Opinião
- 29 de dezembro de 2022
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Um abismo chamado fome
Uma reflexão sobre o que a igreja pode fazer para ajudar a sanar a urgência de 33 milhões de brasileiros que passam fome
Por Lívia Andrade
Fim de tarde no CPA 2, bairro da periferia de Cuiabá (MT), uma fila quilométrica chama à atenção de quem passa por lá. São pessoas com máscaras, idosos, jovens, homens e mulheres. O mês é julho de 2021, o Brasil vive a segunda onda da pandemia de coronavírus e estes brasileiros se aglomeram na porta dos fundos de um açougue, que distribui ossos com restos de carne. Ao receber a sacola, alguns poucos comemoram, mas a maioria abaixa a cabeça e sai de mansinho.
A cena de cortar o coração retrata a volta do país ao Mapa da Fome das Nações Unidas. Segundo o inquérito sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia, hoje o Brasil tem 33,1 milhões de pessoas em situação de fome. E mais: o estudo revelou que mais da metade da população brasileira (58,7%) convive com a insegurança alimentar em grau leve, moderado ou grave.
O fechamento dos estabelecimentos ocasionado pela Covid-19 levou muitos estabelecimentos comerciais a falência, o que resultou em muitas demissões; o isolamento social tirou a renda dos trabalhadores informais e a guerra da Rússia contra Ucrânia provocou um boom no preço da energia e o aumento do preço de commodities, como soja e trigo. Estas são algumas das explicações que levaram à conjuntura atual.
Mas não há explicações que respondam à urgência de quem tem fome, de quem, por falta de alimento, fica com baixo nível de glicose, portanto, sem energia para o metabolismo do corpo funcionar, o que provoca tonturas, enjoos, náuseas e dificuldade de raciocinar.
O problema da fome levou a Associação Missão Esperança (AME), por meio da Rede SOS Global, a mobilizar os parceiros para entregar marmitas a pessoas em situação de rua. Esterina Adiwardana, a Ester, pastora auxiliar da Igreja Metodista Livre da Liberdade e proprietária do Café Grão de Mostarda, em Santo Amaro, ambos na capital paulista, foi um dos parceiros. “Em novembro de 2020, eles (a AME) pediram sessenta marmitas de Natal à cafeteria e nós fizemos tudo bem caprichado”, conta Ester.
Mas a pandemia não cessou, veio a segunda onda da Covid-19 e com ela um novo pedido da AME de cinquenta marmitas por semana. “O café estava fechado por força de lei, mas a estrutura estava lá, então veio a pergunta: “Por que não?”. E começamos a preparar as refeições para as pessoas em situação de rua da Zona Leste de São Paulo”, diz Ester. A demanda de cinquenta marmitas por semana logo saltou para duzentas e continua até hoje. Desde o início, a comida é preparada com os recursos disponíveis. “Você sabe a panela Wok? Era lá que fazíamos o feijão, porque a cafeteria serve almoço com toque oriental e era o que tínhamos”, diz Ester que, ao ajudar o próximo, se sentiu fortalecida. “Na primeira onda da pandemia, quase surtei. A cafeteria estava com prejuízo, muitas contas a pagar e nenhuma entrada. Já na segunda onda, com os pedidos de marmitas, eu estava bem”, relata Ester que conta com a ajuda do marido e dos dois filhos para tocar o projeto.
Rede do bem
Quando o lockdown foi suspenso e o comércio voltou a abrir as portas, a sobrecarga de trabalho (do café + marmitas) abaixou a imunidade do marido de Ester, que adoeceu. A pastora percebeu que era preciso pedir ajuda, mas antes mesmo de agir, uma pessoa amiga perguntou: “Posso ser voluntária?”.
A oferta na hora exata foi resposta à oração e renovou o ânimo da pastora. Como num efeito cascata, a corrente do bem começou a ganhar musculatura. “Os clientes do Café propuseram comprar as marmitas para a gente ofertar às pessoas, o pessoal da faculdade começou a doar dinheiro para a compra dos alimentos e pessoas que precisaram fechar sua lanchonete nos deram panelas e até botijão de gás”, conta Ester. E não parou por aí. “Duas igrejas se engajaram temporariamente. Uma delas se comprometeu por três meses, mas todo final de trimestre envio o relatório, conto como está e lá se vão um ano e meio de ajuda”. Neste período, o Café Grão de Mostarda já preparou 11 mil quentinhas.
O cenário remete à igreja de Cristo: “O corpo não é feito de um só membro, mas de muitos. Se o pé disser: ‘Porque não sou mão, não pertenço ao corpo’, nem por isso deixa de fazer parte do corpo. E se o ouvido disser: ‘Porque não sou olho, não pertenço ao corpo’, nem por isso deixa de fazer parte do corpo. Se todo o corpo fosse olho, onde estaria a audição? Se todo o corpo fosse ouvido, onde estaria o olfato? De fato, Deus dispôs cada um dos membros no corpo, segundo a sua vontade. Se todos fossem um só membro, onde estaria o corpo? Assim, há muitos membros, mas um só corpo” (1Co 12.14-20, NVI).
