Opinião
- 29 de dezembro de 2017
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Vox populi, vox Dei
Neste ano de 2017 estamos celebrando 500 anos de reforma. Estamos celebrando um movimento de reforma que já dura 500 anos. Estamos há 500 anos protestando.
Os fatos recentes envolvendo questões religiosas no espaço chamado secular e o momento cultural, social, econômico e político de nosso país tornam a celebração da Reforma Protestante não apenas importante, dada a sua relevância na história do Ocidente, como também imprescindível e urgente, considerando a atualidade dos princípios que os reformadores deixaram como legado.
Embora resulte de um processo histórico desde os séculos 14 e 15, com personagens notáveis, chamados pré-reformadores, como João Wycliffe (1325–1384), João Huss (1372–1415) e Jerônimo Savonarola (1452–1498), é comum considerar a data de 31 de outubro de 1517 o marco zero da Reforma Protestante do século 16. Naquele dia, o monge agostiniano Martinho Lutero (1483–1546) afixou suas 95 teses na porta da igreja da cidade de Wittenberg, convidando a comunidade acadêmica para debater suas críticas à Igreja Romana. Lutero desafiou a autoridade da igreja, chegando inclusive a afirmar, em 1519, que o papa, considerado infalível, podia errar.
>> A Reforma - O que você precisa saber e por quê <<
Em 1520, Lutero recebeu a Bula Papal, que o instava à retratação, sob pena de excomunhão. Em resposta, Lutero e seus simpatizantes de Wittenberg queimaram a Bula em praça pública. Em 1521, na Dieta de Worms convocada pelo imperador Carlos V, mais uma vez constrangido a se retratar, Lutero responde: “Não posso nem quero retratar-me, porque não é bom nem sincero agir contra a própria consciência. Que Deus me ajude! Amém!”.
Além de Lutero e seu discípulo Filipe Melanchthon (1497–1560), a Reforma Protestante tem outros personagens e movimentos de igual importância: Ulrico Zuínglio (1484–1531), reformador da Suíça, no movimento chamado Segunda Reforma; os reformadores radicais ou Anabatistas, que defenderam a separação completa entre igreja e Estado; e em especial João Calvino (1509–1564), radicado em Genebra, responsável pelo calvinismo – o mais completo sistema teológico protestante.
O fenômeno religioso e o fenômeno social
Ainda mais evidente é o fato de que a Reforma Protestante, como fenômeno religioso, “não pode ser analisada só com as categorias religiosas. Quem procura fazer uma análise apenas religiosa acaba não fazendo sequer uma análise religiosa”, comenta Leonardo Boff. O historiador Henrique Hauser lembra que “a Reforma do século 16 teve o duplo caráter de revolução social e revolução religiosa. As classes populares não se levantaram apenas contra a corrupção do dogma e os abusos do clero, mas também contra a miséria e a injustiça. Na Bíblia não buscaram apenas a doutrina da salvação pela graça, mas também a prova da igualdade original de todos os seres humanos”. Boff insiste que “Hegel, com razão, considera a Reforma Luterana uma Hauptrevolution” (revolução fundamental), porque “com Lutero, começa a liberdade de espírito”, liberdade que “não apenas se reconhece, mas é sumamente exigida”.
>> Para entender a Bíblia <<
Essa liberdade é conquistada mediante o rompimento com o “cativeiro babilônico” a que fora submetida a cristandade sob a hegemonia da Roma dos papas, que se articulava ao redor de interesses econômicos, políticos, jurídicos e militares. Na visão medieval, o poder civil adquiria legitimidade somente em virtude da delegação que recebia do poder religioso. A única autoridade reconhecida era a que provinha de Deus, exercida mediante o único poder religioso reconhecido no Ocidente, a Igreja Romana. Esse era o conceito de poder político-religioso de direito divino. Visão definida pelo Papa Gregório VII (1025–1085), foi muitas vezes reforçada pelos papas posteriores, inclusive por Inocêncio III, que chegou a afirmar que “assim como a Lua toma emprestado do Sol a luminosidade, assim o poder real recebe da autoridade pontifícia o brilho de sua dignidade”. Esse modelo sobrevive ainda hoje no Estado moderno do Vaticano, onde o supremo pontífice é ao mesmo tempo chefe espiritual da igreja e chefe temporal do Estado.
As afirmações fundamentais
Os fundamentos teológicos da Reforma Protestante sabotam de forma absoluta o modelo hierárquico e autoritário que funde os poderes religioso e político. O teólogo suíço André Bieler sugere que a Reforma exalta princípios que inauguram um tempo em que as democracias modernas se tornam a alternativa irreversível de organização social. A primeira afirmação dos reformadores foi que “um chamamento individual é endereçado por Deus a cada indivíduo, sem a necessária intermediação de uma hierarquia clerical, e isso faz de cada indivíduo uma pessoa única e responsável por si própria”, diz Biéler.
