma bela poesia, na construção, na criatividade, na concisão e na generosidade das variações. O modo como o tempo foi posto a fluir, bem como o arranjo das classes de sete elementos, revelam o anseio de louvar com beleza literária.
A mensagem deste salmo nos remete ao triunfo de Deus celebrado na Ceia do Senhor. O rito deste sacramento é uma encenação em linguagem conotativa em suas declarações e em sua teatralidade litúrgica (ainda que não possua caráter poético). A vitória de Cristo é recordada e anunciada aos participantes ao se apropriarem dos elementos simbólicos. Os três tempos aparecem na Ceia. Passado: “Façam isso em memória de mim”; como gratidão pela entrega de Cristo. Presente: “anunciais a morte do Senhor”; por causa da certeza de que algo novo surgiu e precisa ser anunciado. Futuro: “Até que ele venha”; pois os dias vindouros revelarão toda a dimensão do amor de Deus. Deus fez notória a sua salvação e nada na vida comunitária da igreja transmite mais segurança e estabilidade do que a vitória de Cristo anunciada pela Ceia.
Desfrute da liturgia da certeza.
REVISTA ULTIMATO – BÍBLIA: REVELAÇÃO E LITERATURA
Ultimato mostra, entre outras coisas, a riqueza das Escrituras quando lidas como literatura, sem diminuir o seu caráter sagrado — a sua inspiração divina.
E reafirmamos o que publicamos em outra edição recente: A Bíblia Ainda Fala — “As Escrituras contêm a narrativa que dá sentido, esclarece e comunica a soberania e sabedoria de Deus. A lealdade ao que está exposto no Livro deve ser a marca dos cristãos”.
É disso que trata a matéria de capa da edição 410 da revista Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» Um Ano Com os Salmos - Meditações diárias, Elben César
» Salmos Favoritos, John Stott
» Salmos – para buscar a Deus e encontrá-lo, edição 351 de Ultimato
Por Délio Porto Fassoni
Uma liturgia se faz necessária para expressar a certeza do que foi e a certeza do que virá. Uma que evidencie a força do passado e do futuro a moldar o presente. A esta liturgia acrescente-se um cântico novo, que celebre em novidade de letra e de música aquilo que há tanto tempo se conhece sobre a vitória de Deus. Que seja uma voz acima das vozes do mundo a anunciar que “Deus fez notória a sua salvação”. Uma liturgia que abra os olhos dos acomodados e tranquilize os que se prepararam para dizer “amém”.
O Salmo 98, abordado de uma perspectiva literária, revela-se uma peça litúrgica bem adornada e engenhosa. Está apresentado abaixo em forma de poema de duas estrofes (versão NAA). O personagem que fala no texto (o eu lírico) lembra-nos o maestro de uma ópera, a coordenar cantores e músicos e a associá-los a figurantes que representam a comunidade, a natureza, a história, as nações e as expectativas futuras. Esses elementos, tão diversos entre si, surgem habilmente orquestrados num texto poético curto. Tudo nesta poesia responde, como expressão litúrgica, ao sentimento de pertencimento a um Senhor. Tudo é exaltação da parte do povo e da terra, enquanto ficam ocultas as aspirações individuais e as aflições pessoais.
Salmo 98 – A justiça de Deus
Salmo.
1 Cantem ao Senhor um cântico novo,
porque ele tem feito maravilhas;
a sua mão direita e o seu braço santo
lhe alcançaram a vitória.
2 O Senhor fez notória a sua salvação;
manifestou a sua justiça diante dos olhos das nações.
3 Lembrou-se da sua misericórdia
e da sua fidelidade para com a casa de Israel;
todos os confins da terra
viram a salvação do nosso Deus.
4 Celebrem com júbilo ao Senhor,
todos os moradores da terra;
gritem de alegria, exultem e cantem louvores.
5 Cantem com harpa louvores ao Senhor,
com harpa e voz de canto;
6 com trombetas e ao som de buzinas,
exultem diante do Senhor, que é rei.
7 Ruja o mar e a sua plenitude,
o mundo e os que nele habitam.
8 Os rios batam palmas,
e juntos cantem de júbilo os montes,
9 na presença do Senhor,
porque ele vem julgar a terra;
julgará o mundo com justiça
e os povos, com retidão.
