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Opinião

Uma cidade sitiada - Uma abordagem literária do Salmo 31

Um recorte muito humano da existência – um retrato da imprevisibilidade da vida

Por Délio Porto

O habitante de uma cidade sitiada suporta a aflição e a insegurança causadas pelo cerco do inimigo. O medo suspende a rotina diária da vida. Aquele que teme o cerco precisa buscar refúgio na cidadela, a parte alta e fortificada da cidade, onde se pergunta: – Será alto o suficiente este local? – A muralha resistirá? – Estarei protegido? Mais do que a realidade do ambiente hostil do lado de fora dos muros da fortaleza, o cerco é da alma. A poesia do Salmo 31 envolve-nos com essas visões ameaçadoras. São como fragmentos dispersos que arranham as memórias da nossa fragilidade e da nossa própria busca por proteção.

Para esta abordagem literária o Salmo foi dividido em seis estrofes. Não se percebe nele uma estrutura que organize as ideias. Os temas se apresentam de forma incidental, como se retratasse a fortuidade das situações da vida, cujos embaraços e infelicidades se intercalam com momentos de paz e livramento. Desencanto e consolo se alternam ao longo do texto. Outro aspecto recorrente são as respostas de fé do personagem da poesia às situações, sejam boas ou ruins. Mentira, insolência, dor física, ardil, depressão, violência psicológica, intimidação social, arrogância e idolatria compõem o arsenal de males que fazem cerco ao personagem (ao eu lírico).

Salmo 31 (versão NAA)
Lamento e louvor

Ao mestre de canto. Salmo de Davi
1 Em ti, Senhor, me refugio;
não seja eu jamais envergonhado;
livra-me por tua justiça.
2 Inclina-me os ouvidos, livra-me depressa;
sê o meu castelo forte, cidadela fortíssima que me salve.
3 Porque tu és a minha rocha e a minha fortaleza;
por causa do teu nome, tu me conduzirás e me guiarás.
*
4 Tira-me do laço que, às escondidas, me armaram,
pois tu és a minha fortaleza.
5 Nas tuas mãos entrego o meu espírito;
tu me remiste, Senhor, Deus da verdade.
6 Tu detestas os que adoram ídolos vãos;
eu, porém, confio no Senhor.
7 Eu me alegrarei e regozijarei na tua bondade,
pois tens visto a minha aflição,
conheceste as angústias de minha alma
8 e não me entregaste nas mãos do inimigo;
firmaste os meus pés em lugar espaçoso.
*
9 Compadece-te de mim, Senhor,
porque estou angustiado;
de tristeza se consomem os meus olhos,
a minha alma e o meu corpo.
10 Gasta-se a minha vida na tristeza,
e os meus anos, em gemidos;
debilita-se a minha força,
por causa da minha iniquidade,
e os meus ossos se consomem.
11 Tornei-me objeto de deboche
para todos os meus adversários,
de espanto para os meus vizinhos
e de horror para os meus conhecidos;
os que me veem na rua fogem de mim.
12 Estou esquecido no coração deles, como morto;
sou como vaso quebrado.
13 Pois tenho ouvido a murmuração de muitos,
terror por todos os lados;
conspirando contra mim, tramam tirar-me a vida.
*
14 Quanto a mim, confio em ti, Senhor.
Eu disse: "Tu és o meu Deus."
15 Nas tuas mãos estão os meus dias;
livra-me das mãos dos meus inimigos e dos meus perseguidores.
16 Faze resplandecer o teu rosto sobre o teu servo;
salva-me por tua misericórdia.
17 Não seja eu envergonhado, Senhor, pois te invoquei;
envergonhados sejam os perversos, emudecidos na morte.
18 Emudeçam os lábios mentirosos,
que falam insolentemente contra o justo,
com arrogância e desdém.
*
19 Como é grande a tua bondade,
que reservaste aos que te temem,
da qual usas, diante dos filhos dos homens,
para com os que em ti se refugiam!
20 No recôndito da tua presença, tu os esconderás das intrigas humanas,
num esconderijo os ocultarás do conflito de línguas.
21 Bendito seja o Senhor, que engrandeceu a sua misericórdia para comigo,
numa cidade sitiada!
22 Eu disse na minha pressa: "Estou excluído da tua presença."
Mas tu ouviste a voz das minhas súplicas, quando clamei por teu socorro.
*
23 Amem o Senhor, todos vocês que são os seus santos.
O Senhor preserva os fiéis,
mas retribui com abundância aos soberbos.
24 Sejam fortes, e que se revigore o coração
de todos vocês que esperam no Senhor.