A segunda afirmação da Reforma é que “a vocação e a responsabilidade individuais levam ao exercício do sacerdócio universal da igreja”. Cada pessoa, sujeita apenas à autoridade da Palavra de Deus, é sacerdote de si mesma, responsável por sua vida espiritual, o que implica o rompimento com a hierarquia da igreja como detentora exclusiva da prerrogativa de administrar o sagrado. A partir dessa afirmação, a autoridade exercida de cima para baixo, do clero para o fiel, é subvertida. Agora, a autoridade repousa sobre o povo e pelo povo é delegada, de baixo para cima, tanto para o clero quanto para o trono.
Outro princípio fundamental da Reforma diz que a Bíblia, da qual cada pessoa é o intérprete único, responsável perante Deus, substitui o clero como fonte de autoridade. O povo é estimulado ao despertamento intelectual, e a sociedade, a prover educação cultural, fazendo com que os contextos influenciados pela Reforma se desenvolvam em termos de instrução e educação – imprescindíveis ao protagonismo individual e popular nos processos das democracias modernas.
Quando despertamos numa manhã ensolarada diante de muros onde se pode ler a pichação “Bíblia sim, Constituição não!”, imaginamos os reformadores se revirando no túmulo. O protestantismo que se fundamenta nos princípios da liberdade de consciência e na responsabilidade do indivíduo diante de Deus não é compatível com propostas de imposição de fé ou desrespeito às consciências individuais. O protestantismo é por definição um movimento libertário, quase anárquico, onde nenhum poder é exercido de modo legítimo sobre uma pessoa sem o seu consentimento, o que é válido também para a sociedade. Ainda que anterior ao protestantismo, a afirmação “o poder emana do povo e deve ser exercido em nome e em benefício do povo” tem parentesco com a Reforma Protestante, que rejeita qualquer autoridade imposta por uma hierarquia que se considere legitimada por Deus. A voz de Deus é a voz de Deus. Portanto, se alguém deve discernir e interpretar a voz de Deus, esse alguém não é a igreja, nem o clero, nem aristocracias, nem mesmo minorias ou maiorias. Quem deve discernir e interpretar a voz de Deus é a consciência individual. Considerando a impossibilidade de um pensamento homogêneo, ainda que teologicamente não seja verdadeiro, como critério para a construção da sociedade, vale a máxima: Vox populi, vox Dei.
Os fatos recentes envolvendo questões religiosas no espaço chamado secular e o momento cultural, social, econômico e político de nosso país tornam a celebração da Reforma Protestante não apenas importante, dada a sua relevância na história do Ocidente, como também imprescindível e urgente, considerando a atualidade dos princípios que os reformadores deixaram como legado.
Embora resulte de um processo histórico desde os séculos 14 e 15, com personagens notáveis, chamados pré-reformadores, como João Wycliffe (1325–1384), João Huss (1372–1415) e Jerônimo Savonarola (1452–1498), é comum considerar a data de 31 de outubro de 1517 o marco zero da Reforma Protestante do século 16. Naquele dia, o monge agostiniano Martinho Lutero (1483–1546) afixou suas 95 teses na porta da igreja da cidade de Wittenberg, convidando a comunidade acadêmica para debater suas críticas à Igreja Romana. Lutero desafiou a autoridade da igreja, chegando inclusive a afirmar, em 1519, que o papa, considerado infalível, podia errar.
>> A Reforma - O que você precisa saber e por quê <<
Em 1520, Lutero recebeu a Bula Papal, que o instava à retratação, sob pena de excomunhão. Em resposta, Lutero e seus simpatizantes de Wittenberg queimaram a Bula em praça pública. Em 1521, na Dieta de Worms convocada pelo imperador Carlos V, mais uma vez constrangido a se retratar, Lutero responde: “Não posso nem quero retratar-me, porque não é bom nem sincero agir contra a própria consciência. Que Deus me ajude! Amém!”.
Além de Lutero e seu discípulo Filipe Melanchthon (1497–1560), a Reforma Protestante tem outros personagens e movimentos de igual importância: Ulrico Zuínglio (1484–1531), reformador da Suíça, no movimento chamado Segunda Reforma; os reformadores radicais ou Anabatistas, que defenderam a separação completa entre igreja e Estado; e em especial João Calvino (1509–1564), radicado em Genebra, responsável pelo calvinismo – o mais completo sistema teológico protestante.