A produção de marmitas no Café Grão de Mostarda tem oito pessoas diretamente envolvidas. “Os que se engajam são todos cristãos, mas nem todos da mesma igreja local. É o corpo de Cristo: o distribuidor é batista, o pessoal da cozinha é da Igreja Metodista Livre Liberdade, também temos um contribuinte regular da Igreja Metodista de Santo Amaro”, diz Ester. Cada um atua naquilo que sabe fazer. “O nosso distribuidor tem a maneira certa de abordar as pessoas na rua. Eu não teria esta capacidade”, diz a pastora.
Por conta da regularidade no local e horários de entrega, os moradores conhecem o carro e, quando o veem, vão correndo para o lugar da distribuição. Mas há idosos deitados na rua, no próprio xixi, que não esboçam reação. “Nestes casos, nosso distribuidor coloca a marmita do lado”.
Inicialmente, as quentinhas eram entregues para dependentes químicos da Zona Leste da cidade de São Paulo e no Lago da Concórdia, no Brás. Mas hoje a distribuição se concentra no bairro Campo Limpo e na Avenida Roberto Marinho, onde se encontram famílias acampadas que ficaram desempregadas, sem conseguir pagar aluguel e acabaram nas ruas.
Por sinal, não é preciso percorrer longas distâncias para ver o acampamento a céu aberto que se tornou a cidade de São Paulo. Não se trata de uma mazela exclusiva da capital paulista, a mesma situação se repete de Norte ao Sul do país. De acordo com o Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), 158.191 pessoas viviam em situação de rua em dezembro de 2021. Número que saltou para 184.638 indivíduos em maio deste ano.
Há esperança
Em Campinas, SP, o cenário se repete. De acordo com a prefeitura da cidade, hoje 51,8 mil moradores vivem em extrema pobreza. Esta população está em áreas periféricas, como o Parque Oziel, uma das maiores ocupações urbanas da América Latina.
O pastor Robson Teixeira Gondin atua nessa região há trinta anos e coordena o projeto “Há esperança” de esporte, cultura e educação, que atende trezentas crianças. “Com a pandemia, as escolas ligadas à prefeitura fecharam, as crianças ficaram sem merenda; os pais perderam o emprego. As famílias não tinham o que comer”, diz Gondin.
Então, o projeto fez uma mobilização. “Começamos a servir café da manhã, almoço e jantar para dez pessoas por dia, depois vinte, cinquenta, cem. Aos vinte dias de pandemia, estávamos atendendo mil pessoas diariamente. Foi neste período que Gondin iniciou uma escola com cursos profissionalizantes para a comunidade, uma forma de ajudar a reinserir os adultos no mercado de trabalho: “Têm curso de barbearia, corte-costura, manicure, design de sobrancelha, estúdio de fotografia, marketing digital, marcenaria moderna, panificação, culinária etc”.
“A pandemia foi só um espelho e mostrou aquilo [fome] que estava escondido nas comunidades carentes”, diz Gondin que também atua com pessoas em situação de rua no centro de Campinas, SP: “Eu dirijo uma igreja que faz um trabalho social com moradores de rua, com acolhimento, café da manhã, almoço e janta, corte de cabelo, lugar para lavar roupa, curso profissionalizante”, conta.
Segundo o pastor Gondin, o aumento da quantidade de pessoas nessa situação é consequência do coronavírus. “A conta é mais ou menos assim: o marido e a mulher perdem o trabalho, não têm como alugar casa. A esposa vai com os filhos para casa de parentes, o pai vai para a rua, porque não tem espaço para todo mundo. Ele vai com a intenção de arrumar emprego, mas, infelizmente, muitos caem no submundo da rua”, explica.
A inocência das crianças
Na comunidade Shalon 3, no bairro Santa Bárbara, região periférica de Campinas e divisa com Hortolândia, SP, crianças brincam em balanços de pneus amarrados em árvores. É manhã de sábado e um grupo de voluntários da Comunidade Presbiteriana Chácara Primavera, em parceria com a ONG Trilho Certo, realiza a primeira ação do Projeto MMM (Mães, Meninas e Moças), uma iniciativa que oferece kits de higiene para mulheres de áreas carentes. “Além da entrega dos kits, uma médica sempre faz uma palestra sobre ciclo menstrual, saúde emocional da mulher, câncer de mama”, diz Cilas Gavioli, pastor e líder do projeto.
