Opinião
- 04 de julho de 2024
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Por que não filosofar sobre a liturgia?
A fé cristã não pode ser vista apenas como uma questão de proposições, mas como algo que envolve a ética do amor revelado em Cristo
Por Arthur Henrique Soares dos Santos
A filosofia analítica da religião têm dado destaque primordial a temas epistemológicos e metafísicos. Na epistemologia, geralmente se pergunta sobre a racionalidade da crença em Deus ou da crença especificamente cristã; na metafísica, surgem debates sobre os atributos divinos ou sobre como compreender doutrinas específicas do cristianismo como a doutrina da Trindade. Esse destaque epistemológico e metafísico é visto nitidamente nas próprias publicações da série Filosofia e Fé Cristã.
Esse foco é totalmente compreensível, uma vez que o renascimento da filosofia da religião se deu ao questionar o positivismo lógico, o qual dizia que a crença religiosa é desprovida de significado. Assim, questões epistemológicas e metafísicas vieram a tomar grande espaço. Ademais, falando por mim, como um filósofo cristão envolvido com epistemologia e metafísica, essas questões são particularmente divertidas! Contudo, nem só disso vive o filósofo cristão. Todo cristão, imerso no corpo de Cristo que é a Igreja, sabe que uma de nossas atividades mais primordiais é a liturgia de adoração ao Deus da Bíblia. Então, pergunta Terence Cuneo, por que não filosofar sobre a liturgia? É esse o propósito de Fé Ritualizada, novo lançamento da Editora Ultimato em parceria com a ABC2 (Associação Brasileira de Cristãos na Ciência).
Cuneo foi aluno de Nicholas Wolterstorff, também publicado nesta série com o excelente Discurso Divino. Foi de Wolterstorff que Cuneo herdou o interesse pela filosofia da liturgia, uma área de fato pouco explorada no debate, mas que têm florescido a fim de refletir filosoficamente sobre questões relativas à liturgia, como o batismo, a Eucaristia ou o canto congregacional. Entretanto, enquanto Wolterstorff desenvolveu sua pesquisa em liturgia com um foco na tradição reformada, Cuneo foca em outra tradição: a Ortodoxia do Leste.
Assim, em primeiro lugar, o foco de Cuneo nos traz algo muito interessante: um maior conhecimento de doutrinas e práticas litúrgicas importantes para o cristianismo ortodoxo do Leste. Sem dúvida, para aqueles que vêm de tradições reformadas ou evangelicais, a tradição ortodoxa do Leste não é tão bem conhecida. Por esse motivo, a obra de Cuneo nos dá uma oportunidade de conhecer mais acerca desta tradição.
Em segundo lugar, outra coisa que deve ser destacada acerca da obra é que ela é composta por ensaios relativamente interdependentes. Ou seja, é possível ao leitor que ele compreenda tranquilamente um capítulo sem a necessidade de ler o outro. Contudo, a leitura sequencial de cada ensaio proporciona uma experiência mais rica de leitura, ao conectar as discussões que, de outro modo, podem soar bastante isoladas. Somado a isso, a escrita de Cuneo é muito acessível para aqueles que não estão acostumados à linguagem técnica da filosofia analítica. Por isso, apesar do rigor filosófico presente na obra, não há aqui um obstáculo à leitura.
Em terceiro lugar, Cuneo é professor de Ética na Universidade de Vermont. Por isso, as questões éticas estão presentes de maneira muito interessante em seu trabalho sobre liturgia. Afinal de contas, a atividade litúrgica é algo de cunho muito prático no cristianismo, envolvendo várias dimensões da ação humana, e não apenas a mente em sua atividade teórica. Cuneo leva o leitor, assim, a pensar sobre como a liturgia está relacionada a cumprir o mandamento ético de amar o próximo como a si mesmo ou como a liturgia nos leva a ser a favor do bem e protestar contra o mal no mundo. Tudo isso lembra que a fé cristã não pode ser vista apenas como uma questão de proposições (embora inclua também proposições), mas como algo que envolve a ética do amor revelado em Cristo.
Em quarto lugar, embora haja a proeminência de questões práticas ao longo do livro, também existem importantes questões teóricas debatidas. Uma das que mais chamam a atenção é a discussão do argumento da ocultação divina. Esse argumento é uma objeção contra a crença em Deus que alega que, se Deus existisse, então ele tornaria sua existência evidente para todos; contudo, a existência de Deus não é evidente para todos, logo Deus não existe. A forma mais conhecida desse argumento é de John Schellenberg. Obviamente, existem várias respostas de filósofos cristãos ao argumento da ocultação divina, desde os que alegam que não há ocultação divina e que somos nós que resistimos ao conhecimento de Deus (como na epistemologia reformada de Alvin Plantinga) até os que afirmam que a ocultação divina existe e é necessária para que Deus efetive algum bem maior (como nas respostas de Richard Swinburne e Peter van Inwagen). Me parece que Cuneo segue o segundo tipo de resposta, mas adicionando algo importante: o amor perfeito de Deus que é revelado nas Escrituras e está presente na liturgia cristã. Sem dúvida, vale a pena considerar sua resposta ao problema da ocultação divina.
