Opinião
- 14 de agosto de 2018
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A Festa – o filme
Por Carlos Caldas
A festa (The Party) é uma produção britânica de 2017 que recentemente estreou no circuito brasileiro, dirigido pela inglesa Sally Potter. O filme é diferente, em muitos sentidos, dos filmes que se costumam ver por aí, por alguns motivos. Um deles tem a ver com seu gênero, que não é definido, variando do drama à comédia, mas não uma comédia tradicional, pois seu humor não é leve, antes, é totalmente ácido.O filme é rodado em preto e branco e não tem efeitos especiais. É muito curto, pouco mais de uma hora (70 minutos, para ser mais preciso). Seu orçamento deve ter sido baixíssimo, considerando ser todo filmado em um único ambiente, uma casa, e são apenas sete personagens. Seriam nove, pois dois nunca aparecem: uma mulher, conhecida de todos, e citada apenas por, e outro, presume-se, um homem, do qual não se menciona nem o nome.
A festa faz lembrar uma peça de teatro. De fato, é quase um teatro filmado. É uma espécie de versão fílmica do teatro do absurdo, evocando peças que têm como temas a falta de sentido e as situações grotescas da vida, como as de Eugene Ionesco,ou até mesmo as famosas Esperando Godot, de Samuel Beckett, e Entre quatro paredes, de Jean-Paul Sartre. De fato, A Festa vai ilustrar a tese sartreana que “o inferno são os outros”.
A narrativa conta a história de Janet (Kristin Scott Thomas), uma política idealista de um partido de esquerda que é nomeada para o Ministério da Saúde da Inglaterra. Para comemorar, ela e seu marido Bill (Timothy Spall) resolvem dar uma festa em sua casa, convidando apenas um grupo de seus amigos mais íntimos: sua amiga April (Patricia Clarkson), extremamente cínica e corrosiva, que não tem o menor constrangimento em, o tempo todo, disparar seus comentários, nem sempre convenientes, em relação a tudo e a todos, e Gottfried, seu marido alemão, interpretado pelo sempre excelente ator suíço-alemão Bruno Ganz (que já foi Staupitz, o mentor espiritual de Lutero no filme deste mesmo nome de 2003 e Hitler, no famoso A Queda: As Últimas Horas de Hitler, de 2004). Gottfried repete frases de efeito e de autoajuda o tempo todo, como se fossem mantras, e, como se fosse uma Pollyana (aquela do romance de Eleanor Porter), consegue encontrar algo positivo e bom em tudo (ou quase tudo) que acontece. Também estão na festa Tom (o galã irlandês Cillian Murphy), um especulador financeiro, que espera a chegada de sua esposa Marianne, conhecida de todos, mas que não aparece em cena, e as lésbicas Martha (Cherry Jones) e Jinny (Emily Mortimer). Martha tem idade para ser mãe de Jinny, que, por meio de inseminação artificial, está grávida de trigêmeos.
São pessoas de classe média alta, de tendência esquerdista, cultas, sofisticadas, elegantes, idealistas, com uma visão clara do que entendem ser a vida perfeita, ou como a vida deve ser. A partir daí, uma sequência de revelações trará à luz segredos ocultos, esqueletos escondidos nos armários da vida daquelas pessoas, e o que deveria ser uma confraternização agradável entre amigos transforma-se em um show de horrores. A narrativa, com longos closes nos rostos dos atores e atrizes, fica cada vez mais tensa e angustiante. Não tanto quanto oopressivo e depressivo Mãe, de Darren Aronofsky. A festa é menos atordoante. Mas não deixa de ser um filme perturbador. Aquelas pessoas, aparentemente “certinhas”, que acreditam ter a receita para a vida, são exemplos eloquentes que Caetano estava coberto de razão quando disse que “de perto ninguém é normal”. De fato, A festa traz à memória a primeira quadra de um soneto de Gregório de Matos Guerra, que no século XVII criticou aqueles que pensam ter a receita certa para a vida de todos, mas não sabem cuidar da própria vida:
A cada canto um grande conselheiro
Que nos quer governar cabana e vinha
Não sabem governar sua cozinha
E podem governar o mundo inteiro.
Em poucos minutos a estabilidade aparente deles é desconstruída. As aparências enganam. As contradições e incoerências dos integrantes do grupo se tornam evidentes, e a situação é levada a um clímax que faz o que deveria ser uma festa se transformar em uma panela de pressão, prestes a explodir. O filme é circular, pois a primeira e a última cenas são as mesmas, muito embora o final seja aberto, pois não dá para saber como a história termina.
O filme de Sally Potter mostra o que os leitores da Bíblia há muito sabem: todos pecaram (Rm 3.23). Engana-se quem ousar negar este fato (1 Jo 1.8, 10). Humanos que somos, nascemos na iniquidade (Sl 51.5). G. K. Chesterton, inglês como Potter, em um de seus aforismos brilhantes – antes de prosseguir, uma observação necessária:dizer que um aforismo de Chesterton é brilhante é ser pleonástico – disse que o ensino da queda do homem é a única doutrina cristã que pode ser verificada empiricamente.
Afirmou-se acima que não dá para saber como o filme termina. É uma pena que A Festa não apresente algo que aponte para a noção cristã de redenção. Sem redenção, o que sobra é o desespero e o absurdo. A Festa demonstra com clareza esta verdade.
