Opinião
- 21 de maio de 2021
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A conversão de Stott
Por José de Segovia
Falando de sua vida antes de encontrar Cristo, Stott dizia que “não podia entender por que estava envolto em uma neblina e não conseguia me aproximar de Deus. Parecia inacessível e distante. Agora sei a razão. Deus não era responsável por esta nuvem, era eu”.
“Como um típico adolescente”, dizia John Stott (1921-2011), ao recordar a experiência que mudou sua vida em 1938, “era consciente sobre duas coisas acerca de mim mesmo, embora, sem dúvida, naquela época não pudesse expressá-lo nesses termos. Primeiro, que se existisse um Deus, estava longe Dele. Tentei encontrá-lo, mas Ele parecia cercado por uma névoa que eu não podia atravessar; segundo, minha derrota. Eu sabia o tipo de pessoa que era e o tipo de pessoa que queria ser. Entre o ideal e a realidade existia um grande abismo. Tinha grandes ideais, mas uma vontade débil”.
Quando conheci Stott em Londres, ainda adolescente, me sentia tão profundamente identificado com sua descrição de como era sua vida na minha idade que caía em lágrimas ouvindo suas palavras. Eram os mesmos sentimentos que eu tinha e não conseguia articular. A diferença é que com o tempo, a mim me parecia continuar preso naquela experiência adolescente, enquanto que ele parecia ter superado essa fase.
Compreendia bem quando ele dizia: “Ainda me lembro da minha perplexidade quando, ainda menino, recitava minhas orações e tentava adentrar na presença de Deus. Eu não conseguia entender porque estava envolto naquela neblina e não conseguia me aproximar Dele. Ele parecia inacessível e distante. Agora sei a razão. Deus não era o responsável por aquela nuvem, era eu. Nossos pecados ocultam a face de Deus tão efetivamente quanto as nuvens, o sol."
Assim como ele, reconhecia que: “Às vezes em emergências, perigo, alegria ou na contemplação de algo belo, Deus parece próximo, mas, mais frequentemente lutamos com a percepção da sua inexplicável distância. Nos sentimos abandonados. Isso não é apenas um sentimento. É um fato. Até que nossos pecados sejam perdoados, estamos no exílio, longe de nosso verdadeiro lar. Em termos bíblicos, estamos "perdidos", isto é, "mortos em nossas transgressões e pecados"".
Algo mais que Rugby
A escola de Rugby é conhecida por ser mais do que o lugar onde nasceu o esporte que leva esse nome (ou pelo menos, recebeu as regras pelas quais é conhecido na Europa), mas é também o centro de ensino particular mais elitista que existe na Inglaterra, depois de Eton e Harrow. Desde o século XVI, ela tem formado “cavalheiros” de famílias de classe média/alta para ter o que em inglês eles chamam de “o lábio superior rígido”, ou seja, para reprimir suas emoções. Alguém como Stott, voltado para as línguas modernas, poderia assim estar preparado para estudar em Cambrige e entrar no serviço diplomático ou de inteligência, para ser embaixador ou espião.
O pai de Stott deve ter ficado orgulhoso de que seu filho fosse para o Rugby, já que ele também tinha ido para lá. Parece que não o pressionou a fazer medicina, embora antes de terminar os estudos, em 1938, tenha pedido ao Instituto Nacional de Psicologia Industrial um conselho sobre as aptidões do filho, através do seu Departamento de Orientação Profissional. Aos 16 anos lhe aplicaram um "teste de inteligência", mostrando que ela era "distintamente boa, mas não excepcional". Indicava uma capacidade para idiomas, embora eles não tivessem tanta certeza sobre seu futuro acadêmico. Mas a inclinação de Stott para a filologia não vinha apenas do fato de sua avó ser alemã. Uma das coisas que ele claramente herdou de seu pai era a necessidade de precisão na linguagem.
A prova de que o pai não pensava que ele faria medicina é que ele chegou a entrar em contato com o subsecretário permanente do Ministério de Assuntos Exteriores, Lord Vansittart, além de enviar John dois verões para a Alemanha e dois para a França. Ele foi um daqueles adolescentes que as famílias inglesas enviavam para a Alemanha no período entre as guerras. Em uma de suas cartas, ele diz que comprou um violoncelo e em outra observa como o nazismo emergente está adquirindo um controle cada vez mais sufocante. Não é de estranhar que em 1938 seu pai preferisse que ele fosse para Paris, onde fez um curso de língua e literatura francesa na Sorbonne.
O que fica claro, nas informações que temos, é que John já era desde a adolescência um rapaz simpático, aberto, emotivo e sensível. Esta última característica fez com que não recomendassem para ele o trabalho social, visto que tinha "sentimentos muito profundos e uma tendência a pontos de vista demasiadamente pessoais". Parecia-lhes mais admirável que ele tivesse iniciativa e fosse perseverante. Também já demonstrava "promissoras qualidades de liderança" e uma disposição para "servir" em vez de "buscar seu próprio interesse". Isso chegou ao ponto de levá-lo a criar um grupo na escola para oferecer banho a pessoas em situação de rua. Não tinha mais do que três membros, é claro! De fato, o grupo se dissolveu aos cinco anos, quando o tesoureiro usou os fundos para fazer um empréstimo a seu irmão, sem o consentimento dos outros dois.
