Opinião
- 28 de maio de 2021
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Visões da realidade – a ironia dos poderes
Por Ricardo Barbosa
O apóstolo Paulo, em sua carta à igreja de Éfeso, oferece um conselho tão atual para nós como foi para os cristãos do primeiro século daquela cidade: “portanto, vede prudentemente como andais, não como néscios, e sim como sábios, remindo o tempo, porque os dias são maus” (Efésios 5:15-16). Nós, como eles, vivemos dias maus, dias muito difíceis. Medo, ansiedade e incerteza são sentimentos que todos nós temos experimentado nestes dias. O conselho de Paulo para viver sabiamente e não como insensatos nestes dias maus é “remir o tempo”. Talvez, para muitos, influenciados pela cultura pragmática, remir o tempo significa torná-lo mais produtivo, aproveitá-lo da melhor forma possível, otimizar seu uso para garantir resultados melhores.
Mas quando olhamos o texto com cuidado, a preocupação de Paulo não é fazer um melhor uso do tempo, mas aprender a viver com sabedoria em meio aos dias maus. Remir significa adquirir, comprar de volta. É uma linguagem teológica. Da mesma forma como o pecado nos aprisiona e precisamos ser redimidos, os dias maus têm o poder de nos dominar e aprisionar, fazendo com que a vida seja determinada por eles e não pelo Espírito Santo.
Os dias maus nos levam a perder, facilmente, a perspectiva. As tensões provocadas pelos dias difíceis que vivemos definem nossas conversas, preocupações, interesses, relacionamentos, emoções, inclusive nossa compreensão de Deus, fé, comunhão e comunidade. Os dias maus nos levam a viver como néscios. O medo e a ansiedade nunca contribuíram para uma vida sábia, sensata, sóbria, mas alimentam a ignorância e nos tornam pessoas tolas, prisioneiras de uma visão limitada e distorcida da realidade.
Visões da realidade
Nos dias maus e difíceis não é fácil interpretar a realidade, para isso, precisamos de discernimento que, muitas vezes, nos é dado por Deus através de visões - que chamarei neste artigo de visões da realidade. É importante considerar que as coisas nem sempre são aquilo que aparentam ser. Por isso, as visões são um recurso fundamental para o discernimento da realidade. A mais conhecida de todas é a visão que João teve na ilha de Patmos registrada no livro do Apocalipse. Nesta visão, João percebe que as coisas não eram como pareciam ser. Parecia que Domiciano e o Império Romano governavam grande parte do mundo e detinham todo o poder, mas João percebe que a realidade não era bem assim. O único digno de abrir o livro e desatar-lhe os selos, era o cordeiro de Deus que havia sido morto, mas ressuscitou.
Neste artigo, vamos olhar para uma visão registrada no livro de Daniel. Ele também viveu dias maus. Sua cidade, Jerusalém, foi completamente destruída pelo exército de Nabucodonosor, não só a cidade, como também seus habitantes foram mortos, outros escravizados, e os que sobreviveram enfrentaram fome, miséria e sofrimento. O templo, lugar sagrado para Daniel e seu povo, foi profanado e Daniel, com muitos outros jovens fortes e inteligentes, foram levados para o exílio na Babilônia. Os dias eram maus, muito difíceis. Ele mesmo teve visões da realidade, mas quero olhar para a visão de um outro personagem, o rei Nabucodonosor.
A visão de Nabucodonosor
O rei teve um sonho, um terrível sonho que o deixou muito perturbado a ponto de não conseguir mais dormir. Convocou todos os sábios, magos encantadores e feiticeiros do reino para interpretar o sonho. Porém, a perturbação do rei era tão grande que ele decidiu mudar as regras do jogo. Ao invés de contar o sonho para os sábios interpretarem, ele decidiu que os sábios teriam, não apenas que interpretar o sonho, mas dizer qual foi o sonho do rei, e os ameaçou de morte se não dissessem qual foi o sonho e sua interpretação.
Daniel e alguns amigos foram recrutados pelo rei Nabucodonosor para trabalharem no palácio. O rei reconhecia que Daniel e seus amigos eram muito mais inteligentes e sábios que todos os magos e encantadores que havia na Babilônia (1:19-20). Os sábios disseram ao rei que era impossível revelar o sonho. Nabucodonosor se enfureceu e ordenou ao chefe da guarda que prendesse e executasse todos os sábios, isso incluía Daniel e seus amigos. Quando Daniel tomou conhecimento da decisão do rei, pediu ao chefe da guarda que o levasse à presença de Nabucodonosor. Daniel pediu ao rei um prazo para apresentar ao rei o sonho e sua interpretação.
