Opinião
- 05 de agosto de 2014
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A história da Missão Integral e o jeito de fazer teologia
De dentro do protestantismo mundial em seus movimentos de reordenação dos campos teológicos e eclesiásticos após a segunda grande guerra, pastores, lideranças e teólogos latino-americanos, sensíveis aos rumos deste cenário começaram a formular os primeiros passos do que viria a ser denominado de “missão integral”.
Divisores de águas entre ecumênicos, fundamentalistas, conservadores e evangelicais1 se deram a partir de eventos que demarcaram as diferenças, como o surgimento do CMI (Conselho Mundial de Igrejas, 1948, ecumênico) e do CIIC (Concílio Internacional das Igrejas Cristãs, 1948, fundamentalista). Em 1966, realizou-se o Congresso Mundial de Evangelização em Berlim, promovido pela revista “Christianity Today”, em comemoração aos dez anos da Associação Billy Graham, reunindo a parcela conservadora que iria, mais adiante, organizar em 1974 em Lausanne, o Congresso Mundial de Evangelização, cujo Pacto tem sido tomado como referência para a missão.
O protestantismo ecumênico na América Latina organizou as CELA’s (Conferências Ecumênicas Latino-americanas) que, juntamente com o ISAL (Igreja e Sociedade na América Latina) fermentaram movimentos e organismos atuantes na sociedade. Em reação, os conservadores e evangelicais mobilizaram-se em 1969, em Bogotá, o I Congresso Latino-Americano de Evangelização, com o tema “Ação em Cristo para um Continente em Crise”, reunindo mais de 900 delegados. No entanto, como afirmou Ruth Padilla, quem “pôs a mesa” em Bogotá foram “as associações missionárias da América do Norte”. Entretanto,
"Não era mais tempo de seguir recebendo como latino-americanos o menu do Norte, repetindo e polarizando-se a partir de receitas teológicas estrangeiras. Deviam gerar seu próprio pensamento teológico que deveria surgir da Palavra de Deus e de seu contexto social e político.2"
Vinte e cinco líderes, pastores, missionários e professores de seminário de nove denominações se reuniram um ano depois em Cochabamba organizando a FTL – Fraternidade Teológica Latino-americana. Samuel Escobar, Pedro Savage, Emilio Antonio Nuñez, Ricardo Sturtz e René Padilla formaram a sua primeira liderança. Desde então, foram mais quatro Congressos de Evangelização (CLADEs – 1979, 1992, 2000 e 2012) organizados pela FTL que demarcaram um campo teológico protestante latino-americano envolvendo igrejas, lideranças, publicações, eventos e movimentos nacionais, tendo como marco a integralidade da missão da igreja.
Uma teologia não nasce com data e hora, mas com sujeitos, contextos, conflitos e o “sopro” do Espírito. Toda teologia é fruto do seu tempo. Trata-se de uma forma de pensar as relações de Deus com a vida, a igreja e a história. O Reino de Deus, enfim. A teologia da Missão Integral (TMI) ou a própria missão que se define como integral, pertence a uma temporalidade. No entanto, sua força e sentido ultrapassaram gerações e ainda repercutem com questões e perguntas sobre a sua validade, relevância e efetividade. Novas gerações de pastores e igrejas estão descobrindo a TMI agora, enquanto outros constatam o seu desgaste e anacronismo.
Ora, se esta ou qualquer outra teologia recebe as críticas e as reavaliações a cada novo contexto, geração e situação significa que seu papel está sendo cumprido, qual seja, o de não se tornar um pensamento e uma prática que se pretendem absolutos e finais, tal como uma ortodoxia que cerra sentidos e significados atemporais. A TMI não é um sistema teológico e nem um acervo dogmático de verdades proposicionais, as quais devem ser repetidas como mantra religioso, a fim de se tornarem verdades eternas. Se há relevância e contemporaneidade nesta forma de ver e fazer o Evangelho do Reino no mundo está justamente na consciência dos seus limites, na capacidade de ouvir e de dialogar, correndo o risco de concluir sobre o seu próprio termo.
Assim como o Senhor Jesus encarnado, toda teologia deveria esvaziar-se de si mesma (Fp 2.5-8). Assim como o Reino de Deus, toda teologia deve parecer anônima, oculta, pequena e ignorada, mas ao mesmo tempo fermentando tudo, perpassando todas as coisas, presente de maneira viva e transformadora. É possível afirmar que há discursos e tentativas de se fazer missão integral que negam os seus pressupostos na prática, enquanto há centenas ou mesmo milhares de experiências de missão que não são conscientes destes mesmos pressupostos, mas que a fazem acontecer. Sendo assim, como mensurá-la? Não se trata de uma grife teológica e nem propriedade patenteada de nenhum movimento.