Uma educação particular
Quando já contava 8 anos como interno em Oakley Hall, em preparação para o Rugby, Stott estava acostumado com o ambiente gelado daqueles dormitórios, o regime militar, as punições com golpes de vara e o distanciamento da família. Quando sua mãe ia vê-lo, ele estendia a mão perguntando: "Como está, Sra. Stott?". Para muitos de nós, uma educação como essa nos parece qualquer coisa, menos saudável. Sua única descontração era a paixão pela observação de pássaros. Ele anotava todos os que via em seus cadernos.
Os novos alunos eram submetidos a essa prática habitual de humilhação dos regimes internos, que são os trotes. O aluno novato era denominado em inglês “fag”, termo que dá origem ao nome depreciativo com o qual o homossexual era identificado, até a generalização do termo "gay". Nessas escolas onde se forma a elite da sociedade inglesa era comum a iniciação à homossexualidade, inclusive daqueles que mais tarde teriam uma prática heterossexual. Embora Stott tenha sido solteiro a vida toda, não creio que ele fosse homossexual.
Houve uma relação íntima por muitos anos com um professor chamado Robbie Bickersteth, solteiro e na casa dos trinta anos, quando John era adolescente. Ele até o leva para passar férias. Seu biógrafo, Dudley-Smith, se surpreende com a linguagem afetuosa de suas cartas, mas observa que não há sinais de qualquer abuso devido ao comportamento inadequado do professor. Certamente não parece ter afetado sua orientação sexual, já que ele conhece uma garota de quinze anos, filha de outro médico, que estava hospedada no mesmo hotel nas férias de verão na Irlanda com sua família, em 1936. Ele descreve isso em seu diário como um despertar sexual. Eles cavalgaram juntos em um pônei, abraçados. Ele sente uma atração física e até acredita que poderia pedi-la em casamento.
O relacionamento não se manteve, mas há uma carta pedindo conselho a Bickersteth sobre uma amizade com um aluno mais velho, que o professor chama de "paixão de escola". Stott está preocupado com isso e Bickersteth o aconselha a falar com o responsável pela casa, o que ele não faz. É claro que a condição de solteiro de muitos ministros anglicanos às vezes é uma indicação de homofilia, não homossexualidade, isto é, orientação, não prática; mas não acho que esse foi o caso de Stott, como explicarei em outro artigo. O que está claro é que ele sente “uma sensação de derrota e alienação”, que o leva a frequentar a capela do colégio, a ler livros religiosos e a mergulhar na atmosfera de mistério associada com a busca de Deus.
Encontro com Cristo
John Bridger era um colega de colégio um ano mais velho que Stott, que também estudava Línguas Modernas, mas estava em uma casa diferente. Ele era muito ligado aos esportes, mas havia formado um grupo de estudos bíblicos na escola, que hoje seria chamado na Inglaterra de "união cristã", mas no Rugby era conhecido simplesmente como "a reunião" (para Stott nem isso, pois em seu diário o chamava de "assunto de Bridger", porque foi ele quem o convidou para participar. Esse colega de 17 anos esteve em contato com a União Bíblica (Scripture Union em inglês), que organizava visitas a essas escolas e acampamentos (não exatamente em barracas, mas em escolas particulares alugadas para esses alunos), por meio do ministério singular de E. J. H. Nash.
Nash trabalhou desde 1932 para a União Bíblica nessas escolas que eles chamam em inglês de "públicas", para atingir a elite que se formava nesses colégios particulares. Ele havia trabalhado com seguros em Londres e, em 1917, teve uma experiência em um trem voltando para casa, que o levou a tornar-se cristão. Começou a frequentar a igreja anglicana local, onde liderava os escoteiros, até que em 1922, incentivado pelo bispo de Londres, foi estudar no Trinity em Cambridge, antes de fazer teologia no evangélico Ridley Hall. Ele foi nomeado ministro anglicano e capelão em um colégio, antes de iniciar este ministério itinerante que levou à conversão de muitos adolescentes britânicos. Para eles, era conhecido simplesmente como Bash.
É essencial saber como ele era, para compreendermos como Stott entendia o cristianismo. Bash teria uns quarenta anos, então. Ele não era atlético, nem tinha grande habilidade acadêmica, ou talento artístico. Ele era uma pessoa despretensiosa, com uma simplicidade irresistível. Ele foi falar para o pequeno grupo de estudo bíblico em Rugby em um domingo de 1930. Ele focou a pergunta de Pilatos sobre o que fazer com Jesus. Stott ficou tão impressionado que continuou falando com ele. Bash o levou para um passeio e explicou o caminho da salvação. Naquela noite, em sua cama, John escreveu em seu diário que "fez a experiência da fé", isso que chamam de "abrir a porta para Cristo". Sua vida nunca mais foi a mesma.