A primeira estrofe introduz o tema da cidadela. Deus é comparado ao lugar de refúgio e proteção: inabalável como a rocha, inexpugnável como o forte. Este é o tipo de atenção que o personagem solicita a Deus, governante e senhor da cidadela. O perigo e o medo do inimigo estão implícitos nessa estrofe. Ela serve como um resumo de todo o Salmo.

O tema do risco de morte amplia-se nas duas estrofes seguintes. O laço prende e sufoca. O personagem pressente que sua vida vai cessar e a coloca nas mãos de Deus. Os ardis de pessoas más são a causa da sua angústia. Resta-lhe ainda a confiança em Deus. Ele sabe da receptividade e da bondade de Deus, cuja atenção é comparável a um lugar espaçoso, em contraste com alguma masmorra apertada. A terceira estrofe retoma a aflição e o estado de angústia se aprofunda. Uma tristeza terrível rouba o vigor da vida. O corpo dói. O eu lírico não encontra acolhida na comunidade em que vive, pelo contrário, torna-se motivo de chacota. Ele é um escárnio e um horror para os demais. Isola-se e tem suspeitas de perseguição. A abundância de imagens negativas exprime sua profunda infelicidade e desconexão social.

As próximas estrofes trazem algum alento. O personagem canaliza as forças para a confiança em Deus. A depressão não dá a última palavra. Pede o livramento e corre em direção ao esconderijo, ao abrigo que o proteja daquelas coisas ruins. A quinta estrofe retoma a ideia da cidadela. Pela bondade de Deus as portas do abrigo se abrem ao clamor por refúgio. A experiência da misericórdia de Deus e de acolhimento compara-se ao abrigo em uma cidade sitiada, suficientemente preparada para suportar o cerco do inimigo.

O salmo termina com um chamado à confiança. As mazelas sofridas pelo personagem são colocadas sob a perspectiva da fé, pois não poderiam sumarizar uma existência, nem capturar a âmago da vida. A confiança em Deus e a esperança dão a última palavra. Há aqueles que foram cooptados pelo mal e há os que ainda esperam a solução definitiva de Deus para o problema do mal. O desfecho da poesia tem um ar de peregrinação, como se sugerisse uma continuidade.

A poesia é comparável a uma canção que descreve as mazelas e os livramentos de um peregrino, que ao escapar de inimigos e de situações mortais, foge em direção à cidade protegida. Uma boa conexão temática com esse salmo são algumas das histórias de Tolkien. Olhado como um todo, o Salmo faz um recorte muito humano da existência – um retrato da imprevisibilidade da vida – ao dispor de forma sinuosa e recorrente os temas que oscilam entre perigos mortais, livramentos, desencantos e consolo. Se por um lado, há um tempo para todo propósito debaixo do céu (Ec 3.1), por outro – e contrariamente à previsibilidade do calendário agrícola – as vicissitudes não têm data para chegar. O Senhor Jesus vivenciou sofrimentos semelhantes aos do personagem da poesia e no derradeiro minuto de vida citou uma frase deste salmo. Enquanto e esteve com os discípulos, ele os advertiu: “No mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo…”.

A última frase do Salmo recorda que a vida na cidade sitiada requer coração revigorado e espera pela solução que virá do Senhor.

  • Délio Porto é engenheiro aposentado e mora em Viçosa, MG


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