Opinião
- 11 de maio de 2020
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Vendo além da pandemia
Por Cácio Silva
A pandemia do novo coronavírus tem desencadeado diferentes crises em todo o mundo e exposto a humanidade de uma forma sem precedentes.
Um vírus super ágil que saiu da China e rapidamente cruzou oceanos, ultrapassou, sem dificuldades, fronteiras geopolíticas, se espalhou por grandes metrópoles, avançou para os interiores de diferentes países e já alcançou até aldeias longínquas da Amazônia! De tamanho microscópico, abala grandes potências; invisível aos olhos, causa efeitos observáveis; imperceptível aos sentidos, provoca dores agudas; agindo silenciosamente, gera alarde e pranto.
Em tempos quando a autonomia da pessoa é supervalorizada, a insuficiência humana foi exposta à luz do sol. Quando a tecnologia é vista como instrumento de emancipação total do indivíduo, sua limitação ficou tão comprovada quanto seu valor. Quando a ciência é tida como resposta a todas as coisas, suas controvérsias ficaram tão evidentes quanto suas soluções.
Apesar de trazer à tona louváveis atos de generosidade e empatia, a pandemia também abriu as cortinas da alma humana, mostrando como somos seres caídos por natureza. Alguns políticos aproveitam o caos para angariar capital eleitoral; outros, para burlar leis e obter benefícios financeiros; alguns fornecedores se aproveitam da tragédia para lucrar de forma exorbitante; alguns pesquisadores manipulam dados para atrair holofotes; enquanto muitos meios de comunicação travam uma verdadeira guerra de narrativas, interpretando fatos de forma ideológica ou partidária, infringindo à população uma eterna dúvida entre fatos e fakes.
O isolamento domiciliar se tornou uma pausa de descanso para alguns e momento oportuno para aproveitar a família, enquanto para muitos tornou-se razão de forte ansiedade, desavenças conjugais e impaciência com os filhos. Como pode? Bastou um vírus, um pequenino vírus, para expor nossas fragilidades, mazelas e limitações.
A constante veiculação do caos global, com imagens fortes e dados cruéis, aumenta a sensação de insegurança. As estatísticas de baixa letalidade aliviam a tensão, porém, à medida que a pandemia se aproxima de nós, com números se tornando nomes, dados se tornando rostos, possibilidades se tornando fatos, o grau de segurança tende a oscilar para baixo e quando se perde um ente querido pouca diferença faz ser baixa ou alta a letalidade. A perda é sempre irreparável. E mesmo os que permanecem ilesos temem o amanhã da economia. Como será a vida pós-pandemia é uma pergunta que não quer calar.
Como manter a sanidade mental nessa confusão insana? Como manter a esperança em meio ao caos?
O sofrimento de Jó
A dura experiência do patriarca Jó tem muito a nos ensinar. Proprietário de muitas posses, empreendedor bem sucedido e um amplo quadro de servos fazia dele o homem mais rico do Oriente (Jó 1.3). Era também chefe de uma linda família (1.2) e influente cidadão urbano, respeitado em sua cidade por jovens e velhos, por gente simples e pelas autoridades (29.7-10). Mas o grande diferencial de Jó era sua piedade. Na avaliação do próprio Criador, “homem íntegro e reto, que teme a Deus e se desvia do mal” (1.8; 2.3).
E, exatamente por tal integridade, permitiu o Senhor que fosse afligido com crises cruéis. A primeira crise foi econômica, quando os sabeus, tribos nômades da Arábia, levam suas juntas de bois e jumentas (1.14-15); um fogo vindo do céu consome suas ovelhas (1.16); e os caldeus, bandos de salteadores da Mesopotâmia, roubam seus camelos (1.17). E todos dizimaram também seus servos, portanto, uma perda não apenas de bens, mas também do sistema produtivo das suas terras.
A segunda crise foi familiar, quando a morte alcançou o seu lar de forma fatal, ceifando em um só ato as vidas dos sete filhos e três filhas, ainda jovens (1.18-19). Fato dramático e traumático para qualquer pai. Mas as crises não pararam por aí.