É interessante comparar sua conversão com a de um de seus companheiros ao anglicanismo não evangélico, no ano em que Stott foi "confirmado" (algo ao qual ele não deu nenhuma importância, dizia). Hugh Montefiore era um judeu de família devotada e praticante, mas uma tarde, sozinho em seu dormitório, em um inverno frio de 1936, ele viu uma figura branca que identificou com Jesus. Lhe dizia: "Siga-me". Sua conversão dramática e visionária levou este judeu a se tornar um bispo anglicano. Ele era conhecido por suas idéias liberais, sendo a mais controversa a de que Jesus era homossexual. Sua experiência não se parece em nada com a de Stott.
Conversão evangélica
Nada dramático aconteceu na noite em que "o tio John" se tornou cristão: "nenhum relâmpago, estrondos de trovões ou choques elétricos em seu corpo", escreveu ele. "Foi uma experiência nada emocional." Ele simplesmente se deitou na cama e dormiu. A conversão evangélica nunca foi resultado de experiências místicas ou imagens visionárias. Como Stott disse, isso vem pela pregação da Palavra acerca da pessoa de Cristo pela obra do Espírito de Deus.
Bash não fazia manipulação emocional alguma. Não havia pressão para tomar uma decisão imediata. Essa é a evangelização em que Stott acreditava, mas é também a que caracterizava o "cristianismo histórico", que ele chamava de "evangélico". Como veremos, esta foi uma de suas diferenças com o evangelista Billy Graham, com quem teve uma famosa discordância durante a preparacão do Congresso de Lausanne, em 1974. Há uma concepcão do evangelismo na América muito distinta daquela que se viveu no passado, inclusive no avivamento do século XVIII. Não havia convites para ir à frente, nenhum gesto a ser feito, para mostrar que houve conversão. Todas essas práticas foram introduzidas posteriormente por Finney nos Estados Unidos, no século XIX.
Uma coisa é dizer que cremos no Espírito Santo, e outra é agir como se sua obra dependesse dos métodos que utilizamos e dos meios que facilitam uma determinada resposta. A conversão é uma iniciativa de Deus, como Stott pregou no Congresso Evangélico que aconteceu em Madrid em 1997, quando falou naquele domingo sobre a conversão de Paulo. Por meio dela, o Espírito de Deus produz arrependimento e fé, ao surgir uma consciência de pecado e uma necessidade de salvação. É uma resposta à promessa divina de uma nova vida em Cristo, por meio da confiança em sua obra redentora. O meio que Deus usa normalmente para isso é a pregação de sua Palavra (1 Coríntios 1.21; Romanos 10.17), mas também a oração.
Bash orou pelo "tio John" todos os dias desde que o conheceu. Ele pediu a Deus: "Ó Senhor, dê-me este menino e eu nunca duvidarei do seu poder para salvar!" Desde então, não houve uma semana em que ele não tivesse escrito para Stott, durante cinco anos. Enviava folhetos e lhe dava conselhos práticos sobre a vida cristã. Suas cartas são longas. Ele lhe explicava doutrinas como a expiação, os tempos da salvação ou os princípios de conduta moral. Dizia como ler a Bíblia e orar. E lhe ensinou como liderar ele mesmo o grupo de estudos bíblicos, quando Bridger deixou o colégio. O animava a dormir o suficiente e terminava cada carta com um pensamento bíblico. Era um texto exposto e aplicado, antes de encerrar com uma nota leve como uma piada.
Tudo isso ele fez por um menino a quem havia testemunhado um dia, mostrando seu desejo de conhecer a Cristo. Se os evangelistas fizessem o mesmo hoje, talvez teríamos outra classe de cristãos. Não faltam pregadores, mas há poucos como Bash, capazes de devotar tempo e interesse a um adolescente como Stott. E menos ainda, capazes de rogar incansavelmente ao Senhor, para que lhe conceda a vida de alguém que acabou de conhecer. Não há dúvida de que Deus se agradou em responder sua oração. E Bash não duvidaria de seu poder para salvar. Seu Deus é o mesmo que podemos conhecer e experimentar, a questão é se temos a mesma fé.
• José de Segovia Barrón, pastor da Igreja Evangélica do bairro de San Pascual em Madrid. Professor da Faculdade Internacional de Teologia IBSTE de Castelldefels, do Centro Evangélico de Estudios Bíblicos (CEEB) de Barcelona, da Faculdade de Teologia UEBE (FTUEBE) de Alcobendas (Madrid) e da Escola de Estudos Bíblicos e Teológicos de Welwyn (Inglaterra). Autor dos livros Entrelíneas, Ocultismo, Historias Extrañas Sobre Jesús, El Príncipe Caspian y La Fe de C. S. Lewis, Huellas del Cristianismo en el Cine e El Asombro del perdón. É casado com Anna, e tem quatro filhos: Lluvia, Natán, Noé e Edén.
Publicado originalmente no site Protestante Digital. Reproduzido com autorização.
Traduzido por Reinaldo Percinoto Jr.
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