Opinião
- 05 de abril de 2017
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Uma voz feminina na Páscoa
Por Rute Salviano
“Enquanto o cristianismo convertia o mundo, o mundo convertia o cristianismo”
“Enquanto o cristianismo convertia o mundo, o mundo convertia o cristianismo, fazendo-o mostrar o natural paganismo do homem”. Essa frase do historiador Will Durant retrata bem o que ocorria no século IV, uma época marcada por uma série de eventos que foram desde crise política até mudanças sociais e religiosas no Império Romano.
Nessa época, a situação religiosa se inverteu e eram os pagãos que tinham os bens confiscados e eram proibidos de realizar sacrifícios, consultar oráculos e visitar seus templos. Porém, a igreja cristã já não era mais a mesma igreja primitiva; além de mudanças na administração e no culto, ocorreram alterações nas doutrinas e inclusão de práticas estranhas ao Novo Testamento.
Quando Helena, a mãe do imperador Constantino, empreendeu uma peregrinação à Terra Santa em busca de relíquias, ela cooperou para a divulgação da prática da peregrinação, com objetivos espirituais, e da veneração de relíquias, como operadoras de curas e milagres.
Uma mulher que quis dar materialidade à sua fé
Os primeiros peregrinos queriam seguir os passos de Cristo, dos profetas e dos apóstolos. Entre eles, encontrava-se uma mulher, Egéria, que queria dar materialidade à fé que tinha.
Egéria ou Etéria era provavelmente natural do antigo território da Gallaecia romana, no noroeste da Espanha, atual região autônoma da Galiza. Possuía ascendência nobre, profunda religiosidade, ilimitada curiosidade e notável cultura. Movida pelo desejo de conhecer os lugares bíblicos, viajou para a Terra Santa, percorreu os locais sagrados e visitou homens e mulheres ascéticos do deserto, atraída por seu excelente modo de vida.
Além de peregrinar, escreveu um diário narrando suas viagens. Uma cópia de seu relato da viagem pelo Sinai e da vivência litúrgica em Jerusalém foi preservado até os nossos dias e possibilitou conhecer um pouco da prática de culto da época.
Egéria descreveu precisamente as liturgias da igreja do século IV
Quando chegou a Jerusalém, onde ficou por cerca de três anos, Egéria participou da vida da igreja local e, com impressionante poder de observação, descreveu suas liturgias. Ela registrou a assiduidade dos cristãos aos cultos que eram muitos. Para eles, o domingo era realmente o dia do Senhor, quando se levantavam bem antes do amanhecer para passar horas na igreja e para lá retornavam três ou quatro vezes ao dia.
Egéria relatou toda a celebração dos dias da Páscoa, informando que, ao invés de quarenta dias, em Jerusalém respeitavam-se oito semanas. Como não se jejuava nos sábados e domingos, exceto no sábado das vigílias pascais, sobravam quarenta e um dias de jejum, que era chamado de eortae, ou seja, Quaresma.
Durante toda a Quaresma, os ofícios eram diários, iniciando-se ao domingo, no cantar do galo, com a leitura da passagem referente à Ressurreição do Senhor, seguido de procissão à Igreja Maior, chamada Martyrium, situada no Gólgota, onde se cumpria o ritual costumeiro do domingo e, depois, o regresso para a Anastasis, entoando-se hinos.
Na quinta-feira, anterior ao dia da Crucificação, logo ao amanhecer, a multidão já se dirigia ao Getsêmani e lá orava, cantava e lia a passagem das Escrituras sobre a prisão de Cristo, permanecendo a noite inteira em vigília: orando e chorando. Ao amanhecer, dirigiam-se à cidade entoando hinos. Na hora sexta, caminhavam até o local da crucificação, onde até a hora nona liam todos as passagens bíblicas sobre a crucificação do Senhor. Ouçamos a voz da própria Egéria:
4. E, aproximando-se a sexta hora, caminham em direção à Cruz, quer chova quer faça calor, porque o lugar fica ao ar livre; é como que um pátio bem grande e extraordinariamente belo, situado entre a Cruz e a Anástasis. Aí, pois, é que se reúne o povo todo, de tal forma que nem se pode abrir caminho.
5. Coloca-se a cátedra episcopal diante da Cruz e, da sexta até a nona hora, nada se faz senão leituras, da seguinte maneira: lê-se, primeiro, tudo quanto nos salmos diz respeito à Paixão; leem-se, a seguir, nos Apóstolos – ou nas Epístolas ou nos Atos dos Apóstolos – todas as passagens que se referem à Paixão do Senhor; e também nos Evangelhos se leem os trechos da Paixão. Leem-se, em seguida, nos profetas, as passagens onde predisseram que o Senhor haveria de sofrer, e novamente os Evangelhos nos trechos referentes à Paixão.