A terceira foi pessoal, de saúde, ao ser acometido por “tumores malignos, desde a planta do pé até o alto da cabeça” (2.7). Enfermidade tão brutal que o expôs à humilhação de sentar-se na cinza com caco de barro raspando as feridas (2.8). Jó experienciou isolamento social por causa da sua enfermidade, muito provavelmente contagiosa!
Sua esposa viveu a tensão de ver o marido, antes saudável e nobre, agora em situação repugnante e humilhante. Tomada pela angústia de alma e fragilidade de fé, ao invés de lhe ser um consolo, lhe fez um infeliz e fatalista desabafo em tom de sugestão: “amaldiçoe a Deus e morra!” (2.9).
Seus amigos se uniram para juntos “condoer-se dele e consolá-lo” (2.11). A situação era mais complexa do que imaginavam, não o reconheceram e silenciaram-se por sete dias, “pois viam que a dor era muito grande” (2.13). E quando, cheios de boa vontade, iniciaram a tentativa de consolo, se puseram a falar equivocadamente daquilo que criam: a teoria da justa retribuição. Aqui se faz, aqui se paga. Quanto maior for o pecado, maior será o sofrimento.
Lições para nossos dias
Em momentos de crises, as cortinam do coração se abrem, as falas revelam os sentimentos da alma e a teologia que se tem em mente. O comportamento e, em especial, as reações, revelam tanto nossa fé quanto nossa incredulidade. Apesar da integridade elogiada pelo próprio Deus, até Jó não passa ileso, pois sua autojustiça fica evidente. Porém, algumas afirmações e reações do patriarca são pérolas para nossos dias.
Diante da grave crise econômica e familiar, “Jó se levantou, rasgou o seu manto, rapou a cabeça, prostrou-se em terra e adorou” (1.20). Observe bem o texto: ele se humilhou e adorou! E proferiu uma das mais lindas declarações de contentamento da história: “Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei. O Senhor o deu e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor!” (1.22). Contentamento e confiança inabalável no caráter de Deus: “Em tudo isto Jó não pecou, nem atribuiu a Deus falta alguma” (1.21).
Diante da crise pessoal e da angústia fatalista da esposa, ele responde: “Temos recebido de Deus o bem; por que não receberíamos também o mal?” (2.10).
Durante sua crise, Jó viu a maldade humana nas ações dos sabeus e o oportunismo desumano nos assaltos dos caldeus. Viu a finitude existencial na morte dos jovens filhos, a fragilidade emocional na reação da esposa e as fakes teológicas nos conselhos bem intencionados dos amigos. Viu a fragilidade do seu corpo, a vulnerabilidade da sua saúde e a justiça própria do seu coração. Mas algo além da crise lhe deu condições de superá-la: “eu sei que o meu Redentor vive e por fim se levantará sobre a terra” (19.25).
A despeito da insuficiência dos homens, da falibilidade da ciência e da limitação das autoridades, nosso Redentor vive. A despeito da insegurança, dos riscos, do medo e do caos, nosso Redentor vive. A despeito da dor, do sofrimento e mesmo da morte, nosso Redentor vive. Se nos poupar do mal, Ele estará conosco. Se permitir que enfrentemos a enfermidade, Ele estará conosco. E se nos chamar por meio dela, estaremos com Ele para todo o sempre, no lugar onde “já não existirá mais morte, já não haverá luto, nem pranto, nem dor” e Ele mesmo “enxugará dos olhos toda lágrima” (Ap 21.4).
Jó não sabia dos reais motivos daquelas crises, nem o que acontecia no mundo espiritual, mas sabia o suficiente para se manter firme: “o meu Redentor vive”. Permitiu o Senhor aquela experiência de crise, não simplesmente para provar alguma coisa a Satanás, mas, sim, para revelar a Si mesmo e elevar seu servo Jó a um patamar de ainda maior maturidade na fé: “Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te veem” (42.5).
Nós também não sabemos o que se passa nos bastidores celestiais, mas sabemos que Deus se assenta no trono, governando de forma providencial cada detalhe das nossas vidas, de maneira que absolutamente nada lhe foge ao controle. Que ao final dessa pandemia, possamos dizer como Jó: “agora os meus olhos te veem”.
• Cácio Silva é pastor presbiteriano e missionário entre indígenas da Amazônia, pela APMT e WEC Internacional.
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