Opinião
- 05 de outubro de 2022
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A arte não é uma linguagem universal
Por Héber Negrão
Cristãos em todas as culturas devem ser encorajados a engajar-se com Deus através de suas próprias expressões artísticas.
Nos últimos anos, a igreja passou a adotar novas estratégias para a sua atuação na missão de Deus. Áreas acadêmicas como antropologia, linguística e educação forneceram o fundamento intelectual para tais abordagens.
Este artigo trata do valor que Deus dá à beleza conforme revelado nas Escrituras e como isso fundamenta o uso das artes de forma culturalmente apropriada na adoração cristã no trabalho missionário. O emergente campo da etnodoxologia, influenciado por áreas como a missiologia, a adoração e as artes, surge para encabeçar esse movimento.
A beleza importa para a adoração
“Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo”, disse o pregador (Ec 3.11). Deus ama a beleza. Ele plantou árvores no jardim do Éden que eram agradáveis aos olhos e boas para se comer (Gn 2.9). Ele encheu com seu Espírito dois artesãos, Bezalel e Oliabe, para produzirem belíssimas esculturas de ouro para o tabernáculo (Êx 31.3). Ele colocou um arco-íris colorido no céu para reforçar seu pacto com a humanidade (Gn 9.12,13). Ele revela a sua glória através da beleza da criação (Sl 19.1). Deus valoriza a estética e trabalha lindamente no mundo que criou.1
O Salmista diz que há esplendor (glória) e formosura no santuário do Senhor (Sl 96.6), indicando que ele quer ser louvado com toda a beleza que o seu povo pode lhe oferecer. Deus dotou a humanidade com diferentes culturas para que os povos pudessem adorá-lo com toda variedade de tradições e costumes. Os israelitas, por exemplo, usavam seus instrumentos para cantar ao Senhor, como vemos no salmo 150. Jesus liberou seus seguidores das práticas de adoração tradicionalmente judaicas e samaritanas quando inaugurou um novo tempo em que a adoração aconteceria em espírito e em verdade (Jo 4); dessa forma, os gregos estariam livres para cultuar ao Senhor de sua forma peculiar, sem necessariamente identificarem-se com a religião judaica (At 15). A beleza da cultura manifesta em formas artísticas locais é um elemento essencial nas expressões de adoração a Deus pelos povos ao redor do mundo. Uma vez que a criatividade é parte da Imago Dei (imagem de Deus) em nós, as artes que fazemos podem “refletir algo da beleza e da verdade de Deus” (CTC II-A-5).
Etnodoxologia: uma nova abordagem para adoração e missões
A relação entre adoração e missões tem sido extensivamente enfatizada por teólogos como John Piper, que afirma: “As missões existem porque não há adoração”2. Em outras palavras, a atividade missionária só é necessária porque ainda há povos em diferentes partes do mundo que não rendem glórias a Deus como o único e verdadeiro Deus. Considerando que a verdadeira adoração é a razão para missões e que Deus deseja ser adorado na beleza da sua santidade, uma nova estratégia missional emerge. A etnodoxologia visa integrar as coisas belas que os povos já produzem em sua cultura com a sua forma de adorar o Deus verdadeiro.
Dave Hall, inicialmente, definiu a etnodoxologia como “o estudo das maneiras pelas quais os povos de diversas culturas glorificam o único Deus vivo”.3 Este conceito começou a ser pensado a partir dos anos 60, quando etnomusicólogos da missão Tradutores Wycliffe da Bíblia, como Vida Chenoweth4 e Tom Avery,5 passaram a promover a ideia de que os povos poderiam adorar a Deus com suas músicas tradicionais ao invés da prática, então comum, de traduzir músicas da cultura ocidental. A Rede Global de Etnodoxologia (GEN), um grupo formado por mais de 350 pessoas que atuam na área em mais de 80 países, ampliou o conceito, estabelecendo que “a etnodoxologia é o estudo interdisciplinar de como os cristãos de cada cultura se relacionam com Deus e com o mundo através de suas próprias expressões artísticas”.6
A arte não é uma linguagem universal
A Etnodoxologia emerge do desenvolvimento do pensamento missiológico sobre duas ideias principais. A primeira delas está relacionada à compreensão de que as artes não comunicam da mesma maneira em todas as culturas. As artes são um meio de comunicação, e cada cultura tem seus próprios códigos, usados para transmitir a linguagem artística. Por esta razão, não podemos dizer que a música, o teatro e as artes visuais são linguagens universais.