6. Assim, desde a hora sexta até a hora nona, fazem-se continuamente leituras ou se recitam hinos para mostrar a todo o povo que tudo quanto os profetas predisseram da Paixão do Senhor realmente aconteceu, como se vê mui claramente tanto pelos Evangelhos quanto ainda pelos escritos dos Apóstolos. E assim, durante as três horas, ensina-se ao povo que nada se fez que não tenha sido primeiro anunciado e nada se anunciou que se não tenha completamente realizado. E sempre se intercalam preces – e essas preces são próprias para o dia.
7. A cada uma das leituras ou preces, tal é o sofrimento e tais são os lamentos de todo o povo que chegam a causar espanto; não há ninguém nem grande, nem pequeno, que, nesse dia, durante essas três horas, não se aflija enormemente — e é impossível calcular tamanha aflição — pelo muito que o Senhor padeceu por nós.”
É comovente como os cristãos da época celebravam todos esses dias santos, celebrar a crucificação e ressurreição de Cristo nos locais onde ocorreram, com certeza, torna a fé mais viva. Pode-se observar, porém, nas liturgias daquela época, as mudanças efetuadas em comparação às reuniões simples narradas nos Atos dos apóstolos e pode-se refletir também no valor maior dado à Crucificação. A comemoração da morte de Cristo ultrapassava a comemoração de sua Ressurreição e Vida, mas cremos que: “Se Cristo não ressuscitou é vã a nossa fé". (1Coríntios 15.17).
Notas:
1. Igreja Maior, Anastásis e a Cruz eram três espaços hoje pertencentes à Basílica do Santo Sepulcro. A construção de Constantino no local da morte de Cristo constava de: Anástasis, Calvário e Martyrium. Anástasis (ressurreição) era a Igreja do Santo Sepulcro; Calvário, que a autora chama de Cruz, era uma capelinha por detrás da elevação onde se encontrava uma cruz e Martyrium (martírio) era a igreja maior, uma basílica suntuosa.
2. Etéria. Itinerarium, in: BECKHÄUSER, Alberto (Com.). Peregrinação de Etéria: Liturgia e catequese em Jerusalém no século IV. Tradução, introdução e notas de Maria da Glória Novak. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2004, parte II, 37.4-7.
Leia mais
Páscoa: gosto, não gosto. Por que sim. Por que não.
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Nessa época, a situação religiosa se inverteu e eram os pagãos que tinham os bens confiscados e eram proibidos de realizar sacrifícios, consultar oráculos e visitar seus templos. Porém, a igreja cristã já não era mais a mesma igreja primitiva; além de mudanças na administração e no culto, ocorreram alterações nas doutrinas e inclusão de práticas estranhas ao Novo Testamento.
Quando Helena, a mãe do imperador Constantino, empreendeu uma peregrinação à Terra Santa em busca de relíquias, ela cooperou para a divulgação da prática da peregrinação, com objetivos espirituais, e da veneração de relíquias, como operadoras de curas e milagres.
Uma mulher que quis dar materialidade à sua fé
Os primeiros peregrinos queriam seguir os passos de Cristo, dos profetas e dos apóstolos. Entre eles, encontrava-se uma mulher, Egéria, que queria dar materialidade à fé que tinha.
Egéria ou Etéria era provavelmente natural do antigo território da Gallaecia romana, no noroeste da Espanha, atual região autônoma da Galiza. Possuía ascendência nobre, profunda religiosidade, ilimitada curiosidade e notável cultura. Movida pelo desejo de conhecer os lugares bíblicos, viajou para a Terra Santa, percorreu os locais sagrados e visitou homens e mulheres ascéticos do deserto, atraída por seu excelente modo de vida.
Além de peregrinar, escreveu um diário narrando suas viagens. Uma cópia de seu relato da viagem pelo Sinai e da vivência litúrgica em Jerusalém foi preservado até os nossos dias e possibilitou conhecer um pouco da prática de culto da época.
Egéria descreveu precisamente as liturgias da igreja do século IV
Quando chegou a Jerusalém, onde ficou por cerca de três anos, Egéria participou da vida da igreja local e, com impressionante poder de observação, descreveu suas liturgias. Ela registrou a assiduidade dos cristãos aos cultos que eram muitos. Para eles, o domingo era realmente o dia do Senhor, quando se levantavam bem antes do amanhecer para passar horas na igreja e para lá retornavam três ou quatro vezes ao dia.