Mas se uma teologia é o rosto do seu tempo e permanece reconstruindo-se num devir, ela também representa a continuidade e a ruptura com legados anteriores. Assim, é possível apontar linhagens de um pensamento e de uma prática missiológica como a TMI tomando-se, por exemplo, as heranças do pietismo oitocentista e do evangelho social das primeiras décadas do século XX. Muitos missionários do século XIX foram reformadores sociais, mais do que representantes de um projeto denominacionalista. Da mesma forma, os movimentos missionários e de unidade da primeira metade do século passado contribuíram para o seu advento.
A TMI representou um deslocamento do modo como se fazia e pensava a missão da igreja no mundo, não tendo como ponto de partida a conquista civilizatória, a imposição proselitista e nem o convencimento sectário. As atitudes de ouvir antes de falar, de servir sem precisar ser servido, de ler a realidade e o contexto junto com o texto bíblico e de refletir a “posteriori” da prática, representaram este outro modo de estar como povo de Deus na história. Evangelizar não é acirrar os conflitos entre as religiões.
A TMI ousou partir da encarnação de Jesus como paradigma da missão e não de um projeto religioso, cultural e político, questionando os discursos evangélicos alinhados às forças da dominação e da opressão sobre os pobres e os oprimidos. Há cerca de cinco décadas a América Latina e o Brasil estavam sob uma conjuntura de profundas desigualdades sociais e econômicas, com grandes massas de despossuídos, respirando os ares das revoluções populares e dos golpes militares de estado. Como seria fazer missão sem as soluções superficiais do radicalismo fundamentalista e sem o relativismo do mundo secularizado, preservando o compromisso com as escrituras, com a proclamação e com os empobrecidos?
Esta pergunta permanece atual num cenário latino-americano que, embora tenha mudado depois de governos neoliberais e de esquerda, continua com profundas desigualdades estruturais e com um número bem maior de evangélicos (neo) pentecostalizados do que décadas atrás.
Notas
1. Cada um destes campos merece uma abordagem mais precisa.
2. “Congressos Latino-Americanos de Evangelização (CLADES) 1969-2012”. In: http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=255
Nota do editor:
Ultimato acaba de relançar o clássico Missão Integral – o reino de Deus e a igreja, de René Padilla. Este livro é uma das referências da bibliografia evangelical sobre o tema.
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Divisores de águas entre ecumênicos, fundamentalistas, conservadores e evangelicais1 se deram a partir de eventos que demarcaram as diferenças, como o surgimento do CMI (Conselho Mundial de Igrejas, 1948, ecumênico) e do CIIC (Concílio Internacional das Igrejas Cristãs, 1948, fundamentalista). Em 1966, realizou-se o Congresso Mundial de Evangelização em Berlim, promovido pela revista “Christianity Today”, em comemoração aos dez anos da Associação Billy Graham, reunindo a parcela conservadora que iria, mais adiante, organizar em 1974 em Lausanne, o Congresso Mundial de Evangelização, cujo Pacto tem sido tomado como referência para a missão.
O protestantismo ecumênico na América Latina organizou as CELA’s (Conferências Ecumênicas Latino-americanas) que, juntamente com o ISAL (Igreja e Sociedade na América Latina) fermentaram movimentos e organismos atuantes na sociedade. Em reação, os conservadores e evangelicais mobilizaram-se em 1969, em Bogotá, o I Congresso Latino-Americano de Evangelização, com o tema “Ação em Cristo para um Continente em Crise”, reunindo mais de 900 delegados. No entanto, como afirmou Ruth Padilla, quem “pôs a mesa” em Bogotá foram “as associações missionárias da América do Norte”. Entretanto,
"Não era mais tempo de seguir recebendo como latino-americanos o menu do Norte, repetindo e polarizando-se a partir de receitas teológicas estrangeiras. Deviam gerar seu próprio pensamento teológico que deveria surgir da Palavra de Deus e de seu contexto social e político.2"
Vinte e cinco líderes, pastores, missionários e professores de seminário de nove denominações se reuniram um ano depois em Cochabamba organizando a FTL – Fraternidade Teológica Latino-americana. Samuel Escobar, Pedro Savage, Emilio Antonio Nuñez, Ricardo Sturtz e René Padilla formaram a sua primeira liderança. Desde então, foram mais quatro Congressos de Evangelização (CLADEs – 1979, 1992, 2000 e 2012) organizados pela FTL que demarcaram um campo teológico protestante latino-americano envolvendo igrejas, lideranças, publicações, eventos e movimentos nacionais, tendo como marco a integralidade da missão da igreja.
Uma teologia não nasce com data e hora, mas com sujeitos, contextos, conflitos e o “sopro” do Espírito. Toda teologia é fruto do seu tempo. Trata-se de uma forma de pensar as relações de Deus com a vida, a igreja e a história. O Reino de Deus, enfim. A teologia da Missão Integral (TMI) ou a própria missão que se define como integral, pertence a uma temporalidade. No entanto, sua força e sentido ultrapassaram gerações e ainda repercutem com questões e perguntas sobre a sua validade, relevância e efetividade. Novas gerações de pastores e igrejas estão descobrindo a TMI agora, enquanto outros constatam o seu desgaste e anacronismo.
Ora, se esta ou qualquer outra teologia recebe as críticas e as reavaliações a cada novo contexto, geração e situação significa que seu papel está sendo cumprido, qual seja, o de não se tornar um pensamento e uma prática que se pretendem absolutos e finais, tal como uma ortodoxia que cerra sentidos e significados atemporais. A TMI não é um sistema teológico e nem um acervo dogmático de verdades proposicionais, as quais devem ser repetidas como mantra religioso, a fim de se tornarem verdades eternas. Se há relevância e contemporaneidade nesta forma de ver e fazer o Evangelho do Reino no mundo está justamente na consciência dos seus limites, na capacidade de ouvir e de dialogar, correndo o risco de concluir sobre o seu próprio termo.
Assim como o Senhor Jesus encarnado, toda teologia deveria esvaziar-se de si mesma (Fp 2.5-8). Assim como o Reino de Deus, toda teologia deve parecer anônima, oculta, pequena e ignorada, mas ao mesmo tempo fermentando tudo, perpassando todas as coisas, presente de maneira viva e transformadora. É possível afirmar que há discursos e tentativas de se fazer missão integral que negam os seus pressupostos na prática, enquanto há centenas ou mesmo milhares de experiências de missão que não são conscientes destes mesmos pressupostos, mas que a fazem acontecer. Sendo assim, como mensurá-la? Não se trata de uma grife teológica e nem propriedade patenteada de nenhum movimento.
Mas se uma teologia é o rosto do seu tempo e permanece reconstruindo-se num devir, ela também representa a continuidade e a ruptura com legados anteriores. Assim, é possível apontar linhagens de um pensamento e de uma prática missiológica como a TMI tomando-se, por exemplo, as heranças do pietismo oitocentista e do evangelho social das primeiras décadas do século XX. Muitos missionários do século XIX foram reformadores sociais, mais do que representantes de um projeto denominacionalista. Da mesma forma, os movimentos missionários e de unidade da primeira metade do século passado contribuíram para o seu advento.
A TMI representou um deslocamento do modo como se fazia e pensava a missão da igreja no mundo, não tendo como ponto de partida a conquista civilizatória, a imposição proselitista e nem o convencimento sectário. As atitudes de ouvir antes de falar, de servir sem precisar ser servido, de ler a realidade e o contexto junto com o texto bíblico e de refletir a “posteriori” da prática, representaram este outro modo de estar como povo de Deus na história. Evangelizar não é acirrar os conflitos entre as religiões.
A TMI ousou partir da encarnação de Jesus como paradigma da missão e não de um projeto religioso, cultural e político, questionando os discursos evangélicos alinhados às forças da dominação e da opressão sobre os pobres e os oprimidos. Há cerca de cinco décadas a América Latina e o Brasil estavam sob uma conjuntura de profundas desigualdades sociais e econômicas, com grandes massas de despossuídos, respirando os ares das revoluções populares e dos golpes militares de estado. Como seria fazer missão sem as soluções superficiais do radicalismo fundamentalista e sem o relativismo do mundo secularizado, preservando o compromisso com as escrituras, com a proclamação e com os empobrecidos?
Esta pergunta permanece atual num cenário latino-americano que, embora tenha mudado depois de governos neoliberais e de esquerda, continua com profundas desigualdades estruturais e com um número bem maior de evangélicos (neo) pentecostalizados do que décadas atrás.
Notas
1. Cada um destes campos merece uma abordagem mais precisa.
2. “Congressos Latino-Americanos de Evangelização (CLADES) 1969-2012”. In: http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=255
Nota do editor:
Ultimato acaba de relançar o clássico Missão Integral – o reino de Deus e a igreja, de René Padilla. Este livro é uma das referências da bibliografia evangelical sobre o tema.
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Teologia pura e simples
Missão Integral – o reino de Deus e a igreja (lançamento)
Lyndon de Araújo Santos é historiador, professor universitário e pastor da Igreja Evangélica Congregacional em São Luís, MA. Faz parte da Fraternidade Teológica Latino-americana - Setor Brasil (FTL-Br).
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