Opinião
- 26 de outubro de 2007
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A "Bíblia nossa" de cada um
Robinson Cavalcanti
Certa vez, numa reunião da Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL), o conhecido pregador argentino Juan Carlos Ortiz relatava que quando ele se converteu comprou um novo exemplar da Bíblia e o leu marcando com um lápis vermelho durante um ano. Por dez anos ele só meditava e pregava nos versículos marcados. Começou, então, a passar por um perceptível vazio espiritual, uma sensação de aridez que o estava seriamente afetando. Clamou ao Senhor em uma madrugada e ouviu, com muita clareza, uma voz interior que dizia: “Pregue sobre os versículos não-riscados”. Foi que passou a fazer, e o seu ministério mudou.
Na Primeira Aliança havia tempo de estudo e tempo de esquecimento e, até, de “perda” da Palavra. E aí o Senhor levantava reis ou profetas para uma restauração. Dois textos, em particular, foram permanentemente esquecidos pelos judeus: os que instituíam o Ano Sabático e o Ano do Jubileu (que incomodam até hoje), com esse negócio de perdão de dívidas e devolução de propriedades, pois ninguém é de ferro para aceitar a conversão do bolso...
Há muitos cristãos vivendo a primeira fase de Juan Carlos Ortiz, e há muitos cristãos que têm os seus “anos de jubileu” particulares, praticando um peculiar esporte “o salto aos versículos” incômodos, especialmente aqueles que se chocam com a nossa cultura nacional ou regional, com a nossa subcultura eclesiástica, com nossas “visões” teológicas, com nossa perspectiva de classe, com nossa ideologia política, com nossas ferramentas de leituras do texto. Alguém afirmou que se todos os pastores pregassem sobre todos os textos bíblicos de forma expositiva, sistemática e sincera, todos seriam demitidos, nas várias denominações, em versículos diferentes. E, assim, que um vai tendo a “sua” Bíblia, particular, devidamente deletada, expurgada dos textos incômodos, domesticada.
Certa vez ouvi do Pároco anglicano de St. Benedict, Plantation, Flórida, EUA, que os únicos pastores que são obrigados a pregar sobre a Bíblia toda, gostem ou não dos versículos, são os anglicanos e os luteranos, por causa da leitura dos textos do dia, previstos em nossos livros litúrgicos, e que isso faz uma tremenda diferença. Nem todos em nossa Diocese se submetem a essa mui antiga e salutar prática, mas adotam a escolha “inspirada e adequada para o momento” de outras tradições, com inevitáveis prejuízos para si e para o seu rebanho.
Temos, por outro lado, de termos cuidado para não tornarmos os comentários das notas de rodapé parte do Cânon, e sermos totalmente condicionados por eles. Os deuterocanônicos são usados pelos herdeiros da Primeira Reforma como úteis para instrução, mas não como fonte de doutrinas.
Nós evangélicos temos que travar uma luta permanente para sermos o que somos com nossa leitura da Bíblia, cercados por textos e pregadores das tradições liberal (moderna e pós-moderna), e, principalmente, fundamentalista. Queremos ouvir a Palavra, usando de todas as ferramentas que nos auxiliem, sem negá-la e sem aprisioná-la em uma camisa de força. Embora os ataques liberais sejam uma realidade, o que sofremos mais são os ataques dos fundamentalistas, que se acham os verdadeiros evangélicos, quando, na realidade, são a sua negação pelo extremismo. A adoção de ministérios como Encontro de Casais e de Jovens com Cristo, e Cursilhos de Cristandade, em suas versões protestantes não suficientemente protestantizadas, têm resultado em uma influência de leituras conservadoras burguesas católicas romanas entre nós. O direitismo político foge dos textos sociais como o diabo foge da cruz, espiritualizando-os; enquanto o esquerdismo político torce os textos espirituais com uma forçada leitura social. A sexualidade humana (na Bíblia e na História da Primeira e da Segunda Alianças) gera o silêncio constrangido ou a elaboração mirabolante, como, por exemplo, para encontrar “base bíblica” para o casamento religioso e o casamento civil, ou para condenar, per se, a poligamia e apoiar, per se, os casamentos mistos. Um conhecido jornalista norte-americano uma vez definiu um fundamentalista como: “uma pessoa que se sente incomodada por saber que naquele momento, alguém, em algum lugar, está tendo prazer”...
Quanto à noção de “pecado”, há muito tempo, de fato, nós os protestantes, já adotamos a classificação católica romana de “veniais” e “mortais”, de primeira e de segunda. De primeira mesmo somente os sexuais (os que estão na Bíblia e os que nós achamos que estão sem estar); quanto ao resto... bem, o resto é apenas o resto...