Egéria relatou toda a celebração dos dias da Páscoa, informando que, ao invés de quarenta dias, em Jerusalém respeitavam-se oito semanas. Como não se jejuava nos sábados e domingos, exceto no sábado das vigílias pascais, sobravam quarenta e um dias de jejum, que era chamado de eortae, ou seja, Quaresma.
Durante toda a Quaresma, os ofícios eram diários, iniciando-se ao domingo, no cantar do galo, com a leitura da passagem referente à Ressurreição do Senhor, seguido de procissão à Igreja Maior, chamada Martyrium, situada no Gólgota, onde se cumpria o ritual costumeiro do domingo e, depois, o regresso para a Anastasis, entoando-se hinos.
Na quinta-feira, anterior ao dia da Crucificação, logo ao amanhecer, a multidão já se dirigia ao Getsêmani e lá orava, cantava e lia a passagem das Escrituras sobre a prisão de Cristo, permanecendo a noite inteira em vigília: orando e chorando. Ao amanhecer, dirigiam-se à cidade entoando hinos. Na hora sexta, caminhavam até o local da crucificação, onde até a hora nona liam todos as passagens bíblicas sobre a crucificação do Senhor. Ouçamos a voz da própria Egéria:
4. E, aproximando-se a sexta hora, caminham em direção à Cruz, quer chova quer faça calor, porque o lugar fica ao ar livre; é como que um pátio bem grande e extraordinariamente belo, situado entre a Cruz e a Anástasis. Aí, pois, é que se reúne o povo todo, de tal forma que nem se pode abrir caminho.
5. Coloca-se a cátedra episcopal diante da Cruz e, da sexta até a nona hora, nada se faz senão leituras, da seguinte maneira: lê-se, primeiro, tudo quanto nos salmos diz respeito à Paixão; leem-se, a seguir, nos Apóstolos – ou nas Epístolas ou nos Atos dos Apóstolos – todas as passagens que se referem à Paixão do Senhor; e também nos Evangelhos se leem os trechos da Paixão. Leem-se, em seguida, nos profetas, as passagens onde predisseram que o Senhor haveria de sofrer, e novamente os Evangelhos nos trechos referentes à Paixão.
6. Assim, desde a hora sexta até a hora nona, fazem-se continuamente leituras ou se recitam hinos para mostrar a todo o povo que tudo quanto os profetas predisseram da Paixão do Senhor realmente aconteceu, como se vê mui claramente tanto pelos Evangelhos quanto ainda pelos escritos dos Apóstolos. E assim, durante as três horas, ensina-se ao povo que nada se fez que não tenha sido primeiro anunciado e nada se anunciou que se não tenha completamente realizado. E sempre se intercalam preces – e essas preces são próprias para o dia.
7. A cada uma das leituras ou preces, tal é o sofrimento e tais são os lamentos de todo o povo que chegam a causar espanto; não há ninguém nem grande, nem pequeno, que, nesse dia, durante essas três horas, não se aflija enormemente — e é impossível calcular tamanha aflição — pelo muito que o Senhor padeceu por nós.”
É comovente como os cristãos da época celebravam todos esses dias santos, celebrar a crucificação e ressurreição de Cristo nos locais onde ocorreram, com certeza, torna a fé mais viva. Pode-se observar, porém, nas liturgias daquela época, as mudanças efetuadas em comparação às reuniões simples narradas nos Atos dos apóstolos e pode-se refletir também no valor maior dado à Crucificação. A comemoração da morte de Cristo ultrapassava a comemoração de sua Ressurreição e Vida, mas cremos que: “Se Cristo não ressuscitou é vã a nossa fé". (1Coríntios 15.17).
Notas:
1. Igreja Maior, Anastásis e a Cruz eram três espaços hoje pertencentes à Basílica do Santo Sepulcro. A construção de Constantino no local da morte de Cristo constava de: Anástasis, Calvário e Martyrium. Anástasis (ressurreição) era a Igreja do Santo Sepulcro; Calvário, que a autora chama de Cruz, era uma capelinha por detrás da elevação onde se encontrava uma cruz e Martyrium (martírio) era a igreja maior, uma basílica suntuosa.
2. Etéria. Itinerarium, in: BECKHÄUSER, Alberto (Com.). Peregrinação de Etéria: Liturgia e catequese em Jerusalém no século IV. Tradução, introdução e notas de Maria da Glória Novak. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2004, parte II, 37.4-7.
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Mestre em teologia e pós-graduada em história do cristianismo, é autora de Vozes Femininas nos Avivamentos (Ultimato), além de Vozes Femininas no Início do Cristianismo, Uma Voz Feminina Calada pela Inquisição, Uma Voz Feminina na Reforma e Vozes Femininas no Início do Protestantismo Brasileiro (Prêmio Areté 2015).
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