Opinião
- 20 de julho de 2016
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A anatomia do caráter
Na introdução de seu comentário sobre o livro de Salmos, João Calvino chama os Salmos de “a anatomia da alma” e explica que não há emoção humana que não esteja de algum modo expressa nos Salmos. Tomando de empréstimo essa designação, gosto de pensar em Provérbios e particularmente a passagem de Pv 4.20-27 como a “anatomia do caráter”. Primeiro porque nessa passagem o autor, de fato, menciona diversas partes do corpo (olhos, ouvidos, lábios, pés, mãos, coração) para falar de integridade de caráter. Segundo, porque se percebe a relação direta entre o caráter e a função dos membros do corpo.
Vivemos, evidentemente, numa constante crise de integridade que assume proporções perturbadoras. Chama-me a atenção as explicações que se dão para isentar alguém de um crime ou de alguma responsabilidade. Essas explicações refletem, grosso modo, uma ou mais das diversas compreensões a respeito da conduta humana. Alguns entendem que nossas ações e atitudes são determinadas for fatores alheios a nós: a genética, a herança familiar; o modo como foi criado determinam quem você é e o que você faz. Por isso, você não pode responder sozinho por seus erros. Além disso, você pode ser vítima de decisões alheias a você.
Outros acham que as circunstâncias ditam nossas ações e atitudes. Somos produtos do nosso meio, a sociedade nos molda, por isso, é também responsável por nossas ações e atitudes. Outros ainda entendem que somos livres para escolher a nossa conduta e se cultivarmos bons hábitos seremos pessoas idôneas. Por outro lado, somos também os responsáveis por todos nossos atos e atitudes. Mas, de maneira geral, a cultura moderna tem como ideal a autonomia humana, isto é, o ser humano é livre para escolher aquilo que ele mesmo tem como certo para si.
Na visão judaico-cristã, o ser humano é propenso ao mal, independente de sua conduta ou das circunstâncias. As leis e normas visam não só disciplinar a conduta, ações e atitude das pessoas, mas a desenvolver o caráter do indivíduo. Além disso, entende que os valores humanos estão fundados no ser e caráter de Deus, portanto, são absolutos. Assim, o padrão moral e ético dos indivíduos e da sociedade depende não do que o próprio indivíduo e sociedade estabelecem para si, mas do que Deus estabelece como norma e padrão.
Na perspectiva da sabedoria é o temor do Senhor e as escolhas decorrentes desse temor que formam o caráter humano (Pv 16.6). A Bíblia reconhece basicamente duas realidades da vida humana: interior e exterior. A primeira inclui alma, espírito, mente, coração, entranhas, etc, e a segunda, o corpo, carne, ossos, etc. Provérbios 4.20-27 mostram como essas duas realidades se unem. Esses versículos falam da: a) Recepção de informação pelos ouvidos e olhos, vv. 20-21; b) Saúde do corpo, v. 22; c) Fonte da vida, o coração, v. 23; d) Fluir da vida pela boca e lábios, v. 24; e) a Perspectiva, ponto de vista dos olhos, pálpebras, v. 25; f) Rumo, direcionamento dos pés e passos, vv. 26-27.
Percebemos dois movimentos. Um para dentro por meio dos olhos e ouvidos, e outro para fora, pela boca, lábios, olhos e passos. Os olhos e ouvidos alimentam o coração que é fonte de vida e de onde saem as palavras, as decisões, escolhas e direcionamentos para a vida. Por isso, a conclusão do sábio é que de tudo que se deve guardar, o coração é o mais importante porque dele procedem as fontes da vida. Rollo May diz que “todo problema de personalidade é um problema moral, isto é, todo problema de personalidade tem implicações morais fundamentais, pois está ligado à questão que é básica a todos os costumes: 'Como devo viver?’”1. Na sabedoria de Provérbios, tudo que o ser humano realiza flui do seu interior, seu coração, e se o coração for nutrido com o temor do Senhor por meio dos olhos e dos ouvidos, trará saúde para o corpo.
Na cultura contemporânea há uma supervalorização do corpo, da estética, do bem estar físico, da mente e razão, e das emoções e sentimentos. Podíamos dizer que hoje melhor do que nunca a sociedade aprendeu a valorizar o ser humano como um todo. Por outro lado, algo está muito errado com a sociedade quando se vê que pessoas belas, bonitas e saudáveis vivem numa pobreza de caráter, num vazio de sentido, quando parece que o maior alvo das pessoas é serem belas, bonitas, saudáveis e realizadas, porém, estão intensamente insatisfeitas, deprimidas, doentes e causando mal aos outros. Há algo de errado na harmonia entre a existência interior e exterior do ser.
Nota:
1. Rollo May. “A arte do aconselhamento psicológico”. p. 155.
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Foto: Merlijn Enserink/Freeimages.com
Vivemos, evidentemente, numa constante crise de integridade que assume proporções perturbadoras. Chama-me a atenção as explicações que se dão para isentar alguém de um crime ou de alguma responsabilidade. Essas explicações refletem, grosso modo, uma ou mais das diversas compreensões a respeito da conduta humana. Alguns entendem que nossas ações e atitudes são determinadas for fatores alheios a nós: a genética, a herança familiar; o modo como foi criado determinam quem você é e o que você faz. Por isso, você não pode responder sozinho por seus erros. Além disso, você pode ser vítima de decisões alheias a você.
Outros acham que as circunstâncias ditam nossas ações e atitudes. Somos produtos do nosso meio, a sociedade nos molda, por isso, é também responsável por nossas ações e atitudes. Outros ainda entendem que somos livres para escolher a nossa conduta e se cultivarmos bons hábitos seremos pessoas idôneas. Por outro lado, somos também os responsáveis por todos nossos atos e atitudes. Mas, de maneira geral, a cultura moderna tem como ideal a autonomia humana, isto é, o ser humano é livre para escolher aquilo que ele mesmo tem como certo para si.
Na visão judaico-cristã, o ser humano é propenso ao mal, independente de sua conduta ou das circunstâncias. As leis e normas visam não só disciplinar a conduta, ações e atitude das pessoas, mas a desenvolver o caráter do indivíduo. Além disso, entende que os valores humanos estão fundados no ser e caráter de Deus, portanto, são absolutos. Assim, o padrão moral e ético dos indivíduos e da sociedade depende não do que o próprio indivíduo e sociedade estabelecem para si, mas do que Deus estabelece como norma e padrão.
Na perspectiva da sabedoria é o temor do Senhor e as escolhas decorrentes desse temor que formam o caráter humano (Pv 16.6). A Bíblia reconhece basicamente duas realidades da vida humana: interior e exterior. A primeira inclui alma, espírito, mente, coração, entranhas, etc, e a segunda, o corpo, carne, ossos, etc. Provérbios 4.20-27 mostram como essas duas realidades se unem. Esses versículos falam da: a) Recepção de informação pelos ouvidos e olhos, vv. 20-21; b) Saúde do corpo, v. 22; c) Fonte da vida, o coração, v. 23; d) Fluir da vida pela boca e lábios, v. 24; e) a Perspectiva, ponto de vista dos olhos, pálpebras, v. 25; f) Rumo, direcionamento dos pés e passos, vv. 26-27.
Percebemos dois movimentos. Um para dentro por meio dos olhos e ouvidos, e outro para fora, pela boca, lábios, olhos e passos. Os olhos e ouvidos alimentam o coração que é fonte de vida e de onde saem as palavras, as decisões, escolhas e direcionamentos para a vida. Por isso, a conclusão do sábio é que de tudo que se deve guardar, o coração é o mais importante porque dele procedem as fontes da vida. Rollo May diz que “todo problema de personalidade é um problema moral, isto é, todo problema de personalidade tem implicações morais fundamentais, pois está ligado à questão que é básica a todos os costumes: 'Como devo viver?’”1. Na sabedoria de Provérbios, tudo que o ser humano realiza flui do seu interior, seu coração, e se o coração for nutrido com o temor do Senhor por meio dos olhos e dos ouvidos, trará saúde para o corpo.
Na cultura contemporânea há uma supervalorização do corpo, da estética, do bem estar físico, da mente e razão, e das emoções e sentimentos. Podíamos dizer que hoje melhor do que nunca a sociedade aprendeu a valorizar o ser humano como um todo. Por outro lado, algo está muito errado com a sociedade quando se vê que pessoas belas, bonitas e saudáveis vivem numa pobreza de caráter, num vazio de sentido, quando parece que o maior alvo das pessoas é serem belas, bonitas, saudáveis e realizadas, porém, estão intensamente insatisfeitas, deprimidas, doentes e causando mal aos outros. Há algo de errado na harmonia entre a existência interior e exterior do ser.
Nota:
1. Rollo May. “A arte do aconselhamento psicológico”. p. 155.
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Eu creio. E agora?
O padrão de conduta é alto demais e a carne é fraca demais, todavia a salvação é grande demais
Foto: Merlijn Enserink/Freeimages.com
Pastor presbiteriano e doutor em Antigo Testamento, é professor e capelão no Seminário Presbiteriano do Sul, e tradutor de obras teológicas. É autor do livro O propósito bíblico da missão.
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