Daniel voltou para casa e orou com seus amigos. Sua oração começa com uma doxologia: “Seja bendito o nome de Deus, de eternidade a eternidade, porque dele é a sabedoria e o poder; é ele quem muda o tempo e as estações, remove reis e estabelece reis; ele dá sabedoria aos sábios e entendimento aos inteligentes. Ele revela o profundo e o escondido; conhece o que está em trevas, e com ele mora a luz.”
E continua com uma súplica: “A ti, ó Deus de meus pais, eu te rendo graças e te louvo, porque me deste sabedoria e poder; e, agora, me fizeste saber o que te pedimos, porque nos fizeste saber este caso do rei” (Daniel 2:20-23).
Daniel procurou o chefe da guarda, intercedeu em favor da vida dos sábios da Babilônia, e disse que estava pronto para revelar o sonho e interpretá-lo para o rei. No entanto, antes de revelar o sonho dar a interpretação, Daniel disse ao rei que o mistério que ele exigia dos sábios, ninguém, nem mesmo Daniel poderia solucionar, nem magos, feiticeiros, encantadores ou astrólogos, ninguém poderia ajudar o rei, mas que há um Deus no céu que conhece todos os mistérios e só ele pode revelar.
“Respondeu Daniel na presença do rei e disse: O mistério que o rei exige, nem encantadores, nem magos nem astrólogos o podem revelar ao rei; mas há um Deus no céu, o qual revela os mistérios, pois fez saber ao rei Nabucodonosor o que há de ser nos últimos dias. O teu sonho e as visões da tua cabeça, quando estavas no teu leito, são estes:” (Daniel 2:27-28).
Daniel revela ao rei Nabucodonosor o sonho e sua interpretação. Eis o sonho: uma grande estátua, magnífica e impressionante pelo tamanho, mas sua aparência era terrível, tão assustadora que não deixou o rei dormir por vários dias. A cabeça era de ouro, o peito e os braços de prata, o ventre e os quadris de bronze; as pernas de ferro e os pés de ferro e barro. Enquanto o rei olhava para a estátua, uma pedra foi cortada sem auxílio das mãos, foi lançada e feriu a estátua nos pés de ferro e barro, ela desabou e tudo se esmiuçou, o ouro, a prata, o bronze e o ferro viraram pó, o vento soprou e varreu tudo e não sobrou nada. Mas a pedra que feriu a estátua se tornou numa grande montanha que encheu toda a terra. Este foi o sonho. À esta altura, o rei estava impressionado com Daniel.
A interpretação da visão de Nabucodonosor
A interpretação do sonho que Daniel apresentou ao rei foi a seguinte: Nabucodonosor é a cabeça de ouro, o reino mais poderoso da terra. Depois dele, levantará outro reino, inferior, de prata, e depois um terceiro, menos poderoso ainda, de bronze, e por último, um reino de ferro, também poderoso como os outros três, mas inferior. Este último reino será dividido, parte de barro e parte de ferro, terá a firmeza do ferro e a fragilidade do barro. Nos dias deste reino, Deus suscitará um reino que jamais será destruído e consumirá todos os outros reinos.
Daniel era um jovem judeu, brilhante, que assumiu um papel importante num reino pagão, governado pelo assassino do seu povo. Os dias que Daniel viveu foram dias maus, muito difíceis, mas Daniel manteve a perspectiva e não se deixou dominar pela realidade visível dos dias maus, mas sim pela realidade não visível do tempo remido.
Gostaria de destacar três observações e depois três implicações.
Três observações:
1. Qual a origem do sonho de Nabucodonosor? Os especialistas em sonhos poderiam dizer que o rei era uma pessoa insegura e que o sonho era uma projeção de suas ambições; poderiam também dizer que o rei sofreu bullying e rejeição na adolescência e o sonho era uma forma de superar suas feridas. Porém, o sonho foi uma revelação, uma revelação divina. Uma profecia. Uma visão da história dada por Deus. O pavor de Nabucodonosor tinha razão de ser. Ele sabia que, apesar de ser o homem mais poderoso da terra, à frente do Império e do exército mais temidos, o poder é frágil, a glória é passageira, e isso o atormentava. Foi Deus quem deu uma revelação sobre a realidade ilusória do poder e dos reinos deste mundo a um homem iníquo. Isso nos ajuda a colocar as coisas em perspectiva.
O governo de Deus não se restringe àqueles que creem em Deus, mas à toda criação. O Senhor reina. Esta é a verdade que coloca tudo na perspectiva correta. Deus revelou os eventos da história para um homem que não só não cria em Deus, como também castigava o povo eleito de Deus.
Da mesma forma que o sonho de Nabucodonosor tem sua origem em Deus, a revelação do sonho e sua interpretação tem também sua origem em Deus.
“E a mim me foi revelado este mistério, não porque haja em mim mais sabedoria do que em todos os viventes, mas para que a interpretação se fizesse saber ao rei, e para que entendesses as cogitações da tua mente” (Daniel 2:30).