Leia mais
» Cinema e Fé Cristã – Vendo filmes com sabedoria e discernimento
» Engolidos Pela Cultura Pop – Arte, mídia, e consumo: uma abordagem cristã
» Preconceituoso, xenofóbico, e nada politicamente correto: "O Orgulho"
A festa (The Party) é uma produção britânica de 2017 que recentemente estreou no circuito brasileiro, dirigido pela inglesa Sally Potter. O filme é diferente, em muitos sentidos, dos filmes que se costumam ver por aí, por alguns motivos. Um deles tem a ver com seu gênero, que não é definido, variando do drama à comédia, mas não uma comédia tradicional, pois seu humor não é leve, antes, é totalmente ácido.O filme é rodado em preto e branco e não tem efeitos especiais. É muito curto, pouco mais de uma hora (70 minutos, para ser mais preciso). Seu orçamento deve ter sido baixíssimo, considerando ser todo filmado em um único ambiente, uma casa, e são apenas sete personagens. Seriam nove, pois dois nunca aparecem: uma mulher, conhecida de todos, e citada apenas por, e outro, presume-se, um homem, do qual não se menciona nem o nome.
A festa faz lembrar uma peça de teatro. De fato, é quase um teatro filmado. É uma espécie de versão fílmica do teatro do absurdo, evocando peças que têm como temas a falta de sentido e as situações grotescas da vida, como as de Eugene Ionesco,ou até mesmo as famosas Esperando Godot, de Samuel Beckett, e Entre quatro paredes, de Jean-Paul Sartre. De fato, A Festa vai ilustrar a tese sartreana que “o inferno são os outros”.
A narrativa conta a história de Janet (Kristin Scott Thomas), uma política idealista de um partido de esquerda que é nomeada para o Ministério da Saúde da Inglaterra. Para comemorar, ela e seu marido Bill (Timothy Spall) resolvem dar uma festa em sua casa, convidando apenas um grupo de seus amigos mais íntimos: sua amiga April (Patricia Clarkson), extremamente cínica e corrosiva, que não tem o menor constrangimento em, o tempo todo, disparar seus comentários, nem sempre convenientes, em relação a tudo e a todos, e Gottfried, seu marido alemão, interpretado pelo sempre excelente ator suíço-alemão Bruno Ganz (que já foi Staupitz, o mentor espiritual de Lutero no filme deste mesmo nome de 2003 e Hitler, no famoso A Queda: As Últimas Horas de Hitler, de 2004). Gottfried repete frases de efeito e de autoajuda o tempo todo, como se fossem mantras, e, como se fosse uma Pollyana (aquela do romance de Eleanor Porter), consegue encontrar algo positivo e bom em tudo (ou quase tudo) que acontece. Também estão na festa Tom (o galã irlandês Cillian Murphy), um especulador financeiro, que espera a chegada de sua esposa Marianne, conhecida de todos, mas que não aparece em cena, e as lésbicas Martha (Cherry Jones) e Jinny (Emily Mortimer). Martha tem idade para ser mãe de Jinny, que, por meio de inseminação artificial, está grávida de trigêmeos.
São pessoas de classe média alta, de tendência esquerdista, cultas, sofisticadas, elegantes, idealistas, com uma visão clara do que entendem ser a vida perfeita, ou como a vida deve ser. A partir daí, uma sequência de revelações trará à luz segredos ocultos, esqueletos escondidos nos armários da vida daquelas pessoas, e o que deveria ser uma confraternização agradável entre amigos transforma-se em um show de horrores. A narrativa, com longos closes nos rostos dos atores e atrizes, fica cada vez mais tensa e angustiante. Não tanto quanto oopressivo e depressivo Mãe, de Darren Aronofsky. A festa é menos atordoante. Mas não deixa de ser um filme perturbador. Aquelas pessoas, aparentemente “certinhas”, que acreditam ter a receita para a vida, são exemplos eloquentes que Caetano estava coberto de razão quando disse que “de perto ninguém é normal”. De fato, A festa traz à memória a primeira quadra de um soneto de Gregório de Matos Guerra, que no século XVII criticou aqueles que pensam ter a receita certa para a vida de todos, mas não sabem cuidar da própria vida:
A cada canto um grande conselheiro
Que nos quer governar cabana e vinha
Não sabem governar sua cozinha
E podem governar o mundo inteiro.
Em poucos minutos a estabilidade aparente deles é desconstruída. As aparências enganam. As contradições e incoerências dos integrantes do grupo se tornam evidentes, e a situação é levada a um clímax que faz o que deveria ser uma festa se transformar em uma panela de pressão, prestes a explodir. O filme é circular, pois a primeira e a última cenas são as mesmas, muito embora o final seja aberto, pois não dá para saber como a história termina.
O filme de Sally Potter mostra o que os leitores da Bíblia há muito sabem: todos pecaram (Rm 3.23). Engana-se quem ousar negar este fato (1 Jo 1.8, 10). Humanos que somos, nascemos na iniquidade (Sl 51.5). G. K. Chesterton, inglês como Potter, em um de seus aforismos brilhantes – antes de prosseguir, uma observação necessária:dizer que um aforismo de Chesterton é brilhante é ser pleonástico – disse que o ensino da queda do homem é a única doutrina cristã que pode ser verificada empiricamente.
Afirmou-se acima que não dá para saber como o filme termina. É uma pena que A Festa não apresente algo que aponte para a noção cristã de redenção. Sem redenção, o que sobra é o desespero e o absurdo. A Festa demonstra com clareza esta verdade.
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É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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