Em quinto lugar, o último capítulo do livro traz uma reflexão filosófica autobiográfica acerca do contato de Cuneo com a tradição ortodoxa. Além de apresentar alguns aspectos da ortodoxia do Leste, o autor ainda nos coloca em contato com questionamentos acerca da relação entre a fé cristã e as dúvidas que surgem. Cuneo defende a tese de que a fé não necessariamente inclui o assentimento às proposições da crença cristã, mas sim o compromisso com as afirmações centrais do cristianismo. Essa resposta me parece insuficiente para lidar com o problema da relação entre fé e dúvida; creio que, para um protestante como eu, é natural pensar que a fé inclua também o assentimento às proposições da crença cristã. A despeito disso, Cuneo ainda traz uma lição com a qual todos podemos concordar: a fé não exclui a dúvida. É por isso que filósofos podem ter fé. Afinal, os que duvidam são convidados a tocar, provar e ver, tal como Tomé foi convidado por Cristo.
Assim, Fé Ritualizada de Terence Cuneo traz para a reflexão filosófica o tema da liturgia cristã, enriquece o conhecimento acerca da tradição ortodoxa do Leste, além de lembrar que filósofos cristãos também são cristãos que devem estar envolvidos com a adoração comunitária.
REVISTA ULTIMATO | PARA QUE SERVE A TEOLOGIA?
A resposta à pergunta “Para que serve a teologia?” revela que ela serve a Deus, exaltando-o como Senhor. Serve a igreja, ajudando-a a conhecer e a adorar seu Deus. Serve o mundo, revelando a verdadeira fonte de sabedoria, beleza, sentido e salvação.
A teologia é resultado de esforço acadêmico e também do convívio singular entre cristãos; envolve profundo estudo, mas também ocorre na singela e comprometida leitura das Escrituras. Depende do Espírito, por isso implica humildade. Ajuda a conhecer a Deus e a amá-lo.
É disso que trata a matéria de capa da edição 408 da revista Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» Discurso Divino - Reflexões filosóficas sobre a tese de que Deus fala, Nicholas Wolterstorff
» Ciência e Religião - São compatíveis?, Alvin Plantinga e Daniel C. Dennett
» É razoável pensar que Deus atende a orações específicas?, por Arthur Santos
Por Arthur Henrique Soares dos Santos
A filosofia analítica da religião têm dado destaque primordial a temas epistemológicos e metafísicos. Na epistemologia, geralmente se pergunta sobre a racionalidade da crença em Deus ou da crença especificamente cristã; na metafísica, surgem debates sobre os atributos divinos ou sobre como compreender doutrinas específicas do cristianismo como a doutrina da Trindade. Esse destaque epistemológico e metafísico é visto nitidamente nas próprias publicações da série Filosofia e Fé Cristã.
Esse foco é totalmente compreensível, uma vez que o renascimento da filosofia da religião se deu ao questionar o positivismo lógico, o qual dizia que a crença religiosa é desprovida de significado. Assim, questões epistemológicas e metafísicas vieram a tomar grande espaço. Ademais, falando por mim, como um filósofo cristão envolvido com epistemologia e metafísica, essas questões são particularmente divertidas! Contudo, nem só disso vive o filósofo cristão. Todo cristão, imerso no corpo de Cristo que é a Igreja, sabe que uma de nossas atividades mais primordiais é a liturgia de adoração ao Deus da Bíblia. Então, pergunta Terence Cuneo, por que não filosofar sobre a liturgia? É esse o propósito de Fé Ritualizada, novo lançamento da Editora Ultimato em parceria com a ABC2 (Associação Brasileira de Cristãos na Ciência).
Cuneo foi aluno de Nicholas Wolterstorff, também publicado nesta série com o excelente Discurso Divino. Foi de Wolterstorff que Cuneo herdou o interesse pela filosofia da liturgia, uma área de fato pouco explorada no debate, mas que têm florescido a fim de refletir filosoficamente sobre questões relativas à liturgia, como o batismo, a Eucaristia ou o canto congregacional. Entretanto, enquanto Wolterstorff desenvolveu sua pesquisa em liturgia com um foco na tradição reformada, Cuneo foca em outra tradição: a Ortodoxia do Leste.
Assim, em primeiro lugar, o foco de Cuneo nos traz algo muito interessante: um maior conhecimento de doutrinas e práticas litúrgicas importantes para o cristianismo ortodoxo do Leste. Sem dúvida, para aqueles que vêm de tradições reformadas ou evangelicais, a tradição ortodoxa do Leste não é tão bem conhecida. Por esse motivo, a obra de Cuneo nos dá uma oportunidade de conhecer mais acerca desta tradição.