Robin Harris, diretora do Centro de Excelência em Artes Mundiais da Universidade Internacional de Dallas diz que “esse aspecto fundamental da etnodoxologia a diferencia de várias outras abordagens de artes em missões”.7 Não entender este conceito elementar pode levar obreiros transculturais a identificarem suas próprias tradições artísticas como mais apropriadas e perfeitamente adequadas para comunicar o evangelho; afinal de contas, se essa chamada linguagem universal é boa para mim, ela pode ser boa para os outros também. O resultado é que eles podem acabar privilegiando suas tradições artísticas em detrimento das tradições daquele povo. “Respeitar as diferenças culturais e valorizar as expressões artísticas naturais do país” seria uma abordagem mais apropriada e mais alinhada com o Compromisso da Cidade do Cabo (CTC II-A-5).
Um ótimo exemplo que demonstra que a arte não é uma linguagem universal, amplamente compreendida por todas as culturas, é a iconografia do povo Warlpiri, da Austrália central. A arte visual deles usa símbolos próprios para ilustrar histórias inteiras. Por exemplo, um arco representa uma pessoa, um arco pontilhado representa um espírito e uma linha horizontal, uma pessoa enferma ou morta. Se alguém de outro país vir esses símbolos pela primeira vez não compreenderá a história sem que um Warlpiri primeiramente lhe explique o significado dos símbolos.8
Outro exemplo vem de William Wadé Harris, um conhecido evangelista liberiano que atuou na África Ocidental no início do século 20. Ele cresceu na tradição metodista como resultado da atividade missionária e aprendeu vários hinos ocidentais; alguns deles até se tornaram suas músicas favoritas. Ainda assim, durante seu ministério, quando africanos recém-convertidos lhe perguntaram que tipo de canções eles deveriam cantar para agradar a Deus, Harris respondeu sabiamente: “Deus não tem um tipo de música favorito [. . .] Basta oferecermos hinos de louvor a ele com nossa própria música em nossa própria língua e ele vai entender.”9 O resultado foi que os novos cristãos adaptaram várias de suas músicas tradicionais. Atualmente, eles têm mais de mil hinos de sua autoria que contam histórias da Bíblia e servem como oração e confissão de fé.
Outro exemplo vem de William Wadé Harris, um conhecido evangelista liberiano que atuou na África Ocidental no início do século 20. Ele cresceu na tradição metodista como resultado da atividade missionária e aprendeu vários hinos ocidentais; alguns deles até se tornaram suas músicas favoritas. Ainda assim, durante seu ministério, quando africanos recém-convertidos lhe perguntaram que tipo de canções eles deveriam cantar para agradar a Deus, Harris respondeu sabiamente: “Deus não tem um tipo de música favorito [. . .] Basta oferecermos hinos de louvor a ele com nossa própria música em nossa própria língua e ele vai entender.”9 O resultado foi que os novos cristãos adaptaram várias de suas músicas tradicionais. Atualmente, eles têm mais de mil hinos de sua autoria que contam histórias da Bíblia e servem como oração e confissão de fé.
As artes locais são um meio de comunicação eficaz
A segunda ideia que contribuiu para o surgimento da etnodoxologia é que as artes são um eficaz meio de comunicação e, se corretamente abordadas, podem transmitir a mensagem do evangelho de forma muito poderosa. Brian Schrag, etnomusicólogo e consultor de artes da SIL Internacional, apresenta algumas razões para tal eficácia. As artes locais podem atribuir importância à mensagem, aumentando o impacto desta no ouvinte. Além disso, elas podem ajudar as pessoas a memorizar informações e a expressar assuntos sensíveis sem correrem o risco de serem reprimidas.10
Alguns anos atrás, participei de um workshop de etnoartes com os líderes da igreja Xerente, um povo indígena no Brasil Central. Quando expliquei que o salmo 40 nos diz que Deus nos dá novas canções para testemunharmos dele para outras pessoas, um dos participantes se levantou e disse: “A música é como uma flecha que atravessa o nosso coração”.11 Ele estava certo. Usar tradições artísticas locais para apresentar novos conceitos bíblicos que são desconhecidos para as pessoas é como “servir as Escrituras em pratos da culinária local”12. As pessoas podem entender a mensagem porque ela lhes é apresentada em formas artísticas familiares. Em outro workshop que ensinei, um povo do Timor Leste adaptou as canções tradicionais cantadas no pagamento do dote de casamento para compor canções bíblicas sobre o bom relacionamento que os cônjuges devem ter em casa.
Antes de sentir-se compelido a usar qualquer expressão artística da cultura para adorar a Deus, é importante lembrar que o pecado afetou todos os aspectos da nossa existência. Isso significa que, em cada cultura, existem aspectos que podem ser utilizados para glorificar a Deus, mas também há expressões culturais que foram manchadas quando o homem caiu. Como resultado, as artes podem ser uma expressão tanto “da realidade de nossa condição de perdidos quanto da esperança [. . .] de que tudo pode ser novo”. (CTC II-A-5)
Recursos para integrar artes locais na adoração
Com objetivo de ajudar os cristãos a entender as artes locais da comunidade onde servem, Brian Schrag, juntamente com uma equipe da GEN, compilou o Criação Conjunta de Artes Locais: Um Manual para Ajudar Comunidades a Alcançarem seus Alvos do Reino.13 Uma vez que a GEN valoriza as “artes como indispensáveis ao desenvolvimento humano”14 e respeita a capacidade das comunidades de “moldar a realidade usando suas próprias formas artísticas”, este livro foi escrito para levar as comunidades a usarem suas artes para refletir valores do Reino de Deus.
Através de um processo flexível envolvendo sete passos, os promotores de artes terão algumas conversas com a comunidade (uma conversa para cada passo), que os ajudará a entender a cultura local e suas artes. Essas conversas também os ajudarão a fazer uma profunda análise do gênero artístico. Por fim, a comunidade criará uma arte com o objetivo de resolver os problemas imediatos que identificou.
Passo 1: Conhecer a comunidade e suas artes. Oferece um olhar amplo nos aspectos culturais da comunidade e encoraja os seus membros a verem os diferentes recursos artísticos de que dispõem.
Passo 2: Escolher alvos do Reino.15 Aborda aspectos bons e ruins da comunidade relacionando-os com os valores do Reino de Deus. O objetivo é ajudá-los a escolher quais aspectos negativos eles querem mudar para poderem refletir melhor o Reino de Deus.
Passo 3: Conectar alvos aos gêneros. Ajuda a comunidade a identificar quais tradições artísticas são mais apropriadas para comunicar a mensagem que vai levá-los a alcançar o alvo do Reino que escolheram.
Passo 4: Analisar gêneros e eventos. Faz uma análise detalhada do gênero artístico escolhido.
Passo 5: Despertar a criatividade. Encoraja a comunidade a criar artes com a mensagem para alcançar os alvos do Reino. Essa criação pode acontecer através de várias atividades apresentadas no livro.
Passo 6: Aperfeiçoar os resultados. Procura meios adequados dentro da cultura para avaliar as artes que foram produzidas a fim de aprimorá-las.
Passo 7: Celebrar e integrar para a continuidade. Planeja para que este processo continue acontecendo no futuro, com novos alvos do Reino, gêneros artísticos e público-alvo.
Baseado nesse livro, a GEN desenvolveu o curso Artes Para o Reino (APR), um worshop intensivo de uma semana. A premissa central do APR é que os facilitadores de arte trabalhem junto com a comunidade para criar novas formas artísticas. Os benefícios de tal abordagem incluem a apropriação do trabalho por parte do povo e uma possibilidade maior de continuidade da tradição artística.16
Desde 2011 até 2021, mais de 900 participantes foram treinados no APR em 14 países. Tal variedade de lugares de treinamento e línguas levou à publicação de uma versão condensada do Criação Conjunta de Artes Locais, traduzida nos seguintes idiomas: português, espanhol, bahasa indonésio e francês. O livro está em processo de tradução para outras quatro línguas (russo, mongol, coreano e chinês).
Deus deseja ser adorado por todos os povos na beleza da sua santidade (Sl 96.9) e dotou todas as culturas do mundo com tradições artísticas belas e únicas. Como Bezalel e Oliabe, etnodoxólogos e artistas são chamados para criar artes novas e belas e levar outros a usarem o que há de belo em sua cultura, dada por Deus, para adorá-lo.
Saiba mais
» A Arte e a Bíblia, de Francis Schaeffer
» A Arte Moderna e a Morte de Uma Cultura, de H. R. Rookmaaker
» Contando e Cantando (Volume 2), de Henriqueta Rosa F. Braga
» Ser Evangélico Sem Deixar de Ser Brasileiro, de Gerson Borges Martins
» Louvor, Adoração e Liturgia, de Rubem Martins Amorese
Notas
1. Covington, David A. A Redemptive Theology of Art: Restoring Godly Aesthetics to Doctrine and Culture (Grand Rapids: Zondervan Academic, 2018).
2. John Piper, Alegrem-se os Povos. A Soberania de Deus nas Missões (São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2012), 35.
3. Dave Hall, ‘Every Team Needs One: The Essential Role of the Worship-Arts Leader,’ Mission Frontiers 23, no. 2 (2001): 24, https://www.missionfrontiers.org/issue/article/every-team-needs-one.
4. Vida Chenoweth, ‘Spare Them Western Music!’, Evangelical Missions Quarterly 20 (1984): 30–35.
5. Tom Avery, ‘Etnomusicologia,’ in Perspectivas no Movimento Cristão Mundial (São Paulo, SP: Vida Nova, 2009).
6. Global Ethnodoxology Network, ‘What Is Ethnodoxology?’ (2021), https://www.worldofworship.org/what-is-ethnodoxology/.
7. Robin Harris, ‘The Great Misconception: Why Music Is Not a Universal Language,’ in Worship and Mission for the Global Church: An Ethnodoxology Handbook, ed. James R Krabill, Frank Fortunato, Robin P Harris, and Brian Schrag (Pasadena, CA: William Carey Library, 2013), 82-89.
8. Scott A. Moreau, Contextualizing the Faith: A Holistic Approach (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2018).
9. James Krabill, ‘How a West African Evangelist Unleashed Musical Creativity Among New Believers,’ in Worship and Mission for the Global Church: An Ethnodoxology Handbook, ed. James R Krabill, Frank Fortunato, Robin P Harris, and Brian Schrag (Pasadena, CA: William Carey Library, 2013), 245-249.
10. Para mais características de artes enquanto meios de comunicação, leia essa entrevista com Brian Schrag https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2014-01-pt-br/a-hora-da-etnodoxologia-chegou
11. Você pode ler a história completa aqui: https://ultimato.com.br/sites/paralelo10/2017/10/musica-uma-flecha-que-atravessa-o-coracao/.
12. Michelle Petersen, ‘Serving Scripture in Local Dishes: Seven Analytic Lenses,’ presented at the International Bible Translation Conference, Dallas, TX, October 14, 2013.
13. Brian Schrag, Creating Local Arts Together: A Manual to Help Communities Reach Their Kingdom Goals, ed. James Krabill (Pasadena, CA: William Carey Library, 2013), https://www.worldofworship.org/ethnodoxology-handbook-manual/.
14. Leia todos os valores de GEN em https://www.worldofworship.org/core-values.
15. O livro define alvos do reino como um objetivo que uma comunidade deveria alcançar para ser mais parecida com o reino de Deus. Oportunidades econômicas, identidade e sustentabilidade, Tradução da Bíblia e vida espiritual pessoal são alguns dos alvos do Reino propostos no manual.
16. Neil Coulter, ‘Assessing Music Shift: Adapting EGIDS for a Papua New Guinea Community,’ Language Documentation and Description 10 (July, 2014): 61–81.
Publicado originalmente por Movimento de Lausanne. Reproduzido com autorização.
Publicado originalmente por Movimento de Lausanne. Reproduzido com autorização.
- Héber Negrão é o coordenador de antropologia e etnoartes da Associação Linguística Evangélica Missionária (ALEM) e membro do Global Ethnodoxology Network. Ele está envolvido no ministério de etnoartes há 16 anos. Atualmente, está cursando PhD em Artes Mundiais na Universidade Internacional de Dallas. Seu desejo é ver povos de todas as nações louvando a Deus com os dons artísticos apropriados para a sua cultura. Héber também serve como coordenador online de línguas na Equipe de Comunicação do Movimento Lausanne. Ele é casado com Sophia e eles têm dois filhos.
JESUS – SINGULAR, SUPERIOR, SUFICIENTE | REVISTA ULTIMATO
Jesus – tal como revelado nas Escrituras – está sendo deixado de lado em muitas igrejas. É necessário um esforço para chamar atenção sobre isso. A fé e a vida cristã autênticas têm como base a centralidade de Jesus Cristo. Não existe cristianismo sem Cristo. Na intenção louvável de ser relevante, podemos cair na tentação de fazer concessões desfigurando o evangelho, por exemplo. Somos também tentados a diminuir as exigências éticas e morais do evangelho, desobrigando-nos das decorrências naturais da mensagem e da obra de Cristo.
Saiba mais
» A Arte e a Bíblia, de Francis Schaeffer
» A Arte Moderna e a Morte de Uma Cultura, de H. R. Rookmaaker
» Contando e Cantando (Volume 2), de Henriqueta Rosa F. Braga
» Ser Evangélico Sem Deixar de Ser Brasileiro, de Gerson Borges Martins
» Louvor, Adoração e Liturgia, de Rubem Martins Amorese
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