Toda a ação de Deus tem uma finalidade pública. Diz respeito ao que Deus está fazendo na história, e não apenas dentro das quatro paredes da igreja.
2. Mesmo sendo Nabucodonosor um rei cruel, violento e inimigo do seu povo, Daniel se dirige a ele como “rei de reis, a quem o Deus do céu conferiu o reino, o poder, a força e a glória” (Daniel 2:37). Esta declaração de Daniel não é um mero protocolo político, é um conceito, um princípio, que também nos ajuda a colocar as coisas em perspectiva.
Depois que Pedro e João - libertados da prisão (Atos 4) - foram ao encontro dos irmãos que permaneciam em oração por eles. Depois de relatarem o que aconteceu, oraram reconhecendo Deus como Soberano Senhor e aquilo que o Espírito Santo estava realizando no meio deles, e disseram na oração:
“Levantaram-se os reis da terra, e as autoridades ajuntaram-se à uma contra o Senhor e contra o seu Ungido; porque verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e gente de Israel, para fazerem tudo o que a tua mão e o teu propósito predeterminaram” (Atos 4:26-28).
Herodes era o governador da Judéia, indicado pelo Imperador Romano, e Pilatos o representante de Roma. O primeiro administrava a província, e o segundo cuidava dos interesses do império. Herodes colocou nas mãos de Pilatos o julgamento de Jesus porque ele era acusado de conspiração contra o imperador, por ser aclamado rei de Israel. Nenhum dos dois tinha interesse no reino de Deus, mas os cristãos reconheciam que Deus era o Senhor soberano e Herodes e Pilatos estavam ali para cumprirem o que a mão e o propósito de Deus haviam determinado. A força que move a história não são os reinos, governos, impérios ou ideologias, é o Senhor que fez o céu e a terra. Isso coloca as coisas em perspectiva.
3. A terceira observação é a mais impressionante de todas. O que coloca a grande e assustadora estátua no chão a ponto de tudo virar pó e ser varrido pelo vento, não é uma guerra, uma nova estratégia ou uma nova política, é uma pedra, uma pequena pedra, que foi cortada sem o auxílio de ninguém. Uma pedra, como a que Davi usou para derrubar o grande Golias. Quatro reinos poderosos – alguns historiadores acreditam que são, respectivamente: a Babilônia (isto está no texto); prata seria o império Medo-Persa; bronze o império grego e, por fim, o ferro que seria o império romano. Não há evidência de que isto esteja correto, porém, o que importa é que aquilo que derrubou estes grandes impérios não foram articulações políticas e econômicas, crises éticas e morais. O que colocou estes reinos no chão e os esmiuçou foi um outro reino. Um reino governado pelo Cordeiro que foi morto e ressuscitou, foi levado aos céus, assumiu seu lugar no trono, de onde governa o universo. Este reino, um dia, será como uma grande montanha que encherá toda a terra. Isso coloca tudo sob a perspectiva correta.
Três implicações:
1. Não precisamos temer estes impérios, reinos ou governos. Eles sempre existiram e continuarão existindo. Não temos como impedi-los. Porém, todos eles, em algum momento, virarão pó, e no final, uma grande montanha encherá toda a terra de sua glória. Os dias maus sempre existiram e continuarão até o dia em que finalmente os reinos deste mundo se curvarão diante do único e verdadeiro Rei, Jesus Cristo. Devemos, como Daniel, servir fielmente a Deus em qualquer contexto, mas nossa lealdade é dedicada ao único e soberano Senhor da história. Esta visão da realidade, coloca as coisas em perspectiva.
2. A razão principal dos dias maus não é econômica, política, social, mas a rejeição ao governo do único soberano Senhor. Perdemos tempo e energia lutando contra estes poderes e reinos com nossos recursos. A estátua caiu não por causa da fragilidade dos pés, mas por causa de uma pedra que foi atirada sem o auxílio de ninguém. A estátua caiu por causa da chegada de um outro reino. A Babilônia caiu não por causa dos seus pecados, sua crise moral, ética, econômica, mas por causa de uma pedra, uma pequena pedra. O que coloca estes impérios no chão é a chegada do novo reino. Esta visão da realidade coloca as coisas em perspectiva.
3. Viver sabiamente, remindo o tempo nestes dias maus, é viver a partir da única realidade que permanecerá. As últimas palavras de nosso Senhor aos seus discípulos foram: preguem o evangelho, anunciem o reino de Deus, façam discípulos de todas as nações, anunciem ao mundo que o reino de Deus chegou, o Rei Jesus foi entronizado, o governo está sobre os seus ombros. Esta é a verdade que coloca tudo em perspectiva.
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Pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília (DF). É colunista da revista Ultimato e autor de A Espiritualidade, o Evangelho e a Igreja, Pensamentos Transformados, Emoções Redimidas e O Caminho do Coração.
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