Além da teatralidade colocada a serviço da mensagem, há um significativo arranjo numérico dos elementos textuais. São sete verbos no imperativo: cantar, celebrar, gritar, exultar, tocar (harpa), ressoar (rugir) e aplaudir. São sete formas diferentes de louvar: canto coral, grito, harpa, trombeta, o barulho do mar, o som dos rios e a voz dos montes. São sete ações de Deus: fazer, alcançar, revelar, manifestar, lembrar, vir e julgar. São sete resultados: maravilhas, vitória, salvação, vindicação (justiça), benignidade (misericórdia), firmeza (fidelidade), correção (justiça) e retidão (equidade). O conjunto expressa perfeição.
Para compreender a mensagem é necessário atentar para o modo como o tempo está fluindo nas imagens poéticas. Isso é evidenciado na divisão das estrofes. Na primeira, o tempo oscila entre o presente e o passado e, na segunda estrofe, entre o presente e o futuro. Tal variação orienta a busca do significado.
Um cântico novo é a primeira convocação – uma canção fresca, recém composta – destinada a anunciar em caráter de boas novas as maravilhas do passado. Deus é comparado ao heroi guerreiro de braços fortes que mudou o curso de uma batalha. Seu feito é notório e evidente, gravado na memória nacional. Os olhos que viram aquilo não se enganaram. Até as nações envolvidas perceberam que o feito estava além do ordinário. Mas o acontecimento necessita de uma roupa nova, de um brilho novo, da expressão em uma canção inédita. Um cântico que resgate do passado as coisas seguras e confiáveis que podem moldar o presente. O eu lírico convoca a todos a olhar o passado e a celebrar a salvação trazida por Deus, a fim de encontrarem significado e relevância no presente. Pede que recordem a justiça, a misericórdia e a estabilidade das promessas divinas, a fim de que esses valores alimentem a sua autocompreensão como povo de Deus frente aos outros povos. O povo precisa lembrar que é a representação e o guardião da memória de um feito notável.
O louvor prossegue na segunda estrofe. A ópera avança para a apoteose trazendo gritos, canto coral e som instrumental. A atmosfera é ensurdecedora. A natureza esmera-se em completar a sonorização do espetáculo. As trombetas anunciam a chegada iminente do Rei, o Deus triunfante. Será o fim (para alguns) e o começo de uma fase para a alegria dos que são oprimidos. Nesta estrofe o eu lírico convida a celebrar o futuro por antecipação. A garantia de que a vida será melhor é afirmada num cântico novo.
Esta é uma liturgia da certeza: recorda a certeza do que Deus fez no passado e celebra o que Deus certamente fará no futuro. É uma liturgia zelosa em ajudar os acomodados, para que sacudam o seu torpor. Igualmente atenciosa para com os que aguardam a justiça como se dela tivessem fome e sede, os que se prepararam para dizer amém diante do alívio que se aproxima.
É uma bela poesia, na construção, na criatividade, na concisão e na generosidade das variações. O modo como o tempo foi posto a fluir, bem como o arranjo das classes de sete elementos, revelam o anseio de louvar com beleza literária.
A mensagem deste salmo nos remete ao triunfo de Deus celebrado na Ceia do Senhor. O rito deste sacramento é uma encenação em linguagem conotativa em suas declarações e em sua teatralidade litúrgica (ainda que não possua caráter poético). A vitória de Cristo é recordada e anunciada aos participantes ao se apropriarem dos elementos simbólicos. Os três tempos aparecem na Ceia. Passado: “Façam isso em memória de mim”; como gratidão pela entrega de Cristo. Presente: “anunciais a morte do Senhor”; por causa da certeza de que algo novo surgiu e precisa ser anunciado. Futuro: “Até que ele venha”; pois os dias vindouros revelarão toda a dimensão do amor de Deus. Deus fez notória a sua salvação e nada na vida comunitária da igreja transmite mais segurança e estabilidade do que a vitória de Cristo anunciada pela Ceia.
Desfrute da liturgia da certeza.
- Délio Porto Fassoni é engenheiro aposentado e reside em Viçosa, MG.
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Ultimato mostra, entre outras coisas, a riqueza das Escrituras quando lidas como literatura, sem diminuir o seu caráter sagrado — a sua inspiração divina.
E reafirmamos o que publicamos em outra edição recente: A Bíblia Ainda Fala — “As Escrituras contêm a narrativa que dá sentido, esclarece e comunica a soberania e sabedoria de Deus. A lealdade ao que está exposto no Livro deve ser a marca dos cristãos”.
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