Para setores da nossa própria Diocese que, por convicção ou conveniência, não assimilaram o quarto item do Quadrilátero de Lambeth: o Episcopado Histórico, quando falam para suas Paróquias e Missões (mesmo com ferramentas e/ou subsídios extra-anglicanos) eles estão “ensinando”, “ministrando” ou passando a “visão”; quando o Bispo ensina e exorta a partir das Escrituras (com as mais genuínas ferramentas anglicanas) ele apenas expressa a sua “opinião”. A leitura condicionada pela eclesiologia e pelo exercício do poder.
Se fizéssemos uma pesquisa honesta sobre qual o texto da Bíblia menos levado a sério pela grande maioria dos ramos da Cristandade hoje, ganharia disparado Mateus 18.15-17: “Ora, se teu irmão pecar, vai, e repreende-o entre ti e ele só; se te ouvir terás ganho o teu irmão; mas se não te ouvir, leva ainda contigo um ou dois, para que pela palavra de duas ou três testemunhas toda palavra seja confirmada. Se recusar ouvi-los, dize-o à igreja; e se também recusar ouvir a igreja, considera-o como gentio e publicano”. Em 47 anos como evangélico, conhecendo desde a permissividade liberal à inquisição fundamentalista, com a falta de amor e de busca de restauração, o atirar da primeira pedra, a maledicência, a incontinência verbal das pastorais, a seleção e hierarquia dos pecados e as condenações sem defesa e sem provas, “queimando-se”, quase sempre, essas etapas ensinadas pelo nosso Senhor e Salvador, tenho percebido como, em si privando de obedecer à Palavra, concorremos para que a Igreja seja uma comunidade patogênica e não uma comunidade terapêutica.
E ainda temos a pretensão de dizer que somos bíblicos...
Deus é paciente com essas formas de tomar o seu nome em vão, mas, confesso, nós, nem tanto.
Sola Scriptura! Se fosse romano seria tentado a rezar uma litania que, entre outras precações pediria: “Martinho Lutero... Orai por nós!”.
Certa vez, numa reunião da Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL), o conhecido pregador argentino Juan Carlos Ortiz relatava que quando ele se converteu comprou um novo exemplar da Bíblia e o leu marcando com um lápis vermelho durante um ano. Por dez anos ele só meditava e pregava nos versículos marcados. Começou, então, a passar por um perceptível vazio espiritual, uma sensação de aridez que o estava seriamente afetando. Clamou ao Senhor em uma madrugada e ouviu, com muita clareza, uma voz interior que dizia: “Pregue sobre os versículos não-riscados”. Foi que passou a fazer, e o seu ministério mudou.
Na Primeira Aliança havia tempo de estudo e tempo de esquecimento e, até, de “perda” da Palavra. E aí o Senhor levantava reis ou profetas para uma restauração. Dois textos, em particular, foram permanentemente esquecidos pelos judeus: os que instituíam o Ano Sabático e o Ano do Jubileu (que incomodam até hoje), com esse negócio de perdão de dívidas e devolução de propriedades, pois ninguém é de ferro para aceitar a conversão do bolso...
Há muitos cristãos vivendo a primeira fase de Juan Carlos Ortiz, e há muitos cristãos que têm os seus “anos de jubileu” particulares, praticando um peculiar esporte “o salto aos versículos” incômodos, especialmente aqueles que se chocam com a nossa cultura nacional ou regional, com a nossa subcultura eclesiástica, com nossas “visões” teológicas, com nossa perspectiva de classe, com nossa ideologia política, com nossas ferramentas de leituras do texto. Alguém afirmou que se todos os pastores pregassem sobre todos os textos bíblicos de forma expositiva, sistemática e sincera, todos seriam demitidos, nas várias denominações, em versículos diferentes. E, assim, que um vai tendo a “sua” Bíblia, particular, devidamente deletada, expurgada dos textos incômodos, domesticada.
Certa vez ouvi do Pároco anglicano de St. Benedict, Plantation, Flórida, EUA, que os únicos pastores que são obrigados a pregar sobre a Bíblia toda, gostem ou não dos versículos, são os anglicanos e os luteranos, por causa da leitura dos textos do dia, previstos em nossos livros litúrgicos, e que isso faz uma tremenda diferença. Nem todos em nossa Diocese se submetem a essa mui antiga e salutar prática, mas adotam a escolha “inspirada e adequada para o momento” de outras tradições, com inevitáveis prejuízos para si e para o seu rebanho.