Há também atividades para as crianças: teatro, brincadeiras e lanche para entretê-las enquanto as mulheres assistem à palestra. Durante o momento com as crianças, Karen, uma das voluntárias, percebe uma criança isolada e vai conversar com ela. Pergunta se está gostando do lanche e a resposta é imediata: “Está uma delícia, é minha primeira refeição do dia. Em casa, quando não tem comida, a gente come calango frito, mas não pode comer o rabo, porque é amargo”. O relato chocou os envolvidos, que se mobilizaram e levaram dezenas de cestas básicas à comunidade.
Relatos como o dessa criança são cada dia mais corriqueiros no Brasil, um dos maiores produtores de alimentos do mundo. Mas como um país com tanta fartura pode ter tanta desigualdade? Como pode haver tantos com tão pouco ou nada, enquanto outros jogam fora a comida servida porque não é o que estão com vontade de comer? Como as igrejas podem ser luz nesta escuridão?
Para o pastor Gondin, “As igrejas precisam se mover, ir até estas comunidades, potencializar os projetos que já existem lá. E não estou falando só de apoio financeiro, mas [também] de voluntários, jovens para trabalhar com as crianças, apontar novos rumos e ser agentes de transformação”.
Cada igreja tem sua vocação, talvez o ministério principal de algumas não seja a ação social. Mas há muitas maneiras de agir como corpo de Cristo. As ONGs precisam de cozinheiros; sempre há questões legais que advogados cristãos facilmente solucionariam; os projetos precisam constantemente de doações (dinheiro, alimento, produtos de higiene etc.) e sempre há necessidade de profissionais de saúde para atender adultos e crianças.
A lista é extensa: administradores, gestores, políticos, cristãos em diferentes posições podem usar o dom dado por Deus para minorar o problema da fome no Brasil, promover justiça e criar estruturas e leis que ofereçam condições de vida digna aos menos favorecidos. Como diz a música de Jorge Rehder:
Agora é o tempo de fazer diferença
De mostrar as raízes, de quebrar as amarras
Ser Igreja presente, fazer parte da História
De encarar a miséria e mostrar compaixão
De avançar imbatíveis, ocupar os espaços
E ter tudo a dizer à nossa geração:
Que da cruz brota a vida
Que a esperança não falha
Que a justiça não tarda
E só em Cristo há salvação!
Como ajudar
Marmitas da Ester | Telefone: 11 98385-2890 | E-mail: dream2ester@gmail.com
Projeto Há esperança | Telefone: 19 98286-7095
Projeto MMM (Mães, Meninas e Moças) | Telefone: 19 99138-3416
Dados da Insegurança Alimentar (IA)1 no Brasil – 2021/2022
- 14 milhões de brasileiros passaram a conviver com a situação de fome de 2020 (19,1 milhões) ao início de 2022 (33,1 milhões)
- 30,7% dos domicílios relataram insuficiência de alimentos que atendessem às necessidades de seus moradores, dos quais 15,5%, conviviam com experiências de fome
- A condição alimentar dos moradores em áreas rurais do país foi pior, comparativamente aos de áreas urbanas, com a insegurança alimentar atingindo mais de 60% dos domicílios
- A insegurança alimentar em domicílios com crianças de idade até 10 anos aumentou de 9,4% para 18,1%
- Famílias das regiões Norte e Nordeste são as mais atingidas pela insegurança alimentar no Brasil:
- Alagoas, 36,7%
- Piauí, 34,3%
- Amapá, 32%
- Pará e Sergipe, 30%
- São Paulo, com 6,8 milhões de pessoas, e Rio de Janeiro, com 2,7 milhões, são os estados da região Sudeste que têm maior concentração de pessoas que passam fome
- A fome está associada também à vulnerabilidade no trabalho. Em 2021, 21% das pessoas que trabalhavam sem carteira assinada estavam em situação de insegurança alimentar grave. Entre os trabalhadores formais, a taxa ficou em 7%
Nota
1. Insegurança alimentar é a condição de não ter acesso pleno e permanente a alimentos. A fome representa sua forma mais grave.
Fontes
1. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19. Rede PENSSAN, 2022. Disponível em https://olheparaafome.com.br. Acesso em 28 nov. 2022.
2. Um Brasil meio Suécia, meio Serra Leoa. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/um-brasil-meio-suecia-meio-serra-leoa. Acesso em 28 nov. 2022.
- Lívia Andrade é jornalista formada pela Universidade Estadual Paulista em Bauru e teve um reencontro com Deus na faculdade por meio da Aliança Bíblica Universitária (ABU).
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Saiba mais:
» Live de Diálogos de Esperança “O escândalo da fome e os desafios da igreja”
» Desigualdade - o que a igreja tem a ver com isso, edição 382 da revista Ultimato
» O Reino de Deus e a Transformação Social, Maurício Cunha
» A Igreja, o País e o Mundo - desafios a uma fé engajada, Robinson Cavalcanti
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