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Uma igreja para a metrópole
25 de janeiro, 459 anos da cidade de São Paulo (SP), a maior metrópole da América do Sul e uma das mais populosas do mundo. Mas que desafios a “pauliceia desvairada” (agora também pós-moderna) de Mário de Andrade traz à igreja cristã? Ainda é possível resgatar o senso de comunidade em grandes centros urbanos?
No artigo abaixo, Neuber Lourenço discute a relevância das comunidades cristãs em grandes centros urbanos. O texto foi publicado na revista Ultimato 336.
Resgatando o senso de comunidade da missão para a cidade
Nos últimos 70 anos, temos vivido em uma cultura narcisista. Tudo nela gira em torno do eu. A estratégia de marketing das empresas sacralizou a autonomia do indivíduo e podemos verificar isto em slogans do tipo: “Fazemos tudo isto por você”; “faça do seu jeito”; “você tem que pensar no que é melhor para você”. Isto nos levou a um beco sem saída. Vivemos em um tempo em que muitos “eus” se chocam e não compõem um todo. Antes, vivem em um permanente estado de estranhamento.
Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, no livro “Amor Líquido”, que aborda a fragilidade dos laços humanos na pós-modernidade, observa que o fato de sermos estranhos uns aos outros no contexto das cidades não é algo inédito; o ineditismo está em nos mantermos estranhos por um longo tempo e até mesmo perpetuamente.
Isto tem nos conduzido a um sentimento de solidão sem precedentes em nossa história. Perdemos o senso de comunidade, mesmo vivendo em cidades com tantas pessoas ao nosso redor. O contexto urbano, apesar da superpopulação, é espaço de solidão.
A perda do senso de comunidade tem contribuído, entre outros fatores, para o despertamento espiritual no Brasil. Um país que dormiu rural e acordou urbano experimenta profundos sentimentos de nostalgia e desorientação. Ainda assim, o dilema está posto. Por um lado, precisamos dos outros como do ar que respiramos, por outro, temos medo de desenvolver relacionamentos mais profundos, que nos imobilizem em um mundo em permanente movimento.¹
A Igreja de Cristo tem um papel singular a desempenhar no ambiente cultural da supermodernidade, especialmente nos contextos urbanos. Podemos ajudar as pessoas desvinculadas e desorientadas a ser comunidade. E isso pode ser feito ao sermos comunidade do reino para elas e com elas. Quando multiplicou os pães e os peixes (Lc 9.11-17), Jesus nos deixou algumas pistas para isto. Não tanto pela realização do milagre em si, mas por causa da ordem que deu aos discípulos: “Dai-lhes vós de comer”. Vejamos algumas dessas pistas:
Sair da zona de conforto
No Brasil, segundo dados do senso de 2010, 84% da população vive nas cidades. Isto faz com que o contexto urbano se constitua, predominantemente, no ambiente da missão para nós, com todos os seus riscos e oportunidades. Trata-se de um ambiente cultural que não reconhece fronteiras, o que nos obriga a discernir e assumir a dinâmica e as demandas do nosso tempo. Parte da nossa missão é fazer uma hermenêutica das nossas cidades. Diante disso, “dai-lhes vós de comer” significa pensar as demandas da missão de Deus a partir da lógica e da disponibilidade do Senhor Jesus. Isto implica para nós aprender a abrir mão da zona de conforto para assumir as demandas das pessoas em um ambiente que está em constante mudança. A Igreja do Senhor Jesus é a única organização no mundo que existe, prioritariamente, para quem está do lado de fora.
Ser um lugar de refúgio
Se quisermos continuar relevantes, precisamos ver as multidões das cidades como um rebanho sem pastor. Precisamos reaprender a molhar os nossos olhos, movidos por compaixão. As cidades venderam o sonho da ampla realização e se tornaram um ambiente da privação. Não basta uma palavra contra a fome, é preciso também multiplicar o pão. A ordem é: “Dai-lhes vós de comer”. Além da fome de pão, há outras fomes em nossas cidades. Há fome de segurança, identidade, sentido, cooperação e ética. Assim, “dai-lhes vós de comer” significa ser comunidade de fé, que está em permanente diálogo com o nosso tempo; comunidade de vida, na qual o compromisso em preservar, restaurar e proclamar a vida, em todos os contextos e em nome do Senhor Jesus, é sua obsessão; comunidade de serviço, na qual as necessidades, as dores e as perplexidades são acolhidas.
Ser um agente de humanização
Na modernidade, mecanicidade. Na pós-modernidade, virtualidade. Na comunidade do reino, humanidade. Nossas cidades estão cheias de pessoas que perderam o rosto. Quem consegue se inserir no mercado de consumo ganha certa visibilidade. Porém, quem fica à margem se torna massa amorfa. Jesus nos ensina o valor intrínseco do ser humano ao reconhecer o pão como um direito. Se há fome, seja do que for, nossa ação visa não apenas saciar um desejo, um capricho, mas atender um direito. Quando estendemos a mão para saciar a fome de uma criança, não o fazemos por benemerência, mas como comunidade do reino, que reconhece o direito que o ser humano tem ao pão. “Dai-lhes vós de comer” significa ser comunidade do reino -- um lugar para recuperar o significado de se ser humano e se realizar como humano: de dar e receber, crescer e construir humanidade à semelhança de Cristo.
O corpo de Cristo é uma das metáforas encontradas nas Escrituras Sagradas para se referir à Igreja. Há tempos a igreja evangélica brasileira está com as mãos e os pés amputados, e tem sido apenas boca. Acredito na igreja como uma comunidade chamada não apenas para falar, mas para compartilhar, amar, ajudar, construir e lidar com questões como pobreza, violência, analfabetismo, abandono, doenças, violência, vazio espiritual. Estas mazelas estão engolindo a vida de muitas pessoas. Precisamos ser uma comunidade de muitos “eus” interdependentes, que são boca, mas também, mãos, pés, ouvidos, olhos e, principalmente, um coração que pulsa no ritmo da graça de Deus.
Nota
1. BAUMAN, Zygmunt. “Amor líquido; sobre a fragilidade dos laços humanos”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
______________
Neuber Lourenço é pastor sênior da Igreja Batista da Orla de Niterói.
Leia mais
Uma igreja para a cidade (Jorge Henrique Barro)
Mega, médias e pequenas igrejas: o desafio é o mesmo (James Gilbert)
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