Temos, por outro lado, de termos cuidado para não tornarmos os comentários das notas de rodapé parte do Cânon, e sermos totalmente condicionados por eles. Os deuterocanônicos são usados pelos herdeiros da Primeira Reforma como úteis para instrução, mas não como fonte de doutrinas.
Nós evangélicos temos que travar uma luta permanente para sermos o que somos com nossa leitura da Bíblia, cercados por textos e pregadores das tradições liberal (moderna e pós-moderna), e, principalmente, fundamentalista. Queremos ouvir a Palavra, usando de todas as ferramentas que nos auxiliem, sem negá-la e sem aprisioná-la em uma camisa de força. Embora os ataques liberais sejam uma realidade, o que sofremos mais são os ataques dos fundamentalistas, que se acham os verdadeiros evangélicos, quando, na realidade, são a sua negação pelo extremismo. A adoção de ministérios como Encontro de Casais e de Jovens com Cristo, e Cursilhos de Cristandade, em suas versões protestantes não suficientemente protestantizadas, têm resultado em uma influência de leituras conservadoras burguesas católicas romanas entre nós. O direitismo político foge dos textos sociais como o diabo foge da cruz, espiritualizando-os; enquanto o esquerdismo político torce os textos espirituais com uma forçada leitura social. A sexualidade humana (na Bíblia e na História da Primeira e da Segunda Alianças) gera o silêncio constrangido ou a elaboração mirabolante, como, por exemplo, para encontrar “base bíblica” para o casamento religioso e o casamento civil, ou para condenar, per se, a poligamia e apoiar, per se, os casamentos mistos. Um conhecido jornalista norte-americano uma vez definiu um fundamentalista como: “uma pessoa que se sente incomodada por saber que naquele momento, alguém, em algum lugar, está tendo prazer”...
Quanto à noção de “pecado”, há muito tempo, de fato, nós os protestantes, já adotamos a classificação católica romana de “veniais” e “mortais”, de primeira e de segunda. De primeira mesmo somente os sexuais (os que estão na Bíblia e os que nós achamos que estão sem estar); quanto ao resto... bem, o resto é apenas o resto...
Para setores da nossa própria Diocese que, por convicção ou conveniência, não assimilaram o quarto item do Quadrilátero de Lambeth: o Episcopado Histórico, quando falam para suas Paróquias e Missões (mesmo com ferramentas e/ou subsídios extra-anglicanos) eles estão “ensinando”, “ministrando” ou passando a “visão”; quando o Bispo ensina e exorta a partir das Escrituras (com as mais genuínas ferramentas anglicanas) ele apenas expressa a sua “opinião”. A leitura condicionada pela eclesiologia e pelo exercício do poder.
Se fizéssemos uma pesquisa honesta sobre qual o texto da Bíblia menos levado a sério pela grande maioria dos ramos da Cristandade hoje, ganharia disparado Mateus 18.15-17: “Ora, se teu irmão pecar, vai, e repreende-o entre ti e ele só; se te ouvir terás ganho o teu irmão; mas se não te ouvir, leva ainda contigo um ou dois, para que pela palavra de duas ou três testemunhas toda palavra seja confirmada. Se recusar ouvi-los, dize-o à igreja; e se também recusar ouvir a igreja, considera-o como gentio e publicano”. Em 47 anos como evangélico, conhecendo desde a permissividade liberal à inquisição fundamentalista, com a falta de amor e de busca de restauração, o atirar da primeira pedra, a maledicência, a incontinência verbal das pastorais, a seleção e hierarquia dos pecados e as condenações sem defesa e sem provas, “queimando-se”, quase sempre, essas etapas ensinadas pelo nosso Senhor e Salvador, tenho percebido como, em si privando de obedecer à Palavra, concorremos para que a Igreja seja uma comunidade patogênica e não uma comunidade terapêutica.
E ainda temos a pretensão de dizer que somos bíblicos...
Deus é paciente com essas formas de tomar o seu nome em vão, mas, confesso, nós, nem tanto.
Sola Scriptura! Se fosse romano seria tentado a rezar uma litania que, entre outras precações pediria: “Martinho Lutero... Orai por nós!”.
Foi bispo anglicano da Diocese do Recife e autor de, entre outros, Cristianismo e Política — teoria bíblica e prática histórica e A Igreja, o País e o Mundo — desafios a uma fé engajada. Faleceu no dia 26 de fevereiro de 2012 em Olinda (PE).
- Textos publicados: 29 [ver]
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