Opinião
- 03 de outubro de 2019
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Tretas na internet e a idolatria da (in)verdade
Por André Costa
"Sem Deus, até mesmo a verdade é um ídolo, até a justiça é um ídolo."
– Henri deLubac
Em tempos de ilimitado acesso a informação, uma juventude altamente iluminada passa a colar diariamente em suas mídias sociais fatos inquestionáveis recortados nos mais instantâneos e confiáveis mecanismos de pesquisa online. Num intervalo de um vídeo tutorial, autointitulados especialistas se proliferam a ponto de só haver ensinantes nessa geração. O problema não é somente a popularização da informação na mão de jovens sem o mínimo treinamento moral para utilizá-la. A tragédia maior é constatar que talentosos jovens, que se dizem cristãos, estão se submetendo a uma danosa fragmentação do conceito de verdade. Acreditam em uma verdade impessoal, insensível, com absoluta desumanidade.
Em seu diário devocional, o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard reflete sobre a essência da verdade em contraposição à postura moderna em relação ao conhecimento.
A verdade, explica o filósofo, não é meramente objetiva, não é simplesmente um fato que sabemos ou algo a que nos referimos. A observação de Kierkegaard nos leva a concluir que a verdade como proposição objetiva e impessoal, desconectada da natureza de Deus, é de fato um ídolo moderno.
O ídolo (in)verdade reina apenas lá fora e cria uma falsa sensação de segurança diante do caos. Como todos os demais falsos deuses, ele afirma exatamente quem somos sem exigir de nós a incorporação do que é afirmado. Ele nos paralisa por meio da ideia de que saber sobre a verdade é exatamente o mesmo que conhecer intimamente a verdade. Penso que a afirmação de Tiago de que até os demônios são conhecedores da verdade se relaciona a esse conceito deturpado da verdade.
A verdade aceita pelos demônios funciona como amuleto místico de pretensa ordem e significado, mas que produz apenas ódio e caos. É o ethos iluminista de certeza que motiva a revolução em nome da luz, mas que se revela plenamente trágica e brutal na guilhotina de Robespierre. O ídolo (in)verdade é ferramenta de destruição da humanidade alheia, objeto de manuseio para o convencimento barato e tecnologia para coisificação da vida. Avalie em si mesmo se os muitos embates que adentramos nas redes em nome da “verdade de Deus e do evangelho” não escondem, por vezes, o desejo pernicioso de estar certo e de ter razão; uma atitude de demonstrar que compreendemos e encapsulamos os mistérios da existência em nossa mente. E observe se essas certezas não nos levam veloz e ferozmente ao “racá” que o Senhor Jesus condenou como “assassinato”.
Kierkegaard nos lembra que a verdade expressa nos evangelhos é, antes de tudo, uma pessoa a quem devemos amar. Se Cristo é a encarnação plena do Verbo, então Deus se manifestou no mundo não como mera objetividade, mas como objetiva pessoalidade. A verdade absoluta é uma pessoa que ama a ponto de se entregar em obediência ao Pai para o benefício do mundo. Isso choca o relativismo pós-moderno, mas abala cabalmente a impessoalidade cognitivista do conhecimento moderno. Verdade como mera objetividade é uma anti-verdade porque a verdade impõe-se sobre nós como Verbo que se entrega. Nos dizeres do filósofo dinamarquês, "você só conhece a verdade quando ela se torna uma vida em você". A verdade do ponto de vista cristão é essência da incorporação do ser. Ou seja, assim como Cristo é o caminho, a verdade só pode se manifestar por meio desse caminho. Uma vereda estreita de luta para incorporação da verdade – o que Kierkegaard chamou de "reduplicar", que significa existir na verdade que se acredita.
A batalha do Verbo para se manifestar por completo como revelação de Deus em forma humana, vencendo o pecado, sendo morto na cruz e só assim se apresentando a nós como favor imerecido, exige de nós entrega total para que a verdade seja incorporada em nós pela via da santificação. A relação possível com a verdade é também de cunho pessoal. Assim, a verdade sem amor é impossível pois é a negação da própria existência. Veja: contemplar a verdade de forma genuína produz em nós o senso da responsabilidade que nos leva a abraçar uma luta existencial para viver na verdade e proclamar a verdade tendo o amor como a sentinela dos nossos lábios.
A convicção de estar na verdade nos possibilita apresentar fatos e argumentos com doçura, amor e graça, não porque possuímos a verdade, mas porque Ela habita em nós e assim somos possuídos por Ela.
• André Costa é bacharel em direito, mestre em filosofia e estudante de teologia. Músico, compositor e vocalista da banda CantoVerbo. Casado com Chelsey e pai de quatro crianças: Lúcia, Olívia, Benjamin e Levi.
>> Conheça o livro O Evangelho Em Uma Sociedade Pluralista, de Lesslie Newbigin
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