Em segundo lugar, outra coisa que deve ser destacada acerca da obra é que ela é composta por ensaios relativamente interdependentes. Ou seja, é possível ao leitor que ele compreenda tranquilamente um capítulo sem a necessidade de ler o outro. Contudo, a leitura sequencial de cada ensaio proporciona uma experiência mais rica de leitura, ao conectar as discussões que, de outro modo, podem soar bastante isoladas. Somado a isso, a escrita de Cuneo é muito acessível para aqueles que não estão acostumados à linguagem técnica da filosofia analítica. Por isso, apesar do rigor filosófico presente na obra, não há aqui um obstáculo à leitura.
Em terceiro lugar, Cuneo é professor de Ética na Universidade de Vermont. Por isso, as questões éticas estão presentes de maneira muito interessante em seu trabalho sobre liturgia. Afinal de contas, a atividade litúrgica é algo de cunho muito prático no cristianismo, envolvendo várias dimensões da ação humana, e não apenas a mente em sua atividade teórica. Cuneo leva o leitor, assim, a pensar sobre como a liturgia está relacionada a cumprir o mandamento ético de amar o próximo como a si mesmo ou como a liturgia nos leva a ser a favor do bem e protestar contra o mal no mundo. Tudo isso lembra que a fé cristã não pode ser vista apenas como uma questão de proposições (embora inclua também proposições), mas como algo que envolve a ética do amor revelado em Cristo.
Em quarto lugar, embora haja a proeminência de questões práticas ao longo do livro, também existem importantes questões teóricas debatidas. Uma das que mais chamam a atenção é a discussão do argumento da ocultação divina. Esse argumento é uma objeção contra a crença em Deus que alega que, se Deus existisse, então ele tornaria sua existência evidente para todos; contudo, a existência de Deus não é evidente para todos, logo Deus não existe. A forma mais conhecida desse argumento é de John Schellenberg. Obviamente, existem várias respostas de filósofos cristãos ao argumento da ocultação divina, desde os que alegam que não há ocultação divina e que somos nós que resistimos ao conhecimento de Deus (como na epistemologia reformada de Alvin Plantinga) até os que afirmam que a ocultação divina existe e é necessária para que Deus efetive algum bem maior (como nas respostas de Richard Swinburne e Peter van Inwagen). Me parece que Cuneo segue o segundo tipo de resposta, mas adicionando algo importante: o amor perfeito de Deus que é revelado nas Escrituras e está presente na liturgia cristã. Sem dúvida, vale a pena considerar sua resposta ao problema da ocultação divina.
Em quinto lugar, o último capítulo do livro traz uma reflexão filosófica autobiográfica acerca do contato de Cuneo com a tradição ortodoxa. Além de apresentar alguns aspectos da ortodoxia do Leste, o autor ainda nos coloca em contato com questionamentos acerca da relação entre a fé cristã e as dúvidas que surgem. Cuneo defende a tese de que a fé não necessariamente inclui o assentimento às proposições da crença cristã, mas sim o compromisso com as afirmações centrais do cristianismo. Essa resposta me parece insuficiente para lidar com o problema da relação entre fé e dúvida; creio que, para um protestante como eu, é natural pensar que a fé inclua também o assentimento às proposições da crença cristã. A despeito disso, Cuneo ainda traz uma lição com a qual todos podemos concordar: a fé não exclui a dúvida. É por isso que filósofos podem ter fé. Afinal, os que duvidam são convidados a tocar, provar e ver, tal como Tomé foi convidado por Cristo.
Assim, Fé Ritualizada de Terence Cuneo traz para a reflexão filosófica o tema da liturgia cristã, enriquece o conhecimento acerca da tradição ortodoxa do Leste, além de lembrar que filósofos cristãos também são cristãos que devem estar envolvidos com a adoração comunitária.
- Arthur Henrique Soares dos Santos é graduado e mestrando em filosofia pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
REVISTA ULTIMATO | PARA QUE SERVE A TEOLOGIA?
A resposta à pergunta “Para que serve a teologia?” revela que ela serve a Deus, exaltando-o como Senhor. Serve a igreja, ajudando-a a conhecer e a adorar seu Deus. Serve o mundo, revelando a verdadeira fonte de sabedoria, beleza, sentido e salvação.
A teologia é resultado de esforço acadêmico e também do convívio singular entre cristãos; envolve profundo estudo, mas também ocorre na singela e comprometida leitura das Escrituras. Depende do Espírito, por isso implica humildade. Ajuda a conhecer a Deus e a amá-lo.
É disso que trata a matéria de capa da edição 408 da revista Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» Discurso Divino - Reflexões filosóficas sobre a tese de que Deus fala, Nicholas Wolterstorff
» Ciência e Religião - São compatíveis?, Alvin Plantinga e Daniel C. Dennett
» É razoável pensar que Deus atende a orações específicas?, por Arthur Santos
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