Opinião
- 07 de março de 2016
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A graça do encontro não pode ser esvaziada
Frequentemente circulam pela internet vídeos de crianças chorando, falando de seus medos e dificuldades. No geral, um adulto, que quase sempre parece ser um dos pais, conversa com a criança lhe fazendo perguntas, induzindo a respostas ou incentivando o prolongamento do seu desabafo. Este momento, ocorrido na intimidade, é visto como potencialmente comovente e promissor de “curtidas”, e assim o adulto retoma o assunto com a criança, o que a faz chorar mais, ou até mesmo acentuar seu discurso queixoso ao perceber que isto tem certo valor para o adulto.
Num destes vídeos, questionada sobre seu medo, a criança dizia chorando “Não quero falar disso”. Mas a mãe, possivelmente desejando obter alguns minutos a mais de vídeo, insiste “Mas você já me contou...”, conseguindo então que a filha repetisse sua história. Com a distância da câmera de um smartphone e milhões de visualizações, a mãe capta o desabafo de sua filha que a deveria ter como confidente. A mãe não aparece no vídeo, não expõe sua própria imagem, apenas a da filha; sua voz aparece em tom suave numa atitude acolhedora perante a fala emocionada da menina.
Não é possível afirmar qual o sentido e o impacto desta experiência para a criança, que até pode ter se percebido acolhida e ouvida, não sei. Mas que risco há no uso deste momento íntimo e precioso? Que noção sobre intimidade é apresentada a essa criança? O que, nós, adultos, temos compreendido sobre intimidade?
Estamos na contramão, tornando público o momento do encontro, e assim criando distâncias ao invés de aproximação, de empatia e de familiaridade. O contato com o outro e o encontro, no lugar mais próximo e afetivo, tornam-se vitrine.
O aparente acolhimento perante o choro da criança pode fazê-la deixar escapar seu sentimento e o sentido por ela vivido, enquanto a mãe distancia-se de sua experiência, ao transformar em algo engraçado para os espectadores. Mas perde-se aí a graça do encontro. O valor da intimidade não é mais graça, é recompensa. Sobre isso o filósofo Martin Buber expõe ao falar sobre a relação Eu-Tu: “O Tu encontra-se comigo por graça; não é através de uma procura que é encontrado”, convocando-nos assim a uma atitude receptiva ao Tu.
Na conexão vivida num encontro íntimo, há o convite para uma relação. O outro me toca, e me comovo em reciprocidade. Na relação íntima, onde a receptividade torna o outro presente, ocorre o encontro por graça, não por domínio.
“Entre ele e ti existe a reciprocidade da doação; tu lhe dizes Tu, e te entregas a ele; ele diz Tu e se entrega a ti.” M. Buber, Eu e Tu, 2004.
O outro não é meio para obter algo, pois só consigo encontrá-lo quando suspendo minhas certezas. Nesta perspectiva, a relação acontece porque há igualdade; face a face somos pessoas, e a intimidade é nascida do amor. No amor sou responsável pelo outro. Não o torno meu trunfo ou triunfo.
Que possa eu receber o outro como pessoa, e ele a mim.
Nota sobre a imagem acima:
A imagem que ilustra este artigo foi retirada de uma cena do filme europeu “A Árvore”. No filme uma família vivencia o luto pela perda do pai. A menina acredita ter a presença do pai na figueira do jardim, enquanto a mãe, tomada por tristeza, afasta-se dos cuidados consigo mesma e com a família. O encontro entre elas acontece no encontro com a árvore, e a vida ganha novo fôlego a partir deste encontro Eu-Tu.
• Rute Heckert Viriato é psicóloga e psicoterapeuta, com experiência na área de reabilitação para pessoas com deficiência. Estuda temas como: espiritualidade, luto e morte, dor, deficiências, envelhecimento, relacionamentos e escolha profissional. É editora do blog Contemplação do Ser.
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• Rute Heckert Viriato é psicóloga e psicoterapeuta, com experiência na área de reabilitação para pessoas com deficiência. Estuda temas como: espiritualidade, luto e morte, dor, deficiências, envelhecimento, relacionamentos e escolha profissional. É editora do blog Contemplação do Ser.
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