O fenômeno religioso e o fenômeno social
Ainda mais evidente é o fato de que a Reforma Protestante, como fenômeno religioso, “não pode ser analisada só com as categorias religiosas. Quem procura fazer uma análise apenas religiosa acaba não fazendo sequer uma análise religiosa”, comenta Leonardo Boff. O historiador Henrique Hauser lembra que “a Reforma do século 16 teve o duplo caráter de revolução social e revolução religiosa. As classes populares não se levantaram apenas contra a corrupção do dogma e os abusos do clero, mas também contra a miséria e a injustiça. Na Bíblia não buscaram apenas a doutrina da salvação pela graça, mas também a prova da igualdade original de todos os seres humanos”. Boff insiste que “Hegel, com razão, considera a Reforma Luterana uma Hauptrevolution” (revolução fundamental), porque “com Lutero, começa a liberdade de espírito”, liberdade que “não apenas se reconhece, mas é sumamente exigida”.
>> Para entender a Bíblia <<
Essa liberdade é conquistada mediante o rompimento com o “cativeiro babilônico” a que fora submetida a cristandade sob a hegemonia da Roma dos papas, que se articulava ao redor de interesses econômicos, políticos, jurídicos e militares. Na visão medieval, o poder civil adquiria legitimidade somente em virtude da delegação que recebia do poder religioso. A única autoridade reconhecida era a que provinha de Deus, exercida mediante o único poder religioso reconhecido no Ocidente, a Igreja Romana. Esse era o conceito de poder político-religioso de direito divino. Visão definida pelo Papa Gregório VII (1025–1085), foi muitas vezes reforçada pelos papas posteriores, inclusive por Inocêncio III, que chegou a afirmar que “assim como a Lua toma emprestado do Sol a luminosidade, assim o poder real recebe da autoridade pontifícia o brilho de sua dignidade”. Esse modelo sobrevive ainda hoje no Estado moderno do Vaticano, onde o supremo pontífice é ao mesmo tempo chefe espiritual da igreja e chefe temporal do Estado.
As afirmações fundamentais
Os fundamentos teológicos da Reforma Protestante sabotam de forma absoluta o modelo hierárquico e autoritário que funde os poderes religioso e político. O teólogo suíço André Bieler sugere que a Reforma exalta princípios que inauguram um tempo em que as democracias modernas se tornam a alternativa irreversível de organização social. A primeira afirmação dos reformadores foi que “um chamamento individual é endereçado por Deus a cada indivíduo, sem a necessária intermediação de uma hierarquia clerical, e isso faz de cada indivíduo uma pessoa única e responsável por si própria”, diz Biéler.
A segunda afirmação da Reforma é que “a vocação e a responsabilidade individuais levam ao exercício do sacerdócio universal da igreja”. Cada pessoa, sujeita apenas à autoridade da Palavra de Deus, é sacerdote de si mesma, responsável por sua vida espiritual, o que implica o rompimento com a hierarquia da igreja como detentora exclusiva da prerrogativa de administrar o sagrado. A partir dessa afirmação, a autoridade exercida de cima para baixo, do clero para o fiel, é subvertida. Agora, a autoridade repousa sobre o povo e pelo povo é delegada, de baixo para cima, tanto para o clero quanto para o trono.
Outro princípio fundamental da Reforma diz que a Bíblia, da qual cada pessoa é o intérprete único, responsável perante Deus, substitui o clero como fonte de autoridade. O povo é estimulado ao despertamento intelectual, e a sociedade, a prover educação cultural, fazendo com que os contextos influenciados pela Reforma se desenvolvam em termos de instrução e educação – imprescindíveis ao protagonismo individual e popular nos processos das democracias modernas.
Quando despertamos numa manhã ensolarada diante de muros onde se pode ler a pichação “Bíblia sim, Constituição não!”, imaginamos os reformadores se revirando no túmulo. O protestantismo que se fundamenta nos princípios da liberdade de consciência e na responsabilidade do indivíduo diante de Deus não é compatível com propostas de imposição de fé ou desrespeito às consciências individuais. O protestantismo é por definição um movimento libertário, quase anárquico, onde nenhum poder é exercido de modo legítimo sobre uma pessoa sem o seu consentimento, o que é válido também para a sociedade. Ainda que anterior ao protestantismo, a afirmação “o poder emana do povo e deve ser exercido em nome e em benefício do povo” tem parentesco com a Reforma Protestante, que rejeita qualquer autoridade imposta por uma hierarquia que se considere legitimada por Deus. A voz de Deus é a voz de Deus. Portanto, se alguém deve discernir e interpretar a voz de Deus, esse alguém não é a igreja, nem o clero, nem aristocracias, nem mesmo minorias ou maiorias. Quem deve discernir e interpretar a voz de Deus é a consciência individual. Considerando a impossibilidade de um pensamento homogêneo, ainda que teologicamente não seja verdadeiro, como critério para a construção da sociedade, vale a máxima: Vox populi, vox Dei.
- Ed René Kivitz é pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo, SP. É mestre em ciências da religião e autor de, entre outros, O Livro Mais Mal-Humorado da